Buñuel, o grande provocador
Por Arturo Aguilar
Luis Buñuel. Foto: Antonio Galvez |
No imaginário coletivo, o nome de
Luis Buñuel cresceu automaticamente relacionado ao rótulo de Diretor
Surrealista. Enquadrar Buñuel neste movimento artístico que nasceu da prática
de diferentes artes e filosofias, de colaborações criativas, com espírito independente
e de associações e metáforas arriscadas, é incompleto. Antes de mais nada,
Buñuel foi um grande provocador.
No início e no final de sua
carreira, é possível vê-lo apoiando-se no surrealismo como um veículo natural
para propor essas ideias. É o que acontece em A idade de ouro e seu
olhar revolucionário sobre as normas da época por trás de uma história de amor,
com cenas em que os esqueletos dos bispos, ainda vestidos com seus trajes,
dançam e cantam à beira de um penhasco, numa representação sobre o declínio e a
queda da igreja, ou com o uso das vozes mutáveis e uma voz em off que
aparece e desaparece, como símbolo da multiplicidade de opiniões sociais a
serem ouvidas e assimiladas na sociedade moderna.
Também notamos o surrealismo em Esse
obscuro objeto do desejo, em que mais uma vez uma história de amor nos leva
a uma imersão nas obsessões humanas, aos limites e excessos de nossos
comportamentos. Nesse caso, nada mais surreal do que mostrar a protagonista
encarnada em duas atrizes diferentes, evidenciando a dualidade ou complexidade
da personalidade feminina e a imagem de mulher tida pelos homens e que pode
mudar em questão de horas ou minutos.
Mas é revisitando cuidadosamente
toda a sua filmografia que podemos apreciar que, embora o seu lado “surreal”
possa aparecer em diferentes graus, a sua intenção provocativa nunca o faz,
seja uma simples comédia como A ilusão viaja de bonde ou numa intensa
drama como Ele, no qual desmistifica a imagem do homem educado e
cavalheiresco, o marido e par perfeito que se torna um monstro permitido pela
própria sociedade.
Em Ele, observa-se a
dinâmica social que estipula para a mulher o papel de mãe e esposa, sujeita ao
homem, seu provedor e chefe da família, o que lhe confere um estranho
salvo-conduto para fazer o que quiser: traí-la, batê-la, maltratá-la. Tantos anos
após o filme, segundo dados da Organização Mundial da Saúde e do INEGI, quatro
em cada dez mulheres sofreram algum tipo de violência em seu país. As coisas,
então, não mudaram muito: Buñuel já questionava essa idiossincrasia patológica.
O extraordinário de Luis Buñuel é
que seus filmes continuam levando o espectador a cenas de intensa e atual
reflexão, muitas décadas depois da sua morte e do seu último filme. Mesmo pelos
padrões de “ousadia” temática ou ideias do cinema contemporâneo, as sugestões
reflexivas que nascem com os filmes de Buñuel continuam tão provocadoras quanto
então, mesmo acima da grande maioria dos filmes recentes que são classificados
como ousados — chamam-se de ousados Spring Breakers (Korine, 2012), Depois
de Lúcia (Franco, 2012) ou Crash (Haggis, 2004), mas cuja ousadia
está mais na forma do que na substância quando analisada em detalhes.
Há muitos outros exemplos em
Buñuel: O anjo exterminador e sua brutal radiografia dos instintos
humanos; Simão do deserto, em que um homem moderno sonha em ser um anacoreta
em penitência que resiste às tentações do diabo, interpretado por uma sensual
Silvia Pinal; ou A bela da tarde, o retrato do desejo de uma mulher de
romper com sua vida monótona de esposa de médico, cheia de frustrações e
fantasias sexuais que a levam a buscar novas experiências como prostituta em um
bordel durante o dia; ou Nazarín, um filme em que coloca sobre a mesa a
pergunta “poderia Jesus voltar à Terra e viver com os preceitos e valores
descritos na Bíblia, na sociedade moderna?”
Neles, as ideias provocativas de
Buñuel podem ser apreciadas hoje, apesar das inegáveis mudanças sociais das
últimas décadas. Assim, em Ensaio sobre um crime, o protagonista é um
burguês que sempre se acostumou a se safar e que, como jogo, vem escalando
esses absurdos e excessos ao longo dos anos. As notícias recentes na mídia e
nas redes sociais sobre os personagens batizados de Cavalheiros ou Damas nada
mais são do que a representação geracional daquelas burguesias que essa
sociedade estava permitindo e sobrepondo por estarem em círculos de poder e
dinheiro. Quer se trate de pessoas de alta classe ou funcionários que abusam de
outros apenas porque podem ou por diversão, Ensaio sobre um crime oferece
uma sátira à distância de um particular interesse atual.
Alguns anos se passaram desde a
morte de Luis Buñuel, em 29 de julho de 1983 na Cidade do México. E neste tem
sem ele é difícil encontrar um cineasta com maior vocação socialmente
provocativa através de uma filmografia ampla e diversificada que sempre deixa
algo na cabeça, algo para discutir e assimilar.
Sua intenção de criar uma conversa
(mental) com seu público é permanente, sugerir ideias que mudem os cenários e
dinâmicas sociais aceitas, questionar valores e paradigmas religiosos e saber
esconder essas ideias em histórias que parecem simples, e que anos de distância
ainda são tão atuais quanto o dia em que foram lançados e continuam a permitir
que nos vejamos em um espelho cru, sem inibições, às vezes com simbologias e
metáforas surrealistas. Isso pouquíssimos diretores na história do cinema
conseguiram. Buñuel, sem dúvida, é um desses grandes.
* Este texto é a tradução
livre de “Buñuel, el gran provocador”, publicado aqui, em Confabulario.
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