Electronica, de Enzo Maqueira
Por Pedro Fernandes
Cedo ou tarde, toda geração passa,
de alguma maneira, por uma sua crise de significação. E pelo menos duas
características formam parte de uma complexa rede de sintomas que não vem ao
caso examiná-la agora: certa nostalgia seguida da contínua tentativa de recompor
o tempo-limite quando, ao que parece, tudo se singularizava num presente eterno
e aberto para um futuro mais vivo que o passado; e certo amainar das forças,
como se por um instinto derivado da frustração obrigasse, consciente ou não, ao
recrudescimento para conservação de um passado, algo que se verifica, no caso
atual, na uniformização dos modelos.
De modo que, no curso do tempo da
sociedade da alta técnica, os instantes para essa crise se tornaram cada vez
mais precoces; e não seria exagero afirmar que atualmente formam um intervalo perene.
Tornou-se a pedra de sustentação do metacapitalismo: segmentando indivíduos a
partir das identidades, diversificam-se os produtos e com isso multiplicam-se
ao infinito as possibilidades de consumo; absorvendo pautas como a da vida
saudável ou a da sustentabilidade continua-se o mesmo disfarce para ocultar os
males da industrialização, da tecnologização e da exploração predatórias.
Nascido no final dos anos 1970, Enzo
Maqueira experimenta a crise de sua geração que antecipa muito o sentimento de
permanência que alcança os nascidos nas duas décadas seguintes. Isso porque, os
jovens do seu tempo estão entre os que vivenciam o alvorecer da tecnologia e
toda parafernália de uma vida sintética cujos sinais aí se demonstravam com a
ansiedade de uma perspectiva surrealizante de futuro. É verdade que as
projeções falharam quase todas e algumas jamais alcançaremos porque antes
assistiremos ao colapso dos recursos naturais, mas não acrescentamos entre o
colorido do previsto o regresso de uma variedade de males que podemos
sintetizar pelo termo da ignorância mesmo que na nossa história ela
nunca tenha deixado de ocupar espaço de relevância.
Com Electronica, o escritor
argentino se posiciona entre os Millennials e examina suas idiossincrasias,
ambivalências e impasses no tempo pós-encanto. É, por isso, um romance que se
abre como um afresco caleidoscópico, visto que, no mesmo instante em que
testemunha um tempo de novas liberdades individuais, descreve o fastio dos seus
protagonistas ante um presente duplamente irreconhecível, seja porque incapaz de
tornar o passado redivivo, seja porque o em-curso se demonstra aquém das
expectativas forjadas no tempo de antes. Ao situar os acontecimentos no limiar
dessas três linhas que conformam três fios principais da malha narrativa, o
romance refaz uma qualidade sua essencial: o de oferecer uma imagem totalizante
do mundo que se propõe construir e/ ou examinar. Nesse caso, para o testemunhal
convergem, a invenção e a universalização dos sentidos, se entendemos tais
impasses, como dizíamos, enquanto recorrências de toda sociedade da técnica.
A alternativa encontrada pelo
romancista flerta com o alegórico, embora as considerações sobre o universal
passam fora do campo simbólico, quando o narrado se constitui em porto de
passagem para acesso a outra circunstância. Mas é a partir da interpolação do
contexto evocado com a história contada que essa universalização se apresenta.
Basta observarmos que todos os impasses geracionais formam parte de outro complexo,
os de ordem individual, afinal, os acompanhamos desde a história de uma mulher mergulhada
numa crise de meia-idade. E os fatores são diversos, sendo o de pertença,
talvez, o mais relevante. Ao contrário dos da sua geração — inspirada nas
referências que modelaram sua cultura — ela não está entre os que pereceram jovens,
tragados pelo desregramento ou o irrefreável, tampouco entre os que
naturalmente se reintegraram à ordem comum das coisas, como é o caso entrevisto
da amiga Natasha dos tempos de longas noites nas pistas de dança da catedral,
entre a música eletrônica e as múltiplas vias de acesso aos paraísos
artificiais. Destituída de uma trindade, depois de tomar um candidato a amante de
ninja, o destino suposto dela é o da mulher que se casa e constitui família,
como descobrimos logo à entrada da seção “Failed”. Mas, note entrevisto e
suposto porque filtrado pelas conclusões a partir de publicações nas redes
sociais e o que se constitui dessa leitura, sabemos, nunca é a vida ao
rés-do-chão. Caberá ao leitor, seguir o curso do romance para encontrar se uma
alternativa — sempre provável — contrária ao tempo expectante se mantém.
