Quem tem medo da literatura experimental?
Por Domingo Rodenas de Moya
Eduardo Arroyo. Ilustração para Ulysses, de James Joyce. |
A resposta ao título deste artigo
é simples: os editores, que empalidecem pelo pesadelo de uma fuga em massa dos
leitores. É verdade que as obras experimentais que agora cumprem um século,
como Ulysses ou The Waste Land, já estão protegidas pelas bases
de concreto do cânone, o que permite aos curiosos se aproximarem delas sem medo
da irradiação do ininteligível e armado de guias tão estimulantes e instrutivos
como o que Eduardo Lago acaba de publicar sobre o romance de James Joyce, Todos
somos Leopold Bloom (Galaxia Gutenberg). São livros “que expulsam o leitor
de seus domínios, que nem permitem sua entrada”, como diz Lago, mas cuja
consagração como clássicos os transformou em forragem para a indústria
acadêmica, que amortece suas dificuldades e as torna inofensiva para o negócio
editorial. Larva. Babel de una noche de San Juan, de Julián Ríos,
que foi lindamente recuperado pela editora Jekyll & Jill quase 40 anos após
sua primeira edição, também pertence a esse clube de livros difíceis e prestigiados.
A expectativa em 1983 era grande depois
que Ríos havia antecipado alguns fragmentos uma década antes na revista Plural
de Octavio Paz (e depois em Vuelta, em Espiral, em Syntaxis...),
e o livro não decepcionou a espera. Esse primeiro fascículo de Larva — sua
continuação, Auto de Fénix, permanece inédito — chegava tarde, na
esteira de um neovanguardismo que havia consumido sua pólvora nos primeiros
cinco anos da década de 1970, mas foi muito além da opacidade prosística de
Juan Benet (em Una meditación, 1969), da sabotagem mítico-verbal de Juan
Goytisolo (em Reivindicación del conde don Julián, 1970), dos labirintos
verborrágicos e liberdades tipográficas de J. Leyva entre muitos (por exemplo
em Heautontimoroumenos, 1973) e até mesmo da fantasia
político-filosófica de Miguel Espinosa (Escuela de mandarines, 1974). De
fato, ele se relacionava imediatamente com três escritores cubanos que haviam mobilizado
e refeito a linguagem à vontade: José Lezama Lima, Guillermo Cabrera Infante e
Severo Sarduy, e, indiretamente, com duas tradições, a do inconformismo
sociopolítico expresso jocosamente através da tradição carnavalesca (Rabelais,
Cervantes, Quevedo, Sterne, Diderot, Flaubert...) e a do questionamento da
linguagem como ferramenta de representação do mundo (Joyce, antes de tudo, mas
antes de Roussel e depois de Céline, Arno Schmidt ou Guimarães Rosa). Larva
estava enraizada em diversas tradições, mas entrelaçando essas raízes com a
mesma despreocupação lúdica praticada pelos protagonistas do conto de fadas
erótico que lhe serve de pano de fundo: o de Babelle e Milalias em uma noite de
São João numa Londres multicultural.
Ríos não quis prescindir da
espinha dorsal da trama ficcional, mas a adelgaçou e esmagou em cenas: a
história pode ser seguida, entre elipses, saltos e trompe l'oeil, nas
páginas ímpares (as da direita), enquanto as páginas pares funcionam como
câmara de ressonância através de algumas notas que, nas palavras de Severo
Sarduy, são “como uma chuva de partículas, o resíduo” da fricção da linguagem
na história. E esse “vento solar” produz um magnetismo fonético incessante
entre palavras de línguas muito diferentes, tendo o espanhol como massa mãe,
através da qual se confrontam, se fundem e se questionam com humor. O festival
linguístico que Ríos orquestra é tão espetacular quanto exigente para o leitor,
que tem a oportunidade de admirar e se emocionar, de se alegrar e sucumbir ao
tédio. “Quem te escreve bem te faz sofrer”, lê-se numa das notas. Cada página é
um prodígio de engenhosidade e um desafio à agilidade mental (e ao arquivo
cultural) do leitor, que também é remetido a algumas Notas de la Almohada concebidos
por Babelle com interpolações do terceiro vértice do trio protagonista: um Herr
Narrator intruso com não pouco do autor.
