Charlotte Brontë, a sobrevivente de uma família de mulheres escritoras

Por Ricardo Marín

Charlotte Brontë. Retrato por George Richmond.


 
Quando Jane Eyre foi publicado em 1847 sob o pseudônimo de Currer Bell, a comunidade literária inglesa ficou intrigada sobre quem era esse autor desconhecido que havia feito um trabalho verdadeiramente poderoso.
 
Quem disseca a própria alma assim, sem piedade. Não poderia ser Charles Dickens, ou William Makepeace Thackeray, ou Charles Kingsley, os grandes escritores da época. “Eles não tinham esse poder. E certamente também não era uma mulher, pois nenhuma mulher poderia ler o pergaminho da paixão humana dessa maneira, e se ela o tivesse lido, não poderia expressá-lo dessa maneira. Quem fez isso?”, lembra um escritor anônimo todo esse eco de perguntas no Cosmopolitan Art Journal, sobre o romance de maior sucesso de Charlotte Brontë.
 
Depois esse clamor, um ano aquando da sua publicação, Charlotte Brontë se livrou de seu pseudônimo e tornou-se conhecida no círculo literário londrino, do que hoje é considerada uma voz inigualável da literatura, especialmente da chamada Era Vitoriana. No entanto, a vida de Brontë também foi marcada por complicações, tragédias e uma família que, apesar do apoio de suas irmãs, também foi atingida por diversos fatores.
 
Ela era a terceira de seis irmãos (cinco meninas e um menino), nascida em 21 de abril de 1816, numa família de poucos recursos e profundamente religiosa. Assim que todos nasceram, a família mudou-se para Haworth. Ela tinha 5 anos quando sua mãe faleceu de câncer, e essa foi a primeira de uma série de perdas prematuras. Em 1824, Patrick Brontë, um clérigo anglicano e pai dos seis filhos, decidiu enviar as quatro meninas mais velhas para a Escola para as Filhas do Clero em Lancashire. Duas das filhas, Maria e Elizabeth, morreram na escola de tuberculose, fator que Charlotte atribuiu às más condições sanitárias da escola, bem como aos castigos injustos e constantes sofridos pelas meninas.
 
Após a morte de suas irmãs, Patrick decidiu trazer Emily e Charlotte de volta para morar com Anne e Branwell. Charlotte, assumindo o papel de irmã mais velha, tornou-se protetora e professora de seus irmãos. Entre os quatro Brontë, gradualmente se fundiu uma poderosa união criativa, que hoje é lembrada como uma das famílias mais bem-sucedidas no campo literário. Foi nessa temporada que as crianças desenvolveram seus próprios estilos narrativos e construíram mundos juntos.
 
Emily e Anne criaram o mundo de Gondal, enquanto Charlotte e Branwell formaram Angria, ilhas onde aconteciam histórias de intriga e corte romântico, onde todos tinham nomes estranhos e viviam em lugares semi-fantásticos, semelhantes a grandes épicos como em O Senhor dos Anéis. As histórias de Gondal e Angria podem ser encontradas hoje em compilações e alguns textos que sobreviveram, principalmente poemas. O extenso número de histórias denota uma família tenazmente interessada na criação artística e na escrita literária, uma paixão que todos os quatro Brontë perseguiram com diferentes medidas de sucesso.
 
Charlotte Brontë percebeu que era diferente de suas irmãs. Não se considerava tão bonita quanto elas, e sua altura era muito menor que o normal. Ela também aceitou um emprego que detestava como governanta, uma experiência nada agradável, mas que acabou sendo usada para suas histórias futuras. Ansiava por sair desse ambiente, o que aconteceu quando viajou, junto com Emily, para Bruxelas. Aí, sob a tutela de Constantin Héger, Charlotte aprendeu a minúcia do trato editorial e desenvolveu profundos sentimentos românticos. Sua jornada, no entanto, foi interrompida pela morte de sua tia Elizabeth Branwell (irmã de sua mãe), que ajudou Patrick a cuidar das outras crianças.
 
As irmãs Brontë voltaram para Haworth, onde tentaram abrir uma pequena escola para jovens mulheres, mas nenhuma garota ao seu redor mostrou interesse. Desencorajadas e com uma visão social sombria, as irmãs dependiam umas das outras para apoio emocional. A atitude do trio, no entanto, acabou mudando quando Charlotte encontrou os manuscritos de poesia de Emily e galvanizou o resto de suas irmãs para publicar seus textos (por esta altura, Branwell estava mais interessado em pintar do que em escrever). Cada um começou a escrever furtivamente enquanto trabalhava em várias profissões na cidade e acabou financiando a publicação de alguns poemas.
 