Enquanto isso, nossa protagonista passa
a casa dos trinta anos envolvida num círculo de enredos amorosos irresolutos
sem se estabilizar como o ponto de um novo núcleo familiar: o fim de um
relacionamento com o terapeuta; um namoro que depois de três anos de convívio caiu
na região das conveniências, isto é, à sombra da chama do erótico; e um
arrebatamento adolescente por um dos seus alunos, um jovem de dezoito anos, com
quem perde longas horas de espera e exaspero. À lista dos conturbados amores
somam-se os impasses de geração, conforme dizíamos, e a consciência de uma
mulher sem um ponto de sustentação: um emprego que permita não depender da
morada com os pais ou de um companheiro, a dedicação aos planos de uma carreira
de escritora, isto é, as conquistas capazes de assegurar, na prática, a
liberdade experimentada no convívio com as drogas e na companhia de ninja,
outro sujeito em errância, se dizendo à espera do seu príncipe encantado,
enquanto se diverte irrefreadamente com os homens que lhe convém.
Se visitamos a longa tradição
literária, não deixaremos de pensar nessa professora de jornalismo em Electronica
como uma Madame Bovary pós-moderna. No tempo em curso, a fantasia da liberdade
ilimitada não é mais oferecida pelas repetidas páginas dos romances cor-de-rosa
porque a nossa heroína pode, por sua conta, vivê-los, seja à maneira do
amor romântico (Diego), do casamento (Gonzalo), do amante casual (Rabec e o
desconhecido no retorno à catedral). Isto é, sobre a realização amorosa como ser
livre prevalece a noção seguinte. O que se registra, por sua vez, é o
testemunho sobre nossa incapacidade de exercício para tal condição e porque não
existem as possibilidades do autêntico nas relações, assim como o tudo mais nas
nossas vidas, são sempre produtos mediados. Nesse curso, a liberdade se
distorce entre novas maneiras de aprisionamento.
É singular, portanto, como os
laços entre a protagonista e o aluno que a arrebata sexualmente, são mais que a
memória do acontecido e o desejo pela repetição porque materializados por uma
espera cuja angústia se amplifica ante o computador ou o celular. Notamos a
personagem submetida a uma obsessão que mais se aprofunda com sua submissão ao
mundo virtual, este que nos igualou à condição de algoritmos que pagam para intermináveis
experiências que mais nos angustiam e cindem de nossa individualidade. Por
isso, o romance de Enzo Maqueira problematiza como passamos num fechar e abrir
de olhos da liberdade como possível para o consentido aprisionamento.
Quem leu o excelente Faça-se você
mesmo não deixará de reconhecer que parte dos interesses evidenciados até
agora constitui os motivos literários de Enzo Maqueira. Mesmo assim, encerramos
o texto ressaltando alguns aspectos que não os temáticos, reencontrados em Electronica:
a maneira como o romancista utiliza da invenção para constituir o ficcional; e
a construção do narrador cuja fonte se encontra nos estreitamentos entre a
linguagem verbal e a visual, derivada do cinema. “Você se viu diante da prova
de Rabec e sentiu as borboletas no estômago.” Assim inicia a narrativa. É um
narrador cujo ponto de vista exterior se situa sobre sua protagonista: você
pressupõe essa personagem que se faz universal. Ora, funciona como o
desdobramento de uma primeira pessoa que fala consigo em terceira pessoa, ora alguém
que, anterior à persona, como a voz de um diretor/ autor, indica uma condição
que a atriz/ personagem assumirá ao longo da narração, ora um voyeur que
registra o visto e o entrevisto — refazendo todo sentido de uma época quando,
em toda parte, algum olho nos observa.