Esse maquinário complexo, que
proporciona momentos únicos de deleite estético, é acessível, no entanto,
apenas a uma minoria de leitores. Na ausência de um guia como o de Lago sobre Ulysses,
o livro coletivo Palavras para Larva publicado em 1985 por Andrés
Sánchez Robayna e González Díaz-Migoyo é útil. Seu tom predominante é mais celebrativo
do que analítico, mas não deixa de ser recomendável.
Ríos quis evitar as arestas do
experimentalismo mais hostil ao leitor, quis provar que é possível narrar a
partir de uma linguagem incandescente que refutaria por meio de fatos a ideia
(de Edoardo Sanguineti) de que a vanguarda, para se proteger contra sua
mercantilização, deveria erguer um muro intransponível. Em seu trabalho
posterior, em Amores que atan (1995) ou Monstruario (1999), abunda
nesse caminho. Mas a verdade é que hoje Larva continua a ser um livro
tão fascinante quanto dissuasivo, um oito mil literário cuja ascensão promete
belezas e revelações únicas, mas para o qual muitos leitores não se veem em forma
suficiente. Ríos era bem ciente da laboriosa solidão que pedia ao seu leitor. O
regresso às livrarias deste Finnegans Wake espanhol, uma sátira menipeia
em que o castelhano se disfarça de outras línguas e o engano aos olhos
cervantinos torna-se engano dos ouvidos, convida-nos a considerar a validade
atual da literatura mais ousada num mercado onde a dificuldade foi demonizada
como um temível repelente de leitores.
Paul Valéry, relembrando suas
conversas com Stéphane Mallarmé, lamentava que a facilidade de leitura fosse a
norma, já que, com o reinado da pressa, “todos tendem a não ler mais do que
aquilo que todos podem escrever”, porque para ele só o incitava livros que
ofereciam resistência. A querela entre fáceis e difíceis (ou, com simplificação
grosseira, entre realistas e experimentais) tem entre nós um lance famoso na
polêmica, em 1970, entre Isaac Montero e Juan Benet. No entanto, nessa luta,
Benet não atacava em nome de toda a vanguarda (Joyce era para ele um
costumbrista) nem de toda a neovanguarda (que ele tendia a desprezar,
especialmente a de ascendência francesa), mas da autonomia da literatura contra
os servilismos morais ou políticas, que para ele significa o primado da
elocução, a construção de um estilo. Foi um exemplo do que Roland Barthes
chamou de écrivain, alguém “que absorve o porquê do mundo em um como
escrever”, cuja escrita é intransitiva, em oposição à transitividade do écrivant,
sempre a serviço de um fim (ideológico, didático...) mais além da linguagem. A
coisa estava clara: ou a literatura tout court ou a escrita selvagem; ou
um era um escritor ou um escrevente. Logo as leis do mercado amainariam essa
hierarquia e ela poderia ser chamado de Mr. Difficult, como Jonathan
Franzen fez com William Gaddis em 2002 nas páginas de The New Yorker.
O delito de Gaddis, do que vinha à
luz no seu romance póstumo Agapē Agape, havia consistido em não aceitar
que o escritor atual deve entreter seus leitores competindo com outros entretenimentos
mais sedutores, como as séries para TV e os vídeo games. O tipo de literatura
abstrusa e inacessível que ele atribuía foi um tiro no pé da indústria do livro
em um cenário em que a palavra lutava para sobreviver. Para Franzen, Gaddis
encarnava o anacrônico escritor de Estatuto, para quem o valor da obra
independe da apreciação dos leitores, enquanto o escritor de Contrato, que ele
defende e representa, assume o dever de absorver e emocionar o leitor ajudando
para suportar sua solidão existencial... As respostas foram imediatas e talvez
a mais entoada e ácida foi a de Ben Marcus no ensaio Por qué la literatura
experimental amenaza con destruir la edición, a Jonathan Franzen y la vida tal
y como la conocemos (Jekyll & Jill), traduzido em 2018 por Rubén Martín
Giráldez, que acrescentou alguns esplêndidos “primeiros passos de pedantismo”
de sua autoria no epílogo. Seus argumentos são inapeláveis; não há uma única
maneira de representar a realidade, a literatura é a arte da linguagem, a arte
não pode abjurar a busca e acomodar-se às convenções... Mas não mudam a
teimosia de que qualificar hoje um escritor experimental equivale a dizer que seu
trabalho “não é relevante, não é legível e é agressivamente masturbatória”. É
uma provocação.
