Romance e ensaio

Por Massimo Rizzante
 




No Ocidente, o romance e o ensaio nasceram junto com um novo tipo de leitor: o homem comum que poderia conversar com outro de igual para igual. A maneira como ambos os gêneros se desenvolveram até hoje nos obriga a nos perguntar sobre suas tensões, seu presente e seu futuro.
 
1.
Começo do século XXI. Um dia de setembro. Estou entre amigos na Grécia, perto de Atenas.
 
Nossa amizade e nosso diálogo se baseiam há muitos anos em alguns pontos em comum:
 
a) Uma obra de arte ficcional não precisa de especialistas para ser lida e compreendida.
 
b) A tarefa do homem que lê é tentar apreender o valor da obra, tentar definir o que ela ofereceu de novo e insubstituível, e afirmar quais aspectos da existência revelou.
 
c) As descobertas contidas em um romance são, como descobertas, imprevisíveis. Portanto, não existe método verdadeiro; o pensamento crítico é ensaístico, não metódico, embora exija um conhecimento e uma competência muito elevados e, sobretudo, uma honestidade que certamente pode faltar ao artista.
 
d) Não sendo metódica, a crítica de uma obra pode ser equivocada. E, de fato, se equivoca muitas vezes. Afinal, é isso que a diferencia da ciência, onde cada nova descoberta apaga as anteriores.
 
e) O desafio do crítico é totalmente pessoal. Toda vez que você entra no jogo, é preciso aceitar o risco. No entanto, se a sua reflexão é autêntica, mesmo errada, é capaz de gerar outras reflexões e de dar vida a esse horizonte de pensamento que é indispensável à história de cada arte.
 
f) O público, formado por indivíduos presos na rede de suas ocupações, não é capaz de produzir um verdadeiro juízo estético. Se a revolução tecnológica que vivemos é o início de uma nova era, o problema da criação e da hierarquia de valores, como no passado, ainda é atual. Sem a crítica, as obras correm o risco de ficar sem nome, de não entrar na história de sua arte, pois uma obra só entra em sua história se suas inovações e descobertas forem reconhecidas como valores. Façamos a nós mesmos esta simples pergunta: poderíamos reconhecer o valor das obras de Tolstói, Kafka ou Rabelais sem as leituras críticas que as acompanharam? E ainda mais: sem esse reconhecimento, poderíamos traçar uma história da arte do romance?
 
g) O pensamento crítico sobre as obras foi engolido, durante a segunda metade do século XX, pela teoria da literatura e pelas ciências humanas que buscaram impor regras em um campo em que a regra é exceção. Dessa forma, a crítica tornou-se inimiga da arte do romance e por isso, hoje, os romancistas são quase sempre os únicos que podem dizer algo interessante sobre sua arte.
 
h) A crítica dos escritores — que não pode ser assimilada à dos professores, pesquisadores, historiadores da literatura — é sempre arbitrária e, portanto, sempre renovadora da tradição. Sem essa leitura arbitrária, que Ricardo Piglia chamou outra vez de “estratégica e técnica”, que supera a crítica dos críticos e cria sempre novos “precursores”, a literatura está condenada ao conformismo, às modas, à repetição do passado.
 
i) A crítica, nos últimos trinta anos, sofreu outros três ataques mortais: o crescimento exponencial da burocratização universitária; a subjugação do aparato midiático em relação à notícia que produziu um jargão cada vez mais sofisticado e inútil, juntamente com os slogans dos jornais que respeitosamente se ajoelham diante das modas do mercado editorial; e “a cultura do narcisismo” (Christopher Lasch) causada pela queda vertical do sentido histórico, para quem existe apenas o momento e não vale a pena viver, nem para os que vieram antes de nós nem para os que virão depois de nós .
 
2.
O romance, no Ocidente, nasce antes do ensaio. Rabelais chega antes de Montaigne. Gargântua e Pantagruel é publicado em Lyon em 1532; os Essais aparecem pela primeira vez em 1580, em Bordeaux. Se é verdade que, como os críticos muitas vezes afirmaram, as origens do romance podem ser rastreadas no tempo, o romance moderno tem uma data precisa de nascimento. As origens de uma forma de arte não coincidem com o seu nascimento. Estou falando do nascimento de uma forma artística e não de pesquisas filológicas, históricas ou antropológicas sobre os primeiros embriões ficcionais, que, por exemplo, podem ser encontrados nas sagas islandesas, no Decameron ou ainda mais cedo nos monogatari japoneses. O que quero dizer é que o europeu que lê Gargântua e Pantagruel é uma invenção de Rabelais. Preste atenção no “Prólogo”:
 
“Oxalá todos abandonassem seus ofícios e seus afazeres, esquecendo-se imediatamente de seus assuntos e ocupando-se apenas de sua leitura, sem que seu espírito se distraísse ou fosse forçado por outros ofícios e necessidades, até que todas as pessoas as conhecessem de memória! Pois assim, ainda que por um acaso hoje imprevisto as artes da impressão se perdessem ou os livros perecessem sem deixar nenhum, em tempos vindouros todos os homens poderiam contá-los e passá-los a seus filhos.”
 
