Literatura e guerra

Por Thiago Teixeira

A Batalha de São Romão. Paolo Uccello.


 
São incríveis as descrições de guerra de Tolstói. Inesquecíveis as cenas de pontes destruídas, de canhões disparando contra a bateria inimiga, de mensageiros voando a cavalo, dos obuses cujos estilhaços derrubaram o príncipe André. Impossíveis de tirar da cabeça a Moscou em chamas e a guerrilha na floresta de taipa. Pedro de olhos vendados, sendo conduzido ao paredão.
 
Mais inesquecíveis as descrições do massacre brasileiro ocorrido na cidade de Canudos. Assistimos em Os sertões ao canhão de mil e setecentos quilos sendo puxado por uma parelha de cavalos, atravancando no meio do caminho, como um trambolho incômodo. Os militares cansados, com as roupas rasgadas pelos espinhos, comidos pela seca infernal, varados pelas balas vindas de todas as direções. Os canudenses numa luta encaniçada, escondidos como fantasmas em buracos, atirando com armas improvisadas, surpreendendo pelo dinamismo em uma tática de guerrilha desenhada pelo verdadeiro herói brasileiro, o Pajeú. A igreja alvejada pelos canhões, resistindo inabalável, e as mulheres esquálidas (mas de uma força descomunal, a força da natureza) atacando à faca os soldados que invadiam os barracos.
 
O que dizer então da tocaia armada para o grupo federalista de A morte de Artêmio Cruz, quando o tenente Cruz caçava um general villista no cruel deserto de Sonora, nos estertores da Revolução! Ou do tiroteio em meio ao qual Tatarana, transformado e transtornado, movia-se crente de que lhe queimava uma força demoníaca, sem conseguir suportar, no entanto, o verdadeiro som do inferno pelos cavalos atacados!
 
Literatura e guerra sempre andaram juntas, haja vista que as obras fundadoras da literatura ocidental narraram a guerra de Troia.  O grande herói, Odisseu, nada mais era do que um soldado. Mas estamos falando de uma guerra moldada em valores, com regras bem estabelecidas, uma guerra realizada por nobres. Guerra mesmo, a guerra cruel e covarde, tratada de forma realista (e um tanto cômica), essa só veio a ser descrita no século XIX, com Henri-Marie Beyle, Stendhal, numa das maiores obras literárias já compostas, A cartuxa de Parma. O herói, Fabrício Del Dongo, era apaixonado por Napoleão e resolveu se alistar no exército francês. Imaginemos um jovem inocente, um italiano nobre e iludido, educado por um padre supersticioso, indo enfrentar o mundo. Pior, um mundo em guerra, justo na batalha de Waterloo, com velhacos soldados franceses furando com pólvora os velhacos soldados prussianos, os velhacos soldados prussianos roubando cavalos dos velhacos soldados ingleses. E o jovem, perdido, cansado, procurando por Napoleão em meio à bagunça de carroças, cavalos, lama e de uma fuga confusa e desesperada de velhacos soldados franceses, prussianos e ingleses. “E os cadáveres com olhos arregalados e braços ressecados”, diz Italo Calvino sobre o livro, “são os primeiros cadáveres de verdade com que a literatura de guerra procurou explicar o que é uma guerra”.
 
Há guerra nos romances de cavalaria, nos poemas como os do Orlando furioso, ou da Jerusalém libertada, como há guerra nas crônicas de Froissart. Há guerra nos épicos brasileiros (indígenas contra padres jesuítas, umas belas estrofes de Basílio da Gama), há guerra na ausência de guerra de um Dino Buzzati, há guerra nas descrições reais da guerra com Erich Maria Remarque e com Louis-Ferdinand Céline (neste, a guerra nada mais é do que uma selvageria sem sentido, uma reunião de covardes, realizada por velhacos soldados alemães, franceses e ingleses) e há guerra com Hemingway e suas pontes destruídas, caminhões atolados na lama, chuva e mais chuva (Adeus às armas, traduzido por Monteiro Lobato), homens impotentes, aviões a jato sobrevoando as cavernas de desesperançados espanhóis (é antológica a descrição dos fascistas fuzilados pelos republicanos em Por quem os sinos dobram). Há guerra como pano de fundo em Doutor Fausto, quando Serenus, nem um pouco serenamente, sabe estar se aproximando cada vez mais de seu gabinete de trabalho (a redoma literária onde ele elabora a biografia de um gênio da música) a blitzkrieg nazista, adivinhando, como Kavafis, a chegada dos bárbaros. Há guerra ao pé da montanha, em cujo cume relaxa numa vida morna o jovem Hans Castorp, por sete longos anos, até que ela, a guerra, manifesta-se ao final como convocação num agourado trovejar.
 
Aliás, já que Calvino falava dos cadáveres de verdade aparecendo na literatura, Céline também os descreveu no seu Viagem ao fim da noite, sem poupar o leitor e sem deixar de destilar o veneno de seu estilo corrosivo: “Quanto ao coronel, eu não lhe queria mal. No entanto, ele também tinha morrido. Primeiro, não o vi mais. É que fora deportado para cima do talude, deitado de banda por causa da explosão e projetado nos braços do cavaleiro a pé, o mensageiro, igualmente liquidado. Os dois se beijavam, naquele momento e para sempre, mas o cavaleiro não tinha mais cabeça, só uma abertura em cima do pescoço, com sangue dentro que cozinhava em fogo brando fazendo gluglu como geleia no tacho”.
 