E, no entanto, com o
experimentalismo em crise, pergunta-se sobre sua sobrevivência inquestionável.
Permanecerá como uma prática secreta e conspiratória, como uma igreja
misteriosa cujos fiéis, espalhados pelo mundo, cultivam e compartilham, como
autores e leitores, um obstinado culto à linguagem? Em 2004, o argentino Damián
Tabarovsky defendeu com veemência uma experimentação literária radical, alheia
ao público, sem outra rede protetora que o “louco desejo de novidade” e
dirigida à linguagem. Uma literatura fora do mercado, longe das universidades,
cujo único mundo é “o mergulho na linguagem” e que estabeleceria uma comunidade
imaginária, invisível e inconfessável, a comunidade inoperante da literatura.
Esta comunidade rejeitaria o princípio da comunicação, o instinto gregário, o
impulso polêmico, e seria constituída por um conjunto de solidões. Ele chamou
de literatura de “esquerda” aquela que desordena e faz a linguagem delirar
(como Larva), que não nos faz acreditar em nada e nem impõe um sentido,
que desestabiliza crenças e transforma incerteza em força. Em suma, aquela que
gera uma língua estrangeira dentro da língua, como dizia Deleuze, ecoando
Proust.
O status atual do experimentalismo
é o do espectro: ele está morto, mas ainda está entre nós, uma sobrevivência
que o próprio Tabarovsky insistiu em O Fantasma da Vanguarda (2018):
embora esse fantasma não responda quando questionado, seu a mera possibilidade
(o fato de ele ter existido) o torna indispensável no frágil futuro da
literatura. Essa é a convicção subjacente a dois ensaios recentes: ¿Qué será
la vanguardia?, de Julio Premat, e La vanguardia permanente, de
Martín Kohan.
Embora o quadro de suas reflexões
seja argentino, os termos em que são apresentadas as tornam válidas fora dela.
Premat está interessado em saber até que ponto o impulso vanguardista, como
relíquia de um passado em que o futuro era possível, poderia ser reativado em
nosso presente, mas suas conclusões estão longe de ser edificantes: “A radicalidade,
a oposição, a experimentação” operam como armas “anacrônicas” de reivindicação
e defesa do literário, mas também como questionamentos promissores e incitações
decisivas para continuar criando. A crise da vanguarda, sendo esta a epítome do
literário, nada mais é do que a própria crise da literatura. Kohan, por sua
vez, concede uma espécie de total disponibilidade à insubordinação
vanguardista, com toda a sua carga de repulsa política, mas admite que em seus
retornos ambíguos deve tomar cuidado com a neutralização e a domesticidade,
contra as versões espúrias de si mesma, contra as poses e os motivos.
Larva já é obra para professores, combustível
ou pasto para teses acadêmicas de ponta, artigos e congressos? Permanece um
monumento visitável, em letra inerte? É de esperar que não seja assim. Talvez seja
impossível perfurar a linguagem para ver por seus buracos o que está escondido
do outro lado (a imagem é de Beckett), mas Ríos chegou muito perto de
alcançá-lo e essa aventura estética e cognitiva não expira, mesmo que soe anacronicamente
idealista.
* Este texto é a tradução livre para “¿Quién teme a la literatura
experimental?”, publicado aqui, no jornal El País.
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