No caso do romance em questão, esse
olho oculto — presente ao longo da narrativa e por vezes assumindo não como
quem vê e sim como quem é visto — é revelado como se uma extensão de memória da
protagonista, procedimento que assume, pelo menos duas dimensões. Se considerarmos
o plano da narrativa, o papel dessa personagem-narradora responde pelo
tratamento metaficcional, impondo os acontecimentos ao fechado plano da ficção,
uma vez que, tudo é parte na criação ou recriação de uma escrita. No plano
semântico, podemos, repetindo o ponto final do parágrafo anterior, descrevê-lo
como significação sobre o tempo presente da narrativa, este feito em parte da
distensão entre o acontecido e esquecido porque, na era virtual, os
computadores e os smartphones se tornaram continuações da memória, como esclarece
a narradora em Electronica: “Antes era preciso buscar as informações e guardá-las
no cérebro. Agora a internet era uma extensão do seu cérebro.” É preciso
sublinhar que o romance não reafirma ou se decide por esse ponto de vista, mas
o questiona, ao mostrar a memória ora como produto individual nos vários
interstícios do fluxo mental, ora como partilha dialógica entre a professora, ninja
e Natasha, os únicos que podem discorrer autenticamente sobre o que viveram.
A atmosfera dos áureos tempos das
pistas de música eletrônica, o marco definitivo do pós-modernismo agora
substituído em grande parte pela música pop nacional ou os tipos para a massa, é
construída pela narrativa no uso de um variado conjunto de referências que
passa pela música evocada, acontecimentos da história dentro e fora da
Argentina, os programas de televisão, como os seriados, e, sem deixar de
faltar, o cinema. Nesse sentido, o romance recupera na sua própria forma a expressão
que designa: é uma sinfonia de desconstruções rítmicas, de novas sonoridades,
feita de recortes, acréscimos, sobreposições, reaproveitamentos de materiais e
recriações. Enzo Maqueira reaviva, com isso, outra qualidade indissociável do
romanesco: um artefato de linguagem capaz de absorver e transformar na sua
estrutura tecidos textuais diversos, entendendo por texto, nesse caso, no
sentido mais amplo do conceito.
A quantidade de referências que
sustentam a narrativa de Electronica não é uma maneira individualista do
escritor em justificar certo eruditismo. Isso é resolvido quando transfere para
as personagens todo o repertório referenciado — aliás, tudo aqui se integra às
fronteiras das figuras da narração. A professora, por exemplo, sempre se mostra
conhecedora do cinema antigo e de vanguarda, qualidade retomada por ela quando se
vê envolvida em situação ou diálogo semelhante ou quando se compara a
imaturidade intelectual de Rabec e dos demais alunos — a Rabec, sempre imagina
no seu lugar professoral e de mulher mais velha, oferecendo seu conhecimento para
a lapidação do jovem fora dos meros desígnios do sexo; “A professora tinha
feito faculdade, lido Cortázar na adolescência e depois Sara Gallardo,
Gombrowicz e Andrés Caicedo, assistido cinema clássico e se apaixonado pela
Nouvelle Vague.”, sintetiza o romance. O ninja, por sua vez, perfaz certo papel
do tipo conselheiro, e com a amiga, se distingue pelo conhecimento sobre
música. E Natasha é do grupo a única que
faz prevalecer certo intuito da professora em ser escritora, dedicando-se à
poesia: “Nada a ver com aquela coisa quadrada de casas enfileiradas, as casas enfileiradas
da Alfonsina Storni, lembra?, o ninja disse, que a gente tinha que decorar no
primeiro ano. Também não era assim um Neruda. Era outra coisa.”
É assim o romance de Enzo Maqueira:
outra coisa entre os muitos romances do/ sobre nosso tempo. Nada a ver com o saudosismo
de uma época ou sua reprovação; nada a ver com os falsos moralismos do
politicamente correto que viraram a moeda de mercado para a literatura
produzida agora; nada a ver com as pasteurizações das vanguardas. Um romance é
a deriva natural do seu tempo pelas mãos de quem é capaz de transformar suas peculiaridades
em objeto artístico autêntico: história, imaginação e significação. Isso é Electronica.
Os impasses de uma geração que apostou na liberdade como um tempo perene.
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Electronica
Enzo Maqueira
Pontoedita, 192p.
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