Tchevengur, de Andrei Platônov

Por Marcelo Jungle

Andrei Platônov, Koktebel, 1936.


 
A Editora Ars et Vita lançou obra fundamental e quase desconhecida da literatura do século XX. Trata-se de Tchevengur, do escritor russo Andrei Platônov, escrita nos anos de 1927–29 e originalmente intitulada Construtores da Primavera. Merecem todos os elogios pela iniciativa os co-editores Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, que também assina a tradução, por trazer ao universo lusófono a primeira versão em português desta obra-prima. Que seja a locomotiva que nos traga outras criações do autor, complementando uma séria lacuna do universo editorial da literatura russa no Brasil.
 
Tchevengur faz parte daquela categoria de livros exilados, sequestrados ou confinados durante o regime soviético e só obteve a liberdade em 1988. Esta lista é extensa e nela se incluem autores como Mikhail Bulgákov, Marina Tsvetaeva, Anna Akhmátova, Osip Mandelstam, Vassili Grossman, Aleksandr Soljenítsyn, Varlam Chalámov, Isaak Bábel e Anatoli Ribakov. Para uma compreensão apurada desse fenômeno que atingiu a literatura, os livros de Vitali Shentalinski são um registro notável. Vitali, escritor e jornalista falecido em 2018, teve acesso amplo aos arquivos da KGB dentro da própria Lubianka (sede da KGB e da prisão respectiva, na Praça Lubianka, em Moscou), cujos portões hoje se encontram fechados novamente aos pesquisadores.
 
O silêncio marca o início da história, onde acompanhamos o personagem Zakhar Pávlovitch e sua estranha ligação com o mundo através da vida das máquinas. Personagem que é a figura do mujique com o homem do despertar do século XX. Mas o seu mutismo é o que de fato importa e não a palavra ou o estrondo de motores e bombas. Zakhar é o retrato da bondade possível e não prescrita. Ele protagoniza os momentos iniciais do romance e terá aparições ao longo dele, protagonizando sua bela cena final.
 
Num clima de fábula, Platônov nos faz experimentar uma sensação de leveza que traz à percepção um mínimo de humanidade diante de realidade tão insuportável. E o cenário é a primeira tragédia revolucionária, movida pela grande fome do início dos anos 20. Confisco de colheitas, perseguição aos kulaks e uma forte seca foram decisivos para o desastre que atingiu várias partes do país. A Grande Guerra (1914–18) e a Guerra Civil (1918–20) já haviam ceifado muitas vidas de jovens capazes de trabalhar na terra e possibilitar as colheitas de que o país precisava.
 
Ante tal triunfo da morte, a fome pode ser um pouco mais cruel, levando os homens a flutuarem em um abismo que os leva a atos impensáveis mesmo em tempos de guerra. Daí o silencioso efeito que domina o ambiente da primeira parte da história e que será por diversas vezes referido até o seu final. Um silêncio que espanta os ouvidos ao ser escutado, como seria a expressão do comunista que se vê obrigado a enfrentar a própria alma. Consequência desse cenário trágico, o silêncio não é, portanto, acidental ou fruto de mero intuito realista, ou preocupação linguística. Como demonstra Zakhar, emudecer era sempre a melhor resposta, pois a palavra humana era para ele o que o murmúrio florestal era para o morador da floresta — algo que não se escuta.
 
Platônov percorre a Rússia que está a desaparecer e faz de seu romance uma elegia de despedida, com irrefutável tom profético, expondo a Revolução que luta (e se perde) para se impor a séculos de uma sociedade submissa. Mas também é a despedida à época dos patriarcas Púchkin e de Gógol, assim como todos os outros que formaram a literatura mais jovem e mais vibrante do século XIX.
 
Pressagia-se um trágico destino para essa missão. Passamos a seguir então os dois heróis Dvánov e Kopienkin numa saga irônica em busca do autêntico socialismo. Dvánov, menino idealista e puro, sofre com a perda do pai suicida e é acolhido por Zakhar. Ao se tornar adulto embrenha-se sem maiores motivações nas lutas políticas e recebe a missão de encontrar e examinar o socialismo. Ele a desempenha como mero espectador, e de seus testemunhos vamos nos inteirando de fatos e personalidades cheias de riqueza literária. Ele associa-se a Kopienkin, um soldado feroz apaixonado por Rosa Luxemburgo e que tem como grande companheiro seu cavalo Força Proletária.
 
Nas aventuras que serão descritas e mais ainda, quando chegarem ao paraíso de Tchevengur, onde o comunismo já se instalou plenamente, parece evidente que não resta ao autor nenhum resquício de crença utópica. O gênio de Platônov é tão grande que algumas vezes se tem a nítida impressão de se estar lendo um clássico russo do século XIX. Mujiques isolacionistas buscam por suas próprias mãos uma saída daquele mundo desconhecido e da nova vida trazida por pessoas estranhas; uma carroça corre desenfreada por uma estrada empoeirada e nos faz lembrar de Turguêniev e seu hemisfério rural visto pelos olhos de um nobre caçador; um velho sábio lança frases de sabedoria para um espantado revolucionário, na esperança de despachá-lo para longe dali e desvirar seu mundo que ficou de cabeça para baixo. O encontro de Dvánov com o pai é tocante e revelador de um lirismo exaltado e quase barroco. Mas é, sem dúvida, uma das cenas que indicam o aspecto indulgente do livro. Em certos momentos, Platônov é Tchekhov levado ao extremo.