Rabelais conversa com o seu leitor, o seduz, deseja que este homem comum, enraizado nas suas necessidades e nas suas tarefas, se perca inesperadamente, ou seja, dedique-se sem constrangimentos e distrações às suas récitas. Pela primeira vez, um autor não se dirige aos deuses do Olimpo ou às musas, nem invoca qualquer autoridade espiritual do passado, mas sente a necessidade, para que a sua obra encontre o seu canal e a seu tom, de acolher aqueles que estão próximos e transformá-los em personagem, em seres fictícios no meio de outros seres fictícios (os autores de Dom Quixote e Madame Bovary jamais esquecerão esse gesto inaugural).
 
Quanto ao ensaio, é verdade que, como muitos filólogos insistiram em afirmar, Montaigne teve vários predecessores, sendo o primeiro talvez Sócrates. No entanto, a forma artística do ensaio moderno nasce quando alguém decide se representar sem artifícios e nu. “Ainsi, lecteur, je suis moi-même la matière de mon livre”, Montaigne afirma no prólogo, acrescentando que é um “sujet si frivole et si vain”. Agora, além de se colocar livre das convenções, é importante ressaltar que o leitor a quem Montaigne se dirige é o leitor que ele mesmo representa e que coincide com a invenção de Rabelais; aliás, como no caso de Rabelais, o seu tema, ao contrário dos antigos temas épicos, trágicos ou líricos, carece de qualquer pretensão, e até, como ele próprio confessa, é “frívolo”, “vão”.
 
O que faz Montaigne? Leia os antigos e suas experiências misturando-as com as suas. Os Essais são o resultado absolutamente provisório (daí sua forma fragmentária, a falta de uma verdadeira ordem e de um sistema) da releitura do mundo antigo à luz de seu presente e de sua situação histórica individual. Como todos os humanistas, Montaigne ama o passado. Ele pensa que o passado de Propércio e Horácio e de todos os outros poetas antigos deve ser imitado, mas, ao contrário do resto dos humanistas (com exceção de Rabelais), seu objetivo é muito mais modesto. Sua pergunta é: o que todos esses grandes homens do passado têm a ver comigo? O que eles têm a me dizer? E, mais ainda, que aspectos da vida eles revelaram que eu ainda não descobri? São as mesmas questões levantadas pelo leitor do romance convocado por Rabelais no início de sua obra, que, renunciando a outros afazeres, deixa-se cativar completamente pela narração. Montaigne, em outras palavras, lê as obras dos antigos como se fossem récits: “Je n’enseigne point, je raconte...”
 
3.
Há outra questão: a história do romance é supranacional, assim como a história da crítica literária. Não se trata de uma questão de influência ou de “intertextualidade”. Nas últimas décadas, os críticos têm perdido muito tempo em difamar a originalidade de uma obra, reduzindo-a a uma espécie de plágio ou cópia de outras obras estrangeiras. No entanto, poetas e romancistas sempre olharam para outro lugar, no tempo e no espaço. Muitas vezes perceberam maiores afinidades com criadores que não pertenciam à sua língua, mas que os ajudaram a descobrir os territórios menos explorados de sua tradição: Baudelaire que lê Poe; Seféris lendo Eliot; Fuentes que lê Broch; Oē que lê Rabelais. Há uma frase de Remy de Gourmont que diz assim: “Toda vez que vês um movimento numa literatura, procure fora dessa literatura a força que a anima”. Isso deveria nos fazer considerar a história do romance moderno não como um acúmulo de diferentes histórias nacionais do romance, mas como uma história única que ao longo dos séculos, de Rabelais e da Europa, conquista todos os continentes, da América do Norte à América do Sul, até o Caribe, para depois desembarcar na Ásia e na África: uma história do romance mundial. E se a palavra “conquista” soa muito agressiva aos ouvidos dos bem-pensantes do multiculturalismo ou interculturalismo espalhados pelo planeta, gostaria de salientar que na realidade a conquista do território do romance moderno é sempre obra de cada um romancista em particular. Todo romancista se inscreve na história do romance (assim como todo autêntico leitor de romances se inscreve na história da crítica) para além do lugar geográfico de onde vem e da língua em que escreve. Uma empresa impossível? A literatura vive de desafios impossíveis. Se não, apenas sobrevive. Ou vive de renúncias, o que dá no mesmo.
 
