“Nosso trabalho ao escrever é funcionar como um canal para que a literatura exista”. Entrevista a Enzo Maqueira
Por Pedro Fernandes
Enzo Maqueira. Foto: Paula Moneta. |
Enzo Maqueira chegou ao Brasil em
2021 através do romance Hágase usted mismo (Faça-se você mesmo,
tradução de Mauricio Tamboni) pela PONTOEDITA, casa editorial independente que organiza
um seleto catálogo com projetos diferenciados que buscam integrar o objeto
livro a outras expressões artísticas em contato com o literário.
Em setembro de 2022, ele regressa
com Electronica, que descrevemos (em texto futuro para este canal) como
um romance acerca da crise de uma geração que alguma vez apostou nos paraísos
artificiais enquanto possibilidade de um tempo de liberdade perene. No final da
entrevista, o leitor pode saber mais sobre o livro desfrutar num excerto um pouco
do seu conteúdo.
Antes, dez perguntas ao escritor
que continuamente tem sido apresentado como uma das vozes mais proeminentes da
nova narrativa latino-americana. Um escritor que até agora acredita que os da
sua profissão não tenham, no âmbito literário, dever ou obrigação que não escrever
e manter viva a literatura e o papel desta continua sendo o aprofundamento, a
complexificação e o incômodo — batalha contra a estupidez reinante.
Nossa conversa se estrutura em
três linhas de interesses: sobre preocupações de ordem diversa que acompanham
todo escritor e o seu trabalho com a palavra, tais como a escrita, as
influências de suas leituras e os seus procedimentos criativos; sobre algumas
questões mais específicas da literatura de Enzo Maqueira, tendo como norte Faça-se
você mesmo e Electronica, quais sejam a relação da sua ficção com
outras expressões criativas, como a música e o cinema; e sobre o papel do romance
e do romancista numa época quando a ficção divide território com a vida no
metaverso, algo que se nota como tema no romance agora em evidência entre nós.
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1. Faça-se você mesmo é
o seu quarto romance, numa obra que até agora inclui outros títulos do gênero.
Fale um pouco sobre esses livros ainda desconhecidos do leitor brasileiro, como
eles constituíram o autor de Faça-se você mesmo e sobre o seu trabalho
como romancista.
Tenho quatro romances publicados.
O primeiro foi Ruda macho, em 2010. É a história de um jovem que está
atravessando seu despertar sexual e, ao mesmo tempo, um despertar espiritual. Logo
veio El impostor, uma nouvelle sobre a cocaína, a misoginia, uma
personagem atormentada por seu ressentimento contra as mulheres. Depois, Electronica,
que acaba de ser publicado no Brasil, a história de uma professora
universitária que confronta a perda de sua juventude enquanto anseia por seus
tempos de rainha da noite nas festas eletrônicas de princípios do século XXI. A
última até o momento é Faça-se você mesmo.
2. Nem sempre o interesse pela
escrita se constitui junto com o interesse pela literatura. Como foi com Enzo Maqueira? Discorra um pouco
sobre sua formação como escritor e como se articularam os interesses pela
escrita e pela literatura.
Me imaginei escritor como uma
consequência de ser leitor. Na minha família se lia muito, minha mãe vinha todas
as noites à minha cama ler comigo. Existiam livros, íamos à Feira do Livro de
Buenos Aires para que os escritores autografassem nossos exemplares. Circulava
a ideia de que ser escritor era algo muito importante, algo que minha família
queria para mim e que eu mesmo começava a ver como um futuro possível. Escrevi
meus primeiros textos assim que soube articular as palavras. Gostava de me
imaginar escritor, mas também sentia muita paz, muita liberdade (ou desejo) no
ato de escrever: era como me desafogar, uma maneira de me comunicar com um
mundo que era alheio para mim.
3. Geralmente se diz que escrever
pressupõe um convívio com a leitura, mas há também quem afirme o vivido como o
princípio da criação ficcional. Como Enzo Maqueira entende isso a partir de sua
experiência como ficcionista?
Uma primeira instância está ligada
diretamente à experiência, a algo que me impactou, que não terminei de
processar, que quis que fosse de outra maneira. É a primeira versão, a catarse
inicial, e é apenas um embrião do que logo será literatura. A partir do
trabalho sobre essa primeira versão, já não é a experiência mas determinadas
leituras (determinados filmes, música, arte, tudo o que funcione para contar
uma história ou deixar uma marca noutra mente) que funcionam como motor
criativo.
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“Não me interessam as tradições literárias, mas o testemunho daqueles com os quais compartilhamos uma mesma viagem.”
