Sete poemas de Miguel Torga
Por Pedro Belo Clara
Miguel Torga. Foto: Eduardo Gageiro. |
(O Outro Livro de Job, 1936)
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Possesso
De virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
De ser um anjo caído
Do tal Céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
(Diário I, 1941)
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
(Nihil Sibi, 1948)
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguilhões que nos ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro.
(Diário VI, 1953)
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
(Penas do Purgatório, 1954)
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.
(Câmara Ardente, 1962)
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pudesse combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
(Diário XII, 1973 - 1977)
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...
______
Miguel Torga nasceu em agosto de 1907, na
pequena aldeia de S. Martinho de Anta, no nordeste de Portugal.
Baptizado Adolfo Correia da Rocha, cresceu no
seio duma família de parcos haveres. Com apenas dez anos de idade foi viver
para a cidade do Porto junto de familiares próximos, onde serviu como porteiro.
No ano seguinte, seria expulso devido à sua constante insubmissão, levando-o a
prosseguir os estudos no seminário da cidade de Lamego. Apesar de nunca ter
desejado enveredar pelo sacerdócio, aí desfrutou dum sério contacto com o mundo
dos livros, incluindo os textos sagrados.
Dois anos volvidos, em 1920, emigra para o
Brasil com intenções de trabalhar na fazenda de um tio. Graças à astúcia
intelectual que o jovem Adolfo já apresentava, esse familiar irá propor o
pagamento dos seus estudos em Londrina com a condição de, mais tarde, regressar
a Portugal para frequentar o curso de Medicina na Universidade de Coimbra. O
plano resulta na perfeição. Em 1928, Torga consegue a sua ambicionada admissão,
o mesmo ano em que publica o primeiro livro: Ansiedade.
Com a entrada no mundo das letras de então, é
desde logo convidado a colaborar na revista Presença, vanguarda da
revolução modernista portuguesa. Durante este período, a ideia de assinar com
um pseudónimo ainda não o tinha visitado. Desconhecer-se-á a razão que o
motivou a fazê-lo, somente que os nomes foram criteriosamente escolhidos:
Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da literatura espanhola (Cervantes e
Unamuno), e Torga, em homenagem a um elemento bastante icónico da sua região
natal: a urze, um arbusto muito comum das montanhas graníticas de
Trás-os-Montes. (Um exemplar encontra-se plantado junto da campa do poeta,
firmando uma singela homenagem ao homem ali recordado.)
Compreender Miguel Torga é, numa primeira
análise, compreender cada linha dos recortes da sua paisagem nativa, da qual o
autor afectivamente nunca se irá separar — o seu carinhosamente designado
“Reino Maravilhoso” —, exercendo uma forte influência no carácter deste. Vagueando pelas linhas de muitos dos seus
trabalhos, os cenários que terão originado esses exercícios são de pronto
evocados: as longas e desertas planícies bravias, as serras rochosas, o
carácter agreste que povoa o imaginário transmontano e a sua orgulhosa solidão;
as searas do quente verão e os alvos mantos de neve que, como mortalhas tecidas
por mão de ninfa, imergem os cenários num silêncio redentor — locais onde
pululam espectros do mais rebuscado folclore, entre faunos e diabretes.
Torga, porém, não cai num regionalismo
excessivo ou num apego ao tradicional. De complexidade ímpar, era dotado duma
simplicidade assombrosa, amiúde revelando-se irónico, sarcástico, desafiador,
inconveniente, agridoce, dorido e agitador. Em suma, um rebelde assumido sem
preconceito.
Já no tempo das primeiras incursões literárias
era possível compreender o carácter mais íntimo do autor, desde logo no que à
religião diz respeito. Vincadamente contestatário, reafirma a sua singularidade
na clara intenção de quebrar padrões pré-estabelecidos. Torga declara-se ateu (mas
de inclinação agnóstica) num panorama imerso em extremosa religiosidade (no
caso, católica), questionando e colocando em causa toda a premissa que se lhe apresente.
Um dos primeiros gritos de Miguel Torga é um grito de revolta, consolidado num
gesto de insubmissão.
