Tchevengur, de Andrei Platônov
Por Marcelo Jungle
A Editora Ars et Vita lançou obra fundamental e quase
desconhecida da literatura do século XX. Trata-se de Tchevengur, do
escritor russo Andrei Platônov, escrita nos anos de 1927–29 e originalmente
intitulada Construtores da Primavera. Merecem todos os elogios pela
iniciativa os co-editores Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, que também
assina a tradução, por trazer ao universo lusófono a primeira versão em
português desta obra-prima. Que seja a locomotiva que nos traga outras criações
do autor, complementando uma séria lacuna do universo editorial da literatura
russa no Brasil.
Tchevengur faz parte daquela categoria de livros
exilados, sequestrados ou confinados durante o regime soviético e só obteve a
liberdade em 1988. Esta lista é extensa e nela se incluem autores como Mikhail
Bulgákov, Marina Tsvetaeva, Anna Akhmátova, Osip Mandelstam, Vassili Grossman,
Aleksandr Soljenítsyn, Varlam Chalámov, Isaak Bábel e Anatoli Ribakov. Para uma
compreensão apurada desse fenômeno que atingiu a literatura, os livros de
Vitali Shentalinski são um registro notável. Vitali, escritor e jornalista
falecido em 2018, teve acesso amplo aos arquivos da KGB dentro da própria
Lubianka (sede da KGB e da
prisão respectiva, na Praça Lubianka, em Moscou), cujos portões hoje se
encontram fechados novamente aos pesquisadores.
O silêncio marca o início da história, onde acompanhamos o
personagem Zakhar Pávlovitch e sua estranha ligação com o mundo através da vida
das máquinas. Personagem que é a figura do mujique com o homem do despertar do
século XX. Mas o seu mutismo é o que de fato importa e não a palavra ou o
estrondo de motores e bombas. Zakhar é o retrato da bondade possível e não
prescrita. Ele protagoniza os momentos iniciais do romance e terá aparições ao
longo dele, protagonizando sua bela cena final.
Num clima de fábula, Platônov nos faz experimentar uma
sensação de leveza que traz à percepção um mínimo de humanidade diante de
realidade tão insuportável. E o cenário é a primeira tragédia revolucionária,
movida pela grande fome do início dos anos 20. Confisco de colheitas,
perseguição aos kulaks e uma forte seca foram decisivos para o desastre
que atingiu várias partes do país. A Grande Guerra (1914–18) e a Guerra Civil
(1918–20) já haviam ceifado muitas vidas de jovens capazes de trabalhar na
terra e possibilitar as colheitas de que o país precisava.
Ante tal triunfo da morte, a fome pode ser um pouco mais
cruel, levando os homens a flutuarem em um abismo que os leva a atos
impensáveis mesmo em tempos de guerra. Daí o silencioso efeito que domina o
ambiente da primeira parte da história e que será por diversas vezes referido
até o seu final. Um silêncio que espanta os ouvidos ao ser escutado, como seria
a expressão do comunista que se vê obrigado a enfrentar a própria alma.
Consequência desse cenário trágico, o silêncio não é, portanto, acidental ou
fruto de mero intuito realista, ou preocupação linguística. Como demonstra Zakhar,
emudecer era sempre a melhor resposta, pois a palavra humana era para ele o
que o murmúrio florestal era para o morador da floresta — algo que não se
escuta.
Platônov percorre a Rússia que está a desaparecer e faz de
seu romance uma elegia de despedida, com irrefutável tom profético, expondo a
Revolução que luta (e se perde) para se impor a séculos de uma sociedade
submissa. Mas também é a despedida à época dos patriarcas Púchkin e de Gógol,
assim como todos os outros que formaram a literatura mais jovem e mais vibrante
do século XIX.
Pressagia-se um trágico destino para essa missão. Passamos a
seguir então os dois heróis Dvánov e Kopienkin numa saga irônica em busca do
autêntico socialismo. Dvánov, menino idealista e puro, sofre com a perda do pai
suicida e é acolhido por Zakhar. Ao se tornar adulto embrenha-se sem maiores
motivações nas lutas políticas e recebe a missão de encontrar e examinar o
socialismo. Ele a desempenha como mero espectador, e de seus testemunhos vamos
nos inteirando de fatos e personalidades cheias de riqueza literária. Ele
associa-se a Kopienkin, um soldado feroz apaixonado por Rosa Luxemburgo e que
tem como grande companheiro seu cavalo Força Proletária.
Nas aventuras que serão descritas e mais ainda, quando
chegarem ao paraíso de Tchevengur, onde o comunismo já se instalou plenamente,
parece evidente que não resta ao autor nenhum resquício de crença utópica. O
gênio de Platônov é tão grande que algumas vezes se tem a nítida impressão de
se estar lendo um clássico russo do século XIX. Mujiques isolacionistas buscam
por suas próprias mãos uma saída daquele mundo desconhecido e da nova vida
trazida por pessoas estranhas; uma carroça corre desenfreada por uma estrada
empoeirada e nos faz lembrar de Turguêniev e seu hemisfério rural visto pelos
olhos de um nobre caçador; um velho sábio lança frases de sabedoria para um
espantado revolucionário, na esperança de despachá-lo para longe dali e desvirar
seu mundo que ficou de cabeça para baixo. O encontro de Dvánov com o pai é
tocante e revelador de um lirismo exaltado e quase barroco. Mas é, sem dúvida,
uma das cenas que indicam o aspecto indulgente do livro. Em certos momentos,
Platônov é Tchekhov levado ao extremo.