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4. E sobre influências. Como o
escritor Enzo Maqueira se relaciona com a tradição literária? Existe
preferências — se sim, quais? Se não, por quê? E com as produções dos seus
contemporâneos, como você administra esse convívio?
Me sinto devedor da literatura
latino-americana do século XX. Autores como Manuel Puig, Cortázar, Rulfo,
Vargas Llosa, Sara Gallardo. Não significa que faça algo parecido ao que eles
faziam (que entre si tampouco são semelhantes), mas que são a literatura que
mais li e portanto é inevitável que me tenha influenciado mais que qualquer
outra. Os contemporâneos me interessam para saber onde estou pisando, como posso
contribuir para o debate atual, com a nossa literatura, como trazer ao nosso
tempo e nosso mundo uma voz própria que é parte de um conjunto de vozes. Não me
interessam as “tradições literárias”, mas o testemunho daqueles com os quais
compartilhamos uma mesma viagem.
5. No caso de Enzo Maqueira
crítico de Enzo Maqueira, como percebe sua obra literária entre os seus
contemporâneos? E nos limites da tradição literária argentina?
Talvez de alguma maneira perturbadora,
embora não inovadora. À contramão da última grande tendência desenfreada da
pós-modernidade que dominou a cena literária desde os anos noventa até há
pouco; parte do movimento atual, mais ligado a certos compromissos políticos e
testemunhais.
6. Falemos agora um pouco sobre
procedimentos criativos. Como se organiza seu trabalho com a escrita? E,
pensando no Faça-se você mesmo, como lhe veio a ideia, como essa ideia
tomou forma e de que maneira essa obra conseguiu a forma conhecida pelos
leitores?
Tenho uma casa na Patagônia, não
na região dos bosques e dos lagos, mas na Patagônia árida, desértica, onde
viviam meus avós. Muitas vezes viajo para me concentrar na escrita, terminar
projetos, fazer as últimas revisões, qualquer instância que requer muita
solidão e isolamento, que são as sensações principais que tenho quando estou lá,
junto com a melancolia. Num verão terminei um romance e como prêmio peguei meia
caixa de ácido lisérgico e subi a montanha que fica próxima da minha casa. No
caminho comecei a imaginar a história. Um homem subindo a montanha enquanto se
afasta da casa onde passou os verões de sua infância, fugindo de algo — talvez
de um crime? O que esse homem fazia aí? Por que tinha que atravessar essa
montanha para escapar do lugar onde havia escolhido morar?
7. Na apresentação de Faça-se
você mesmo no Brasil se enfatizou sobre os estreitamentos entre
literatura e cinema — algo que se confirma pela estruturação desse romance e
antes pela obsessão do seu protagonista com a escrita de um roteiro que nunca se
realiza. Você mesmo disse noutras entrevistas sobre a tentativa de alcançar
pelo verbal a materialidade visual do cinema, deixando que as duas fronteiras
se desfaçam. Pensando na materialidade dessas duas linguagens, fale melhor como
você compreende as duas artes, sobre o diálogo entre elas e como isso se
articula no romance referido.
A literatura, mas também o cinema,
a cultura do audiovisual me formou e formou quase todos os escritores da minha
geração. É inevitável que nossa ideia de narração esteja atravessada por esses
discursos. No meu caso, além disso, há um profundo amor pelo cinema, sobretudo
o de Fellini, o da nouvelle vague, ponto-altos da criação do século XX. Faça-se
você mesmo é tanto uma homenagem a esse cinema como uma tentativa de
dialogar com as duas linguagens, que estão muito próximas do que pensamos, como
muito bem sabiam figuras como Truffaut ou Godard, cujas referências literárias
são constantes em seus filmes.
8. Embora pouco reparado em Faça-se
você mesmo a música é talvez tão importante quanto o cinema.
Especificamente porque uma parte do idílico passado do protagonista é redivivo
pela música do Queen a partir das feições do seu vizinho que reanimam
integralmente as de Freddie Mercury. Fale sobre essa relação que não é apenas a
de um escritor interessado numa trilha sonora para a composição do romance.
Diferente de Electronica,
meu romance com maior presença da música, neste só existe uma referência e a de
uma canção do Queen, “Innuendo”. Sua presença no livro não obedece a questão
emocional ou rítmica (esses são os dois usos que costumo dar à música na minha
literatura) mas que funciona como um motor para o protagonista. Ele quer fazer
algo com sua vida, e para isso repete como um mantra uma frase da canção
escrita por Freddie: “Você pode ser o quiser ser, apenas se transforme naquilo
que você acha que poderia ser.” Essa é a ideia motivadora da história. Esse
pensamento, esse mandamento, essa certeza. É talvez a última oportunidade que a
figura tem para fazer algo com sua vida: acreditar nas palavras de Freddie
Mercury e se transformar nisso que acredita que poderia ser, que em seu caso é
se tornar diretor de cinema.