Torga, de certa forma, e numa fase inicial,
até se sente tentado a acreditar e a aceitar a fé católica. Mas acaba invariavelmente
esmagado, uma e outra vez, pela exigência da crença em questão, os seus dogmas,
castigos pouco transparentes e obrigações questionáveis. Torga simplesmente não
consegue abraçar uma fé que não se encaixa nos seus padrões éticos e morais.
Ainda que se vá verificando uma certa
indecisão face a tudo o que é tido por sagrado, absoluto e divino, a rejeição
religiosa assumida por Torga conduz a uma clara negação da transcendência e ao
que dela possa advir. Apesar disto, é possível afirmar que a indecisão
religiosa irá sempre acompanhar o poeta: mesmo quando nega a existência de Deus
não deixa de lhe falar, na esperança de poder ser escutado. É aqui que a
negação assume forma de rejeição. Essa ambiguidade é de tal forma vincada que,
por vezes, Torga não se contenta com a mera ideia do divino ser somente um
“sonho bom”. A omnipresença de Deus, de tão intensa, é uma maldita sombra que,
obstinada, não cessa de pairar sobre a presença humana. E assim se constrói
outro dos aspectos fundamentais da obra de Miguel Torga: a obsessão pela
presença Divina, que culmina numa expressa revolta contra um deus emudecido que
o persegue e fustiga com um silêncio desafiador.
A ira que direcciona a Deus, o divino
religioso (pois Torga refere-se sempre ao Deus que é conhecido através da
Bíblia e dos apregoares das igrejas), resulta numa invariável exaltação do
Homem, o verdadeiro herói da peça que se desenrola no palco da vida material,
ainda que a mesma, sendo efémera, o acabe por consumir. É, pois, na negação do
divino que Torga celebra todas as virtudes imperfeitas que compõem o Homem. A
vida não é uma bênção gratuita, é ele, o Homem, quem se esforça, quem
persevera, ama, sofre e chora, que suporta todos os espinhos da longa estrada
da existência humana, só raras vezes colhendo a doçura das rosas.
A obstinada negação de Deus traduz-se
igualmente na negação de tudo aquilo que a figura divina comporta, nomeadamente
a tão apregoada vida eterna. Sendo sempre fiel à sua crença, Torga rejeita toda
a promessa de imortalidade. Porém, não cessa de alimentar, secretamente, um
profundo receio de enfrentar esse absoluto, esse abismo desconhecido que o
negrume do pós-vida lhe permite antever. E de novo se manifesta a sua
ambiguidade: rejeita o perene, mas teme, no final, se equivocar e, perante ele,
nada poder realizar. Sobra, assim, o temor pelo suposto vazio que a morte
física lhe trará e a consequente vontade em marcar uma presença duradoira neste
mundo através da obra e da memória daquilo que foi.
A ligação à terra é outros dos aspectos
marcantes da obra do poeta transmontano. O seu legado literário, tanto a nível
poético como a nível narrativo, pauta-se inegavelmente por linhas que, unidas,
descobrem o perfil duma confessa obsessão telúrica. De clara inspiração
genesíaca, isto é, oriunda da terra e seus elementos, existe em Torga uma
marcante fidelidade à mãe de todos nós e uma vincada ligação desta ao sagrado.
Assim, na óptica do poeta, o divino manifesta-se na terra, sendo ele,
inclusive, a própria terra. Esqueçamos a figura desse Deus que exige cultos e
sacrifícios e sublinhemos o carácter sagrado da terra e dos seus ciclos
naturais. O próprio vocabulário a que recorre frequentemente remete o leitor
para esse elemento básico: palavras como “germinar” ou “fecundar” povoam a
poesia de Torga, evocando motivos agrícolas e, consequentemente, a magia dos
cenários bucólicos.
Apesar de tudo, não se dirá de Torga o ser um
poeta pagão. Ainda que a sacralização do elemento Terra aparente destruir essa
concepção, apenas se revela a fonte da mais alta das inspirações, fruto do
honesto amor que o poeta sempre lhe concedeu. Aqui, justamente se evoca o mito grego
de Anteu, o gigante que devia a sua força absolutamente descomunal a Gaia
(Terra), sua mãe. O contacto com a terra assume-se como a raiz dum terno amor,
decididamente digno da mais dedicada exaltação.
