Os nomes que fizeram o nome Saramago
Por Pedro Fernandes
José Saramago, anos 1980. |
Palavras para um livro de
palavras
É conhecida a história do homem
que, ao acaso, inaugurou uma linhagem familiar em Portugal. O filho de José de
Sousa e Maria da Piedade repetiria o nome do pai se não fosse a atitude livre
de um funcionário do cartório que resultou no acréscimo da alcunha pela qual a
família paterna era conhecida em Azinhaga. E foi então que o nome de “uma
planta herbácea espontânea, cujas folhas naqueles tempos, em épocas de
carência, serviam de alimento na cozinha dos pobres”, passou ao sobrenome de quem
alcançaria na vida pública a mesma projeção singular. O registro está no
conhecido texto de apresentação autobiográfica escrito pelo autor e que abre a edição
de Saramago. Os seus nomes: um álbum biográfico, organizada por
Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel.
Quando o nome de José Saramago
começou a circular no Brasil, país onde sua presença se integraria com a mesma
força que outros nomes da literatura portuguesa — seja Eça de Queiroz e
Fernando Pessoa os dois primeiros — já se conhecia o mesmo sobrenome. A
imprensa carioca noticiava com frequência o nome de Evaldo Saramago Pinheiro,
na altura integrado à cena política do Rio de Janeiro, estado pelo qual foi
deputado federal e estadual. Mais tarde se esclareceria que este Saramago,
diferente de idade apenas oito anos do português, era apenas uma coincidência
do primeiro.
Note que todo imbróglio dos nomes
guarda qualidades literárias e, consciente ou não, José Saramago não se
deixaria de recorrê-lo como uma questão importante no desenvolvimento da sua
obra, sendo alguns dos seus materiais essenciais o gesto inusual, o acaso, a
coincidência, o problema do nome próprio, a assunção de uma singularidade, a
alteridade, ou puramente o ato de nomear. Tudo isso está sintetizado em Todos
os nomes, uma das fontes para os autores do livro agora apresentado. Mais
que isso, eles utilizam-se do romance de 1997 para construir seu método de
sistematização das informações oferecidas neste álbum.
Em Todos os nomes narram-se
os périplos de um funcionário de cartório, um alienado ao seu trabalho;
chama-se Sr. José (um nome que apesar de próprio se perde no campo do comum e
ao mesmo tanto se complexifica pela reiteração do nome do autor do romance),
chama-se Sr. José e a condição de submetido começa a se modificar quando certa
vez, em meio ao hobby de construir para si uma coleção de verbetes de
gente famosa, se depara com os dados de uma mulher desconhecida. A descoberta é
um gesto inaugural em vários sentidos: nas descobertas de si, do outro, do
amor, do poder, do seu papel na comunidade humana, da sua situação etc. Note
que o lugar onde trabalha é o de repouso de todos os nomes, dos vivos e dos mortos,
um grande arquivo, portanto, ou uma extensão da secular memória de tipo enciclopédico.
Tudo isso cabe no livro de Schnetzer
e Viel: um álbum também é um arquivo, uma peça de memória, um derivado da enciclopédia.
E o que nele se guarda? Fotografias e nomes. Comuns e próprios. Reais e
inventados. De mortos e de ainda vivos. Isto é, falamos de uma obra que mimetiza
o conteúdo da ficção saramaguiana. Aqui, a personagem se despe do trivial. É
Saramago o que se lê no título e não o nome do protagonista de Todos os nomes.
Mas, este nome próprio não se sobrepõe ao conjunto dos outros nomes evocados. Faz-se
entre eles, como sua parte. Os autores de Os seus nomes buscam
descobrir, a partir da variada obra do seu biografado, as peças que o
constituíram. E dela, pinçaram um rico conjunto de nomes sequenciados em quatro
pastas assim denominadas: espaços/ lugares; leituras/ sentidos; escritas/ criações
e laços/ pessoas.
Assim, como não existe uma ordem
(de importância, cronológica ou alfabética), cada seção não guarda apenas o que
se designa na sua identificação. Isso porque existem nomes de fronteira e um
exemplo é Camões, poeta que marca o escritor enquanto foi transformado em
figura de sua obra; ou ainda, porque em toda classificação, quanto mais atenta
e criteriosa maior é dificuldade de ordenação objetiva, uma prova de que as leis
físicas nem sempre se firmam no sectarismo. É o caso das presenças de Mia Couto
e Gonçalo M. Tavares em “leituras/ sentidos” e que melhor ficariam na última
pasta. Sem falar de algumas ausências ou sobras comuns a quaisquer listas, sempre
cheias, nunca completas.
Ao todo são mais de duzentos
verbetes que constituem esta pequena reprodução da Conservatória Geral do Registo
Civil. Sendo Saramago quem é, talvez seja óbvio, olhar com atenção para a
segunda das quatro pastas desse arquivo: a das leituras. São várias as ocasiões
quando o escritor se referiu aos autores que o marcaram, uma delas, registrada
nos Cadernos de Lanzarote, quando o escritor recorda o pedido de uma
revista espanhola da “sua árvore genealógica literária”; disse então que seus
galhos se faziam de “Luís de Camões, porque, [...] todos os caminhos
portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa
nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a
Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de
Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a
humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é
preciso ser-se génio para escrever um livro genial, o Húmus; Fernando
Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a
Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero; Eça de Queiroz,
porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luis Borges, porque inventou a
literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.”1
Isto é, ainda que tenha negado o
papel de leituras que tivessem levado diretamente ao seu estilo2, nunca
deixou de pontuar os nomes que o fizeram ser o homem de palavras que foi desde
cedo. Desde as crônicas e As pequenas memórias sabemos do encontro de
José Saramago com a literatura a partir de A Toutinegra do Moinho, de
Émile de Richebourg, livro que habitava a casa dos Barata, família de Lisboa com
a qual a sua família dividiu casa durante um bom par de anos; foi este o livro que
indiretamente o levou, como disse, a dar o primeiro passo para as solitárias
noites na biblioteca do Palácio das Galveias, onde se fez o leitor autodidata,
movido ainda pelo conteúdo dos livros escolares de Português que lhe “abriram
as portas para a fruição literária”, numa época quando a escola técnica incluía
entre suas matérias de estudo a Literatura. Foram os Cadernos Culturais
Inquérito, os primeiros livros comprados pelo autor à época.
Essa