Oito poemas de Mary Oliver em “Felicidade” (2015)

Por Pedro Belo Clara 
(Seleção e versões) 


Mary Oliver. Foto: Rachel Giese Brown


 

ROSAS
 
Todos nós, uma vez por outra, questionámo-nos
sobre aqueles assuntos para os quais não existe
uma resposta pronta: primeiro, a existência de Deus,
o que acontece quando a cortina cai
sem que nada o impeça, nem um beijo,
nem uma visita ao centro comercial,
nem o Super Bowl.
 
“Rosas selvagens”, disse eu, uma manhã.
“Vocês têm as respostas? Se sim,
poderão dizer-mas?”
 
As rosas riram, suavemente. “Perdoa-nos”,
disseram. “Mas, como vês, agora estamos
absolutamente ocupadas em ser rosas.”
 
 
 
O MUNDO EM QUE VIVO
 
Recusei-me a viver
fechada na bem-composta casa
                das razões e das provas.
O mundo em que vivo e creio
é mais amplo. De qualquer forma,
                o que há de errado com “Talvez”?
 
Não acreditarias no que, vez ou outra,
tenho visto. Apenas
                isto direi:
só se levares anjos no pensamento
                é que terás a hipótese de, um dia, os ver.
 
 
 
ARMAZÉM
 
Quando mudei de casa
descobri imensas coisas para as quais não tinha
espaço. O que se faz numa situação destas? Aluguei
um armazém. Enchi-o. Passaram-se anos.
De quando em vez, visitava-o, observava as minhas coisas,
mas nada acontecia, nem uma só
pontada no coração sentia.
À medida que fui envelhecendo, as coisas que realmente gostava
foram diminuindo, mas crescendo
em importância. Então, um dia abri o cadeado
e chamei o homem do ferro-velho. Ele
levou tudo que lá estava.
Senti-me como um pequeno burrito, quando
o libertam do seu fardo. Coisas!
Queima-as! Queima-as! Faz uma maravilhosa
fogueira! Mais espaço fica no teu coração para o amor,
para as árvores! Para os pássaros, que nada
possuem – a razão de poderem de voar.
 
 
 
HUMILDADE
 
Os poemas chegam, prontos a começar.
                Os poetas são apenas o transporte.
 
 
 
ESTA MANHÃ
 
Esta manhã, nasceram as crias
de cardeal, e já chilreiam,
pedindo alimento. Elas não sabem
donde vem, apenas continuam
a gritar “Mais! Mais!”.
Em relação ao resto, não têm qualquer
pensamento formulado. Os seus olhos
ainda não se abriram, nada sabem
sobre o céu que as espera. Ou sobre
as centenas, milhares de árvores.
Nem sequer sabem que possuem asas.
 
E assim, como se dum mero
evento de bairro se tratasse,
um milagre acontece.
 
 
 
TUDO O QUE ESTAVA PARTIDO
 
Tudo o que estava partido
esqueceu a sua ferida. Vivo agora
numa casa de céu, em cada janela
o sol espreita. A tua presença também.
O nosso toque, as nossas histórias. Ambos
sagrados e terrenos. Como será possível?
No entanto, é. Cada dia possui em si algo
cujo nome é Eternidade.
 
 
 
NÃO ALGUÉM QUE DIZ
 
Não alguém que diz, “Serei cauteloso
                e inteligente nas questões do amor”,
que diz, “Irei escolher com calma”,
mas os amantes que nada escolheram
e foram escolhidos
por algo invisível,
poderoso e incontrolável
e belo, talvez inadequado –
apenas esses sabem do que falo
nesta conversa sobre o amor.
 
 
 
O LAGO
 
Agosto, é de novo verão, e uma vez mais
bebo o sol
e os lírios espalham-se pelas águas.
Sei agora que tudo o que desejam é tocar o próximo.
Há muitos anos que não venho aqui,
tempo esse em que continuei a viver a minha vida.
Como a garça, que querendo cantar apenas crocita,
desejo poder cantar.
Seria apropriado um pequeno agradecimento nascido de toda a garganta.
É assim que tem sido, é assim que é:
toda a minha vida fui capaz de sentir felicidade,
exceptuando o que não era feliz,
algo que também recordo.
Cada um de nós veste uma sombra.
Mas, agora, é de novo verão
e observo os lírios inclinando-se uns para os outros,
depois deslizar no sentido do vento, empurrados pelo desejo,
perto, tão perto uns dos outros.
Em breve, voltarei o olhar, regressando a casa.
E, quem sabe? Talvez vá cantando.


Ligações a esta post:
>>> Em março de 2022, seis poemas de Mary Oliver e nota biográfica sobre a poeta estadunidense.


* Seleção e versões a partir do original Felicity (Corsair, 2018).

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