 
O tempo todo o que se vê é o caminho de indivíduos despersonalizados com vontades desconhecidas por eles próprios, numa clara referência ao nomadismo causado pela revolução e pela fome. Personagens vêm e vão o tempo todo. Ficamos com a impressão de que já os encontramos, como se estivéssemos em um inusitado déjà vu. Uma estranha sensação de estar a sofrer por algo que não se recorda, mas que nos aflige, dado que o livro conta tristezas imensas. Uma delas é a que indica que os personagens só conseguem desenvolver pensamentos próprios em sonhos.
 
Platônov não é um escritor que simplesmente se leia. Toma nosso tempo. É uma leitura de espanto que exerce uma nítida atração. E toda a estranheza que nos fascina começa a fazer parte de nossas vidas, queremos abrir o livro em praças, semáforos e elevadores.
Tchevengur é um monumento, uma homenagem à criação e à imaginação do leitor. Nada do que acontece lá é realidade, pois tudo já está ajustado e a realidade é sempre o conserto de imperfeições e movimentos contrários à vontade. O lugar é um amontoado de pantomimas estranhas que não se permite a dúvidas que dispersem seu destino triunfal. Porém, é um espaço dominado pela quietude, solitário e entregue ao vento da estepe. De alguma forma, seus habitantes estão convencidos a pensar que o mundo é como desejam e não como ele é. Para isso, não é um problema eliminar quem está atrapalhando esse caminho, como os burgueses do vilarejo. As cenas de um massacre são bastante fortes para nos afastar de qualquer clima de crença em um ideal, a não ser em delírios extravagantes.
 
Platônov faz sua crítica de forma tão carregada de mistérios e estranhezas que isto pode ter sido o motivo de ele próprio ter sido eliminado. Havia, sim, algo de muito antissoviético ali. Mas o que precisamente? Para nós, homens do futuro, não é difícil ler Platônov como profeta. O que mais impressiona é ser profeta não apenas em relação ao passado, como também em relação ao presente. Tudo que veio a acontecer ficou ali anunciado, destino que parecemos condenados a repetir.
 
O próprio Stálin lhe reservou uma coleção de impropérios, após ler a novela Vprok (Para o futuro). Segundo a lenda, nenhum outro escritor angariou tantos de uma só vez (idiota, vulgar, farsante, engraçado sem graça, imbecil, miserável, canalha). Seus movimentos posteriores em busca de aprovação junto aos donos do poder serão meras estratégias de sobrevivência. Apesar disso, essas manobras não foram suficientes para evitar a morte de seu amado filho anos depois, ocasionada por uma tuberculose contraída por uma prisão inexplicável.
 
O que isso nos revela é o medo que a literatura causa aos governos e, em consequência, os atos de intolerância que pode desencadear. Para um escritor soviético, a aprovação do Estado tinha que seguir um enredo já definido por lei, na expressão de Nabokov. Evidentemente, Platônov jamais se encaixou nesse perfil.
 
A leitura de Tchevengur pode despertar muitas considerações de ordem político-ideológica. O que Platónov mostra a todo momento é a inevitável derrota dos idealismos pelos fatos. É o Miguel de Cervantes da Revolução. Em determinado momento, inclusive, a busca do comunismo nos remete às andanças de Dom Quixote e Sancho, encontrando pelo caminho toda forma de alegorias e crenças sem nenhuma conexão. A demonstrar os absurdos provenientes do predomínio das ideias impostas aos fatos temos o administrador de Tchevengur, Tchepurni. Ele é o grande representante dessa classe, capaz de repetir de forma monótona e sem nenhuma hesitação os maiores absurdos de idealismos extravagantes.
 
Mas o que importa é a demonstração de como os seres humanos conseguem lidar com o silêncio e o vazio que a todos acomete. É uma obra de índole universal e não situada no tempo ou acontecimentos históricos. Com seus personagens isolados dentro de si e transfigurados em revolucionários ou em engrenagens preestabelecidas, o romance cria um universo de fantasmagoria que remete a uma humanidade imensa. É ilustrativo o sequestro de mulheres famintas para servirem de esposas do comunismo, sendo que algumas acabam fazendo o papel de mães dos revolucionários.
 
Levanta questões ecumênicas como preencher o vazio que o fim de Deus deixou, visto que nos tornamos gravuras que adquirem movimento em busca de um destino. Esse sentimento é reforçado pelas belíssimas ilustrações de Svetlana Filíppova, artista plástica russa que combina realismo imagético com ternura. Para essa questão o livro tem suas respostas em um enorme número de referências religiosas que acomodam o mundo arquitetado pelos pensadores revolucionários do século XIX. Lênin, por exemplo, é o Pai, que a tudo vê e cuida. Andarilhos reproduzem o mito de Asvero, o judeu errante. O sol é o próprio Espírito Santo, e Tchevengur, enfim, o Paraíso na Terra. Afora isso, é pleno de imagens literárias construídas por um gênio imenso e devemos agradecer ao destino tê-lo trazido até o futuro que habitamos.
 
São muitas, portanto, as leituras que se legitimam para este livro, como acontece com as grandes obras. Há que se ler Tchevengur, todavia, como um manifesto à humanidade e à liberdade, especialmente à autodeterminação criativa. Tchevengur é, antes de qualquer outra definição, uma ode à independência da literatura.

**
Tchevengur
Andrei Platônov
Ars Et Vita, 584p.
 
 

Comentários

Sérgio Linard disse…
Obrigado por seu texto, Marcelo. Não conhecia o autor, mas já foi adicionado em minha lista de interesses.
Marcelo Jungle disse…
Muito obrigado, Sérgio!
Uma bela e real anáilise. Agradecida, Novita

17de agosto de 2022
Marcelo Jungle disse…
Eu que agradeço, Novita!
Denise Silva disse…
Excelente o teu texto, Marcelo! Não conhecia o livro, mas fui a ele bem apresentada.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596