O tempo todo o que se vê é o caminho de indivíduos
despersonalizados com vontades desconhecidas por eles próprios, numa clara
referência ao nomadismo causado pela revolução e pela fome. Personagens vêm e
vão o tempo todo. Ficamos com a impressão de que já os encontramos, como se
estivéssemos em um inusitado déjà vu. Uma estranha sensação de estar a
sofrer por algo que não se recorda, mas que nos aflige, dado que o livro conta
tristezas imensas. Uma delas é a que indica que os personagens só conseguem
desenvolver pensamentos próprios em sonhos.
Platônov não é um escritor que simplesmente se leia. Toma
nosso tempo. É uma leitura de espanto que exerce uma nítida atração. E toda a
estranheza que nos fascina começa a fazer parte de nossas vidas, queremos abrir
o livro em praças, semáforos e elevadores.
Tchevengur é um monumento, uma homenagem à criação e à
imaginação do leitor. Nada do que acontece lá é realidade, pois tudo já está
ajustado e a realidade é sempre o conserto de imperfeições e movimentos
contrários à vontade. O lugar é um amontoado de pantomimas estranhas que não se
permite a dúvidas que dispersem seu destino triunfal. Porém, é um espaço
dominado pela quietude, solitário e entregue ao vento da estepe. De alguma
forma, seus habitantes estão convencidos a pensar que o mundo é como desejam e
não como ele é. Para isso, não é um problema eliminar quem está atrapalhando
esse caminho, como os burgueses do vilarejo. As cenas de um massacre são
bastante fortes para nos afastar de qualquer clima de crença em um ideal, a não
ser em delírios extravagantes.
Platônov faz sua crítica de forma tão carregada de mistérios
e estranhezas que isto pode ter sido o motivo de ele próprio ter sido
eliminado. Havia, sim, algo de muito antissoviético ali. Mas o que
precisamente? Para nós, homens do futuro, não é difícil ler Platônov como
profeta. O que mais impressiona é ser profeta não apenas em relação ao passado,
como também em relação ao presente. Tudo que veio a acontecer ficou ali
anunciado, destino que parecemos condenados a repetir.
O próprio Stálin lhe reservou uma coleção de impropérios,
após ler a novela Vprok (Para o futuro). Segundo a lenda, nenhum outro
escritor angariou tantos de uma só vez (idiota, vulgar, farsante, engraçado
sem graça, imbecil, miserável, canalha). Seus movimentos posteriores em
busca de aprovação junto aos donos do poder serão meras estratégias de
sobrevivência. Apesar disso, essas manobras não foram suficientes para evitar a
morte de seu amado filho anos depois, ocasionada por uma tuberculose contraída
por uma prisão inexplicável.
O que isso nos revela é o medo que a literatura causa aos
governos e, em consequência, os atos de intolerância que pode desencadear. Para
um escritor soviético, a aprovação do Estado tinha que seguir um enredo já
definido por lei, na expressão de Nabokov. Evidentemente, Platônov jamais se
encaixou nesse perfil.
A leitura de Tchevengur pode despertar muitas
considerações de ordem político-ideológica. O que Platónov mostra a todo
momento é a inevitável derrota dos idealismos pelos fatos. É o Miguel de
Cervantes da Revolução. Em determinado momento, inclusive, a busca do comunismo
nos remete às andanças de Dom Quixote e Sancho, encontrando pelo caminho toda
forma de alegorias e crenças sem nenhuma conexão. A demonstrar os absurdos
provenientes do predomínio das ideias impostas aos fatos temos o administrador
de Tchevengur, Tchepurni. Ele é o grande representante dessa classe, capaz de
repetir de forma monótona e sem nenhuma hesitação os maiores absurdos de idealismos
extravagantes.
Mas o que importa é a demonstração de como os seres humanos
conseguem lidar com o silêncio e o vazio que a todos acomete. É uma obra de
índole universal e não situada no tempo ou acontecimentos históricos. Com seus
personagens isolados dentro de si e transfigurados em revolucionários ou em
engrenagens preestabelecidas, o romance cria um universo de fantasmagoria que
remete a uma humanidade imensa. É ilustrativo o sequestro de mulheres famintas
para servirem de esposas do comunismo, sendo que algumas acabam fazendo o papel
de mães dos revolucionários.
Levanta questões ecumênicas como preencher o vazio que o fim
de Deus deixou, visto que nos tornamos gravuras que adquirem movimento em busca
de um destino. Esse sentimento é reforçado pelas belíssimas ilustrações de
Svetlana Filíppova, artista plástica russa que combina realismo imagético com
ternura. Para essa questão o livro tem suas respostas em um enorme número de
referências religiosas que acomodam o mundo arquitetado pelos pensadores revolucionários
do século XIX. Lênin, por exemplo, é o Pai, que a tudo vê e cuida. Andarilhos
reproduzem o mito de Asvero, o judeu errante. O sol é o próprio Espírito Santo,
e Tchevengur, enfim, o Paraíso na Terra. Afora isso, é pleno de imagens
literárias construídas por um gênio imenso e devemos agradecer ao destino tê-lo
trazido até o futuro que habitamos.
São muitas, portanto, as leituras que se legitimam para este
livro, como acontece com as grandes obras. Há que se ler Tchevengur,
todavia, como um manifesto à humanidade e à liberdade, especialmente à
autodeterminação criativa. Tchevengur é, antes de qualquer outra
definição, uma ode à independência da literatura.
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Tchevengur
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17de agosto de 2022