4.
Hoje é necessário superar a noção de cosmopolitismo ou dar-lhe outro significado. Os artistas, afirma Carlos Fuentes, “criam outra História” que é sempre o resultado do que aconteceu e do que poderia ter acontecido.
 
Portanto, para pensar a história do romance de forma supranacional, seria necessário considerar a árvore genealógica que todo romancista cultiva e que se ramifica de sua própria obra. Nem a linguagem nem a imaginação de um romancista podem ser confinadas a um único país. Só assim a História e a história do romance nos serão devolvidas de uma forma não apenas mais legítima, como também mais profunda.
 
5.
George Steiner, em uma de suas inúmeras intervenções, trata do que chama de “formas híbridas”: seriam obras que estão na fronteira entre realidade e ficção e que se apoderam do romance a tal ponto que ele não consegue competir com a reportagem e depoimento. Para Steiner, a palavra “híbrido” define algo impuro, ou seja, sem valor. Mas eu me pergunto: o romance não está intimamente relacionado à imperfeição humana? E não foi sempre híbrido? Não foi, desde Rabelais, uma forma integral capaz de abarcar as outras formas? Provavelmente deveríamos nos fazer outra pergunta: por que hoje o eterno romance realista, ou seja, o romance reduzido à sua parte épica, à story, não tem competência? Ao longo de todo o século XX, o corpo do romance buscou, voltando aos pais fundadores, redescobrir a possibilidade de superar suas fronteiras. Por que ele deveria ter perdido a força que suas próprias raízes lhe dão hoje?
 
Há vinte anos se discute muito sobre as tendências que apagariam as fronteiras entre fato e ficção: Kapuściński, Calasso, Tom Wolfe e o novo jornalismo... Os autores que acabei de citar representam apenas a ponta do iceberg. Por baixo dela, porém, encontramos materiais que têm outra qualidade, inevitavelmente menor: erudição grafomaníaca, invasão de informação na criação individual, esterilização da imaginação, esquecimento do passado, ou seja, algo que nada tem a ver com a tradição que surgiu com os Essais de Montaigne. Parece-me que há uma atração fatal do romance pelo ensaio enciclopédico, uma atração oposta àquela que caracterizou o romance do século XX, que integrava o ensaio, a poesia, a reportagem e outras formas, dando-lhe uma unidade artística.
 
6.
Questão capital: o “ensaio narrativo” pode nascer em um momento em que o romance não pode mais ser concebido como um lugar de imaginação, como o Grande Jogo?
 
Em seu ensaio “Em defesa do romance, de novo”, Salman Rushdie critica Steiner, que proclama de uma vez por todas a morte do leitor (pelo uso sistemático do computador) e a morte do livro (pela sua transformação digital). Ao contrário do quadro traçado por Steiner, Rushdie afirma que “a boa literatura sempre esteve sob ataque”. A perspectiva apocalíptica de Steiner é injustificada se observarmos atentamente a segunda metade do século XX, protagonizada por um grupo de grandes romancistas: Nabokov, Calvino, Kundera, Kiš, Sebald, Pitol, Fuentes, Juan Goytisolo, Bolaño. Rushdie não se preocupa com o nascimento de novas espécies. O romance não tem motivos para se sentir ameaçado: “Aqui há espaço para todos”.
 
7.
Steiner defende seriamente uma grotesca centralidade do romance europeu. Essa nostalgia tem um efeito bizarro: força Rushdie a defender o centro perdido contra a vitalidade da periferia do mundo. A posição de Rushdie é muito clara: a origem dos grandes romances não importa. A nostalgia de Steiner é, ao contrário, a de um civis romanus assustado com o que está acontecendo na fronteira extrema do império. É a nostalgia de muitos escritores europeus cujo sonho é perturbado por romancistas da fronteira extrema que escrevem em sua língua. Olhando-se no espelho, a Europa tem medo.
 
Pós-escrito
 
Muitos países da fronteira extrema não conheceram o romance. Isso, porém, não significa que não tenham tido narrativas fundacionais e que, graças à introdução de formas orais poéticas e épicas desconhecidas da cultura do romance europeu, não possam regenerar sua história. E da mesma forma regenerar a história do ensaio. 


* Este texto é a tradução livre para “Novela y ensayo”, publicado aqui, em Letras Libres.

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