As três fizeram um pacto para escrever sob pseudônimos masculinos e um sobrenome comum: Currer, Ellis e Acton Bell. A razão era simples e assim justificada pela própria Charlotte, na nota biográfica de Ellis e Acton Bell: “A decisão de dupla identidade foi movida por um escrúpulo consciente de admitir nomes masculinos e cristãos, unidas a não querer declaramo-nos mulheres porque — sem suspeitar nessa ocasião que nosso modo de escrever e pensar não era ‘feminino’ — tínhamos uma vaga impressão de que as autoras provavelmente seriam vistas com preconceito. Percebemos como os críticos costumavam castigar sua arma pessoal, e para recompensar eles usavam de adulações, o que não constitui um elogio verdadeiro”.
 
Após a publicação um tanto ignorada desses poemas, Charlotte estava ainda mais determinada a fazer algo com a prosa de suas irmãs. Eventualmente, após envios e reenvios para editoras, O morro dos ventos uivantes foi publicado sob o nome de Ellis Bell (Emily Brontë). Ninguém estava interessado em O professor, que Charlotte Brontë escreveu sob o nome Currer Bell. A editora Smith, Elder and Co. respondeu à escritora que a obra não seria publicada por razões de negócios e extensão, mas uma obra de três volumes seria aceita. Então Charlotte enviou Jane Eyre, que foi publicada e elogiada por críticos e leitores. Alguns meses depois, Agnes Gray viu a luz sob o pseudônimo Acton Bell (Anne Brontë). Em apenas um ano, 1847, as três irmãs conseguiram publicar seus romances e receber a merecida fama.
 
Em 1848, as Brontë descobriram suas verdadeiras identidades e se tornaram pequenas celebridades da época, graças a várias entrevistas e correspondências com críticos, jornalistas e leitores atentos. Apesar do reconhecimento, isso não seria exatamente duradouro. Branwell morreu logo depois que suas identidades foram reveladas, enquanto Emily o seguiu no final daquele ano graças à sua saúde precária, produto de uma vida cercada por recursos insalubres. No ano seguinte, Anne também morreu devido a um delicado estado de saúde com o qual carregou toda a sua vida. Charlotte foi a única que sobreviveu aos irmãos.
 
Um romance indubitavelmente único em seu tratamento da independência feminina — bem como em sua narrativa catártica em primeira pessoa — Jane Eyre deixou Charlotte com uma reputação impecável. Aí narrava a chegada de uma jovem governanta em Thornfield Hall, para educar a filha do dono da propriedade, o Sr. Rochester, que guarda um terrível mistério. Charlotte tornou-se frequentadora assídua dos clubes literários de Londres (embora nunca se afastasse de Harworth, sua casa, por mais de algumas semanas), e fez amizade com personalidades da época, como Elizabeth Gaskell e Thackeray (autor de Feira das vaidades).
 
Eventualmente, Charlotte conseguiu publicar outros romances como Shirley ou Villette — embora nenhum com o renome e o impacto de Jane Eyre — e em 1854 ela se casou. No entanto, como o resto de seus irmãos, a escritora sofria de problemas de saúde, e sua eventual gravidez fez piorar as situações, culminando em sua morte em 31 de março de 1855, incapaz de dar à luz. Poucos meses após sua morte, seu primeiro romance, O professor, foi publicado pela primeira vez.
 
A história de Charlotte Brontë, a última sobrevivente de uma família de escritores, não é apenas a história de uma mulher devotamente religiosa que mudou os paradigmas da literatura inglesa. Nem é a história de uma escritora cujo estilo ainda ressoa hoje, graças à sua franqueza e emoção aberta. Charlotte Brontë foi também o último bastião de uma família talentosa e artística marcada por tragédias. Apesar de sua curta vida e das tragédias que cercaram esse tempo (Charlotte não tinha mais de 40 anos, suas irmãs não tinham mais de 30 quando morreram), seu legado indelével fala de determinação feroz e ideais inabaláveis, especialmente diante das adversidades. Como Elizabeth Gaskell cita em sua biografia: “Eu tento evitar olhar para frente ou para trás e tento continuar olhando para cima”. * Este texto é a tradução livre para “Charlotte Brontë, la sobreviviente de una familia de mujeres escritoras”, publicado aqui em Gatopardo.

Comentários

Admirador das Brontë disse…
Muito interessante a vida dessa família!

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler