Aparições e desaparições de Felisberto Hernández
Por Marcos Abal
Tenho intenções modestas. A casa
está silenciosa e o sol finalmente nasceu. Suponho que lá fora o asfalto
deslumbra como um espelho e nas sarjetas pingam algumas gotas frias e gordas
que muito ocasionalmente se escorrem entre a camisa e as costas de uma criança.
Peguei o Dicionário de Autores Latino-Americanos de César Aira.
Folheio-o, como se folheia o arquivo de uma instituição psiquiátrica. É uma
edição argentina (editada por Emecé e Ada Korn Editora). Antes de me presentearem
pensei que seria um dicionário abertamente subjetivo, dentro da sobriedade de
tom característica de Aira e, claro, sem atingir a parcialidade belicosa de um Umbral
revisando autores. Esse “Azorín escreve covardemente”, por exemplo, antológico,
caprichoso, bastante tolo. O dicionário de Aira é mais ou menos rigoroso, ou pretende
ser, e centra-se principalmente em autores desconhecidos e esquecidos do
passado. O dicionário é ordem, uma criança obediente que sabe sua lição; os
autores e seus títulos desfilam por ele. É um dicionário que só poderia ter
sido escrito por Aira, um homem que tem se interessado sobretudo pela leitura,
e que talvez não tenha deixado de escrever por isso mesmo. De vez em quando uma
frase sai do habitual caráter informativo escrupuloso e escapa uma maldade,
como se um computador rabugento tivesse perdido a paciência revisando alguns
autores que não são tão interessantes quanto todos pensam.
Bom, o que importa neste
dicionário são os desconhecidos. Aí temos Felisberto Hernández, um dos mais
interessantes que a literatura latino-americana produziu no século passado. De
qualquer forma, ele é uma incógnita bastante conhecida. Há uma coisa com o
escritor menor e esquecido que raramente é levada em consideração; que essa
condição é merecida. Quantas vezes não fomos a este ou aquele escritor
esquecido e dissemos; entendo. Também com Felisberto Hernández poderíamos
dizer; entendo. Mas neste caso é alguém para quem a literatura parece ter importado
muito pouco. Foi um desinteresse total de estar na foto. Ele não compartilha
assuntos com ninguém, ou pelo menos com ninguém que ele conhece. Procurou as
margens, e nessas fez uma obra absolutamente original, verdadeiro, honesta, de
divina loucura. A América foi descoberta para saquearmos, e foi saqueada; o
chamado boom latino-americano decorre em parte disso.
*
O dicionário de autores de Aira
nos deixa com uma impressão; literatura é um buraco negro. Esse fenômeno
cósmico que engole galáxias. Segundo a Wikipedia: “gravidade infinita em um
espaço de tamanho imensuravelmente pequeno”. Quantas obras esquecidas, quantos
autores malfadados, perdidos. Vidas aparentemente absurdas. Embora eu não
consiga ver tragédia nisso. Se escreve por escrever. Nada mais. O resto vem ou
não vem, e vem e vai, ou não. O sucesso, o fracasso. Quase sempre se fala da
literatura como um bom ou mau investimento; mas, quanto ganha tal autor com
imortalidade?
Vejo a literatura mais como um
quarto escuro em que se escutam vozes o tempo todo. Paradoxalmente, para ver o
mundo melhor, para ampliar nosso mundo, entramos nesse quarto. Algumas vozes
foram silenciadas para sempre e outras não param de falar. Muitas são vozes que
querem se impor, que se levantam em competição com outras vozes. A de Felisberto
Hernández seria um sussurro, a princípio quase imperceptível. Não quer competir
com ninguém. É a oração de um autista, um tartamudeio. Aos poucos esse sussurro
vai, de alguma forma, anulando as outras vozes, que se tornam ruídos
desconfortáveis, como carros passando em uma rodovia e aos quais não prestamos
mais atenção. Esse sussurro permanece, essa oração misteriosa, e deixamos de
ver a escuridão.
*
Felisberto Hernández foi um
escritor e pianista uruguaio (melhor pianista e escritor) nascido em 1902.
Entre o nada e o clássico, ou o que será clássico. Tenho aqui três citações. As
duas primeiras são obrigatórias quando se fala em Felisberto Hernández. A
terceira é coisa minha.
1. Sobre seu primeiro livro (Fulano
de tal, 1925) o filósofo Carlos Vaz Ferreira disse: “Talvez não exista mais
de dez pessoas no mundo que o achem interessante, e eu me considero uma delas.”
Este seria um daqueles elogios que
faz você querer cometer suicídio.
2. Jules Supervielle: “Você tem um
sentido inato do que será clássico um dia.”
Diante dessa literatura
latino-americana que pintou caciques, ditadores bananeiros e revolucionários, a
literatura de Felisberto Hernández é um clássico alternativo.
3. Em seu conto “El acomodador”
ele escreve: “Eu sentia que toda a minha vida era algo que os outros não
entenderiam.”
Seus assuntos são raros, de fato.
Italo Calvino, que também coloca um prólogo em alguns de seus livros de contos,
disse dele que era um escritor diferente de qualquer outro; “nenhum dos
europeus e nenhum dos latino-americanos.”
Pode-se dizer que o que ele narra
é puro mistério, que caminha tão normalmente por suas narrativas. Sim, todo
puro é sempre muito puro. Pode ser que não ser tão puro. O mistério não é tanto
se existe ou não vida além da lua, mas como é a vida aqui. Um mistério de andar
pela casa. Talvez um mistério sem sair de si mesmo.
Em carta, ele confessa: “Acho que
minha especialidade é escrever o que não sei, porque não acredito que só deva
escrever o que se sabe.”
O papel marginal de Felisberto
Hernández na literatura não poderia ser outro. É o papel que sempre foi
reservado aos mais dotados, aquele que percorre as cidades comuns da literatura
sem parar para cumprimentar e fica para viver em algum vilarejo remoto onde
nunca ninguém tinha chegado. Sabemos que nosso pianista/escritor foi muito
admirado por Cortázar e García Márquez. Mas eles acabaram não o levando a
sério. E de alguma forma ambos popularizaram parte do que havia de estranho e
maravilhoso na obra do uruguaio. Sem ser referência. García Márquez passou essa
obra pela peneira barroca e mágica de seu bigode, criando, já se sabe, aquela
árvore genealógica de personagens e amores imortais que teve um império de
leitores. Sempre me pareceu que García Márquez escrevia em Technicolor, e em
seus romances os já velhos acrílicos trabalhavam à maneira de E o Vento
Levou. Cortázar, com sua Paris nas costas (de boêmios, artistas e músicos
de jazz …), também deve ter se sentido muito próximo da obra de Felisberto
Hernández, ou assim sugere em um famoso prólogo/carta; “Felisberto, você
sabe...”. E assim por diante.
Cortázar apresenta Macedonio
Fernández e Lezama Lima, por assim dizer, nessa carta, formando assim os três de
um grupo de “pré-socráticos que não aceitam nada de categorias lógicas porque a
realidade não tem lógica alguma”. Assim, Felisberto Hernández também como o
bicho tímido que decidiu viver escondido debaixo de uma pedra. Macedônio, tão
admirado por Borges, foi o homem que todos queriam conhecer, mas que ninguém se
atreveu a ler além de meia página, talvez porque ele mesmo não ousou escrever
além de meia página. Macedonio foi o gênio de si mesmo, o gênio enrolado, o
cachorro que brinca de correr atrás do rabo com uma graça indiscutível. Mas, ainda
é preciso ser argentino para entendê-lo ou valorizá-lo. Talvez Valle em pessoa
fosse outro Macedonio, embora Valle tenha deixado a obra à parte do próprio
Valle, porque ele tem essa força, principalmente no teatro. Macedonio seria
como aquelas crianças que enlouquecem e não param de girar sobre si mesmas,
entre caprichosas, brincalhonas e zangadas com o mundo.
Felisberto Hernández é outra
coisa. O gênio nunca escreve, mas qualquer homem que se afasta da luz para nos
mostrar esses pequenos dramas incríveis, até perfeitamente críveis dentro do
incrível. O gênio é um senhor que se preocupa demais para que a palavra gênio
não caia no chão, e cuida dela e a limpa todos os dias com a avareza da dona de
sua casa enxugando e polindo a prata. São personagens, os seus, obcecados por
alguma coisa, e parecem ter caído em um redemoinho de realidade que os separa
de tudo. Eu vejo seus contos como performances literárias que não se conhecem literárias
nem mesmo performances. É uma descoberta dos cinco sentidos; eles se revezam
escrevendo frases e suas faculdades são trocadas (sinestesia, esta última). Mas
é como se cada sentido pedisse ajuda aos outros para explicar alguma coisa,
para contar.
O germe. O próprio Felisberto
Hernández sobre seus contos: “Em um determinado momento, penso que um lugar de
mim me nascerá uma planta.”
*
Foi dito que Felisberto Hernández escrevia
mal. É uma sintaxe adaptada ao que tem a dizer, e não o contrário. A sintaxe é
uma qualidade da alma, disse Valéry.
Numa carta à escritora e amiga
Paulina de Medeiros:
“…tenho como um processo de
amizade com as palavras: primeiro me torno amigo direto delas; e então fico
muito feliz quando me aparecem juntas, duas que nunca estiveram juntas, que se
gostaram ou se atraíram em algum lugar da minha alma não observado por mim.”
*
De sua vida; primeiro uma vida
rodeada de senhoras. Entendo. Tias e mais tias que o encorajam a tocar piano, e
ele tem aulas e depois cresce olhando para um piano e recebendo reclamações e o
ocasional som alegre. Isso é muito felisbertiano; o piano não pode ser apenas
uma coisa, muito menos um piano. “Soou a primeira nota soou e parecia que uma
pedra tinha sido jogada num lago.” Antes de crescer ele já sabe o que é atuar
onde ninguém se importa com o que um piano diz ou pode dizer; é um ruído de
fundo alegre, mais um, por baixo das vozes que riem e falam e pedem mais
alegria e bebida. Não existem, por exemplo, bares silenciosos. Acredita-se que
é o silêncio que nos expulsa, o que não nos leva em conta, o hostil, e é o
barulho que acaba nos empurrando para fora. Primeiro nos chuta para fora de nós
mesmos, e depois do bar com a TV ligada, a MTV, o que for. Foda-se o bar. O
pianista também se adapta ao cinema mudo, terá quinze anos quando ganha
dinheiro tocando em apresentações; ele é aquele que avisa dos perigos, das piadas,
aquele que também persegue e foge nas perseguições. Será a voz do trem
monstruoso que está vindo em nossa direção.
Importante; Em 1920 Felisberto
Hernández recorre ao professor de piano Clemente Colling. Todo um personagem
que ele retrata em seu livro Para os tempos de Clemente Colling. Cego,
extravagante, grande improvisador e radicalmente pobre.
Nosso autor desde muito jovem começou
a ser conhecido em Montevidéu por suas excelentes interpretações de clássicos e
também por suas composições. Em 1925 casou-se com Maria Isabel Guerra. Bem, é
melhor não se envolver em casamentos; casa-se muito. Não sei sem com intenção
humorística ou não, Aira escreve em seu dicionário: “Em seus últimos anos levou
uma vida extremamente desordenada, de constantes mudanças e mudanças de esposa”.
Antes, uma vida de turnês por
cidades e pensões. A vida de um tipo sentado na cama de uma pensão esperando a
hora do show. Mas a literatura sempre esteve presente e foi em 1940 que deixou
a música para se dedicar exclusivamente à escrita.
E, famosa esta afirmação de sua
última fase: “Observo que cada vez escrevo melhor, é uma pena que cada vez fico
pior.”
Morreu em 1964 em Montevidéu.
Bolaño disse em um artigo que o
destino de Felisberto Hernández devia ser diferente na Argentina e no Uruguai. Os
escritores, diz ele, “um dia aparecem e depois desaparecem e então, quem sabe, aparecem
novamente. E se não aparecerem de novo, não importa tanto porque eles, de
alguma forma secreta, já somos nós.”
* Este texto é a tradução livre de “Apariciones
y desapariciones de Felisberto Hernández”, publicado aqui, em Jot Down.
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