De todos esses grandes livros há um de que mais gosto. Trata-se de uma biografia escrita por Voltaire. Para lê-la, é preciso encontrar a antiga edição da Clássicos Jackson (que não a publicou integralmente) ou consultar a edição completa traduzida no começo do século XIX por Francisco Xavier Freire de Andrade, disponível em bibliotecas digitais. Falo da História de Carlos XII, que seria uma biografia tediosa de um rei sueco não fosse a habilidosa pena de Voltaire, que criou vigorosas páginas de narração bélica. Na edição da Clássicos Jackson são narradas três batalhas, a batalha de Nava, na qual o exército de Carlos XII (rei da Suécia) com os seus vinte mil homens venceu o exército de oitenta mil soldados de Pedro o grande. O motivo para tamanho milagre, mostra-nos Voltaire, tinha traço psicológico: “A guarda avançada de cinco mil homens que guardava entre rochedos um posto de cem homens [...] fugiu à primeira aproximação dos suecos. Os vinte mil homens de retaguarda, vendo fugir os companheiros, ficaram tomados de favor, levando desordem ao acampamento”.
 
Após a milagrosa defesa do território sueco contra o terrível imperador russo, a fama de Carlos XII se espalhou, e a capacidade de dizimar batalhões maiores fê-lo ser artisticamente representado ao lado de um Hércules pisando em Cérbero, com a legenda tres uno contudit ictu: abateu três com um só golpe.
 
Na segunda batalha da Clássicos Jackson, Voltaire descreve a fuga do general alemão Schulembourg, cujo exército também foi fulminado por Carlos XII, que queria a todo custo prender o general, conhecido por ser mestre na arte da fuga: “a desgraça de Schulembourg parecia inevitável; entretanto, ainda que com o sacrifício de alguns soldados, conseguiu cruzar o Odet durante a noite, salvando assim o restante de suas tropas”. Já a terceira batalha é a de Pultava, a última do rei sueco, uma revanche de Pedro o grande, que dessa vez se deu bem. Os suecos pareciam ter vantagem, mas uma sorte de erros os levou à bancarrota. Carlos XII comandava numa padiola, pois estava ferido, um dos generais se perdeu no meio do caminho com todo um batalhão (dando chances para Pedro recuperar a cavalaria), além disso os suecos tinham levado apenas quatro canhões “os suecos, consternados, desorientaram-se, enquanto o canhão inimigo continuava a castiga-los”.  A última vitória em Nava parece ter lhes subido à cabeça (Voltaire deixa claro que a psicologia era um fator determinante nas batalhas), resultando em derrota humilhante para os suecos, com direito à fuga de seu rei, já quase moribundo, que ao final apenas torcia para ser preso pelos turcos, já que temia a barbaridade do exército moscovita: “Perto de nove mil homens, suecos e cossacos, foram mortos na batalha; cerca de seis mil caíram prisioneiros”.
 
Voltaire descreve tudo com um estilo limpo, tão belamente traduzido por Brito Broca, com a perícia de quem conhecia a arte da narração pelo Micrômegas e pelo Cândido. A forma com que narra os acontecimentos, gerando oposições de perfis (entre os exércitos ou reis), levantando suspense por meio de técnicas de suspensão da narrativa, equilibrando descrições de cenas com panoramas, nitidamente visa atrair esteticamente a atenção do leitor, mas sobretudo tem a ver com um esforço em dar unidade à história que será narrada. Descrever a biografia de um rei e suas conquistas militares em uma forma coerente e uma, organizando em um todo os testemunhos, os documentos e os dados de que dispunha. Fazer da História uma história, ou seja, criar uma forma, o que equivale, no final das contas, a transformar os fatos históricos em literatura — como dizia Ortega y Gasset, um livro de ciências tem de ser de ciências, mas tem de ser também um livro.
 
Voltaire não deixa de documentar, mas não abdica de criar, fazendo o papel do historiador ao levantar documentação e analisar os fatos, e a do literato, ao imaginá-los ou a nos fazer imaginá-los. O primeiro, diz Aristóteles, conta as coisas como são; o segundo, como poderiam ser.
 
Desde que cantou a ira de Aquiles, a literatura não parou mais de descrever a guerra. Pôs-se a narrar as armas e os varões (com Virgílio) e as amas e os barões (com Camões). De Tucídides (cujas cenas da Peste, na verdade, eclipsaram as da guerra) a Tasso; do combate de Tancredi musicada por Monteverdi à glorificação da guerra como higiene por Marinetti; da resistência dos franceses sartreanos à resistência dos partigiani de Elio Vittorini, é como se os escritores, movidos pela obrigação do testemunho, ou pelo sentimento de justiça, ou pela impotência, ou pelo chamamento histórico, ou para analisar o homem, ou até mesmo porque viam na guerra uma oportunidade para escrever, é como se dissessem a si mesmos: todos cantaram a sua guerra, também vou cantar a minha.

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