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“Os latino-americanos somos os eternos refugiados do mundo. Estamos há cinco séculos num bote tentando alcançar a outra margem.”
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9. Um tema que parece caro a
este romance é o da violência. Aliás, essa parece ser uma questão muito latente
na ficção argentina contemporânea — e, por conseguinte, recorrente noutros
ficcionistas latinos. A civilização é mesmo feita da sedimentação da violência
ou essa é a peça essencial da própria civilização. Como você compreende isso no
seu romance e, se percebe isso noutros ficcionistas, como você analisa.
Ser latino-americano é conviver
com a violência. Não apenas as violências mais evidentes, como a policial, a do
narcotráfico ou a da insegurança em nossas ruas. Também as violências
simbólicas, culturais, que certamente também são econômicas: ainda o fato vivermos
em países colonizados por potências estrangeiras, em sociedades divididas,
entregues aos caprichos de uma minoria poderosa que submete uma maioria muito
pacífica. Os latino-americanos somos os eternos refugiados do mundo. Estamos há cinco séculos num bote tentando alcançar a outra margem.
10. O escritor e o seu tempo. Numa
era quando o físico e o virtual se confundem, em que tudo é ficção ou é visto
como ficção, como você define o papel ou o dever do romancista?
Não acho que a literatura ou um
escritor tenha um dever, não acho exista uma obrigação de nada. Nosso trabalho
ao escrever é funcionar como um canal para que a literatura exista, não importa
a forma. Isso não quer dizer que não exista quem escreva com uma ideia de compromisso
social, político ou mesmo estético. Todas essas intenções são válidas e acho
que fazem parte do meu modo de entender a literatura, mas não são excludentes. Acredito,
sim, que em tempos quando os discursos se banalizam, a realidade é globalizada
e homogeneizada e tudo se torna um produto, um slogan, uma deia de fácil digestão,
a arte em geral e a literatura em particular cumprem a função de aprofundar,
problematizar, perturbar, apresentar-se enquanto luta contra a estupidez
reinante.
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Como sintetiza Enzo Maqueira na
entrevista acima, Electronica conta “a história de uma professora
universitária que confronta a perda de sua juventude enquanto anseia por seus
tempos de rainha da noite nas festas eletrônicas de princípios do século XXI.”
Com ela, estão os amigos ninja e Natasha, uma trindade que ao dobrar a crise da
meia-idade, depois de descobrirem a impossibilidade de restauro do passado de
extensa libertação nas noites da boate catedral, se encontram presos no último
impasse de uma vida: se, depois de tudo o que passaram, continuam vivos, é
preciso descobrir uma condição no mundo sem que, para isso, precisem se submeter
a uma ordem contra a qual andaram até ao destino aonde chegaram.
Publicado na Argentina em 2014 e
com mais de dez mil exemplares vendidos, a edição brasileira de Electronica,
publicada pela PONTOEDITA com tradução de Mauricio Tamboni, tem projeto de Luís
Fernando Protásio a partir de fotografia de Andreia Zakime. Sempre interessada em
transpor os limites da noção de leitura, a editora, desta vez, recupera no objeto
livro, os traços da atmosfera da narrativa: a capa extrapola a ideia de aberração
cromática reproduzindo os efeitos de dupla visão e sensações de vertigem e
entorpecimento; e a serigrafia utiliza tinta fotoluminescente que resgata o
efeito das luzes de discotecas e da cultura clubber dos anos 1990-2000.
A seguir, recortamos uma passagem
do romance. Trata-se de um fluxo de consciência da protagonista ante a aparição
de uma adolescente transformada em rival por acreditar que ela seja a namorada
de Rabec, o jovem de dezoito anos por quem se apaixona na leitura das provas de
sua turma e que se torna a miragem, a luz na noite infinita, em busca da qual a
personagem se move. Como é prática de Enzo Maqueira, o vórtice de pensamento logo
se converte em diálogo, como o leitor poderá descobrir na leitura do romance: a
professora conta o episódio de perseguição à loira com voz de taquara rachada
para o amigo ninja.
Este excerto, portanto, como a entrevista que acabou de ler, são dois aperitivos
para que o leitor chegue ao livro da melhor maneira possível.
***
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Electronica
Enzo Maqueira
PONTOEDITA, 192p.
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