Não só por tais caminhos se pauta o universo
de Miguel Torga. Outros aspectos haverá dignos de nota e de registo, vários deles
quase um subproduto dos atrás explanados: uma amargura oriunda do constante
contacto com o sofrimento humano e uma surpreendente rispidez perante o
encontro com os outros, onde o poeta assume intenções de se escapulir a
qualquer hipótese de contacto íntimo, não se dando, assim, a conhecer em
essência. Este aspecto irá, naturalmente, resultar na formação duma bem
definida imagem de solidão e isolamento, sendo igualmente possível encontrar
uma expectativa desconsolada que quase sempre se traduz numa busca infinda — ou
num desejo de conquista irrealizável — e uma constante dicotomia
esperança/desesperança, onde a promessa do porvir, por um lado, lhe concede o
bom auspício dos novos dias e, por outro, a angustiante incerteza do que se não
vê ou sabe.
Numa fase bastante precoce do autor, ainda que
não se tenha revelado propriamente constante, Torga, como homem e poeta, não
deixa de se debruçar sobre as questões amorosas que fermentavam as suas
paixões, desde o notório conflito entre a “prostituta” e a “virgem”, num
período inicial, a “outra de sempre” e a “amada”, até ao amor mais sólido da
sua fase madura. Tudo isto sem se desprover da rigidez do seu quase sempre
empedernido coração que, como um dia escreveu, “não ama ninguém” (poema “Vendaval”,
de 1942). No entanto, todo aquele que arriscar um mergulho profundo no seu
âmago tomará contacto com aquela que é, em verdade, a sua substância mais pura
e terna, um lugar luminoso de compaixão e fraternidade.
Miguel Torga, graças à sua revolta contra o
divino e a rejeição dos seus sacros anexos, exaltando o Homem como o único ser
digno de canto e louvor, cria uma inevitável reflexão dos dramas da existência
e da condição humana, trágica por natureza. Mas, além desse sentido transversal
ao legado poético de Torga, é igualmente possível reter uma pautada abordagem
ao aspecto instintivo e sexual da vida em si, assim como uma forte ligação aos
mitos clássicos.
Por excelência o poeta do não-conformismo, um
indagador por natureza, o implacável contestatário, o insurrecto de pena em
riste, a sua imagem surge personificada na rebeldia de Orfeu (será nome dum
livro de poesia de 1958: Orfeu Rebelde), nomeadamente na não-aceitação
dos limites impostos. Torga é Orfeu e sente-se, definitivamente, Orfeu,
principalmente quando se confronta com a dificuldade da sua expressão poética.
É aqui que o tema assume contornos mais profundos: o poeta não se personifica
na imagem do mito somente pela sua rebeldia, mas também por uma séria, dolorosa
necessidade de se conseguir exprimir poeticamente. A não-aceitação dos limites
implica de igual modo uma constante necessidade de transgredir essas
fronteiras.
Mesmo admitindo tais frustrações, Miguel Torga
seria laureado com diversos prémios literários ao longo da sua carreira nas
letras (que se estendeu aos domínios da poesia, do conto, da novela e do
teatro), evidências que somente engrandecem o percurso nem sempre fácil do
autor. Dentre eles, destacam-se o Prémio do Diário de Notícias, em 1969, o
Prémio Morgado de Mateus (partilhado com o poeta brasileiro Carlos Drummond de
Andrade), em 1980, e o prestigiante Prémio Camões, em 1989. Em 1993, ser-lhe-ia
finalmente outorgado o prémio que consagraria todo o seu percurso literário.
Actualmente, a sua obra encontra-se traduzida em línguas tão diversas e
geograficamente distantes quanto o japonês, o sueco, o mandarim, o romeno ou o
búlgaro.
Faleceu em 1995, aos oitenta e sete anos, em
Coimbra, vítima de cancro. Em janeiro deste ano, foi inaugurada a “Casa Miguel
Torga”, na aldeia natal do poeta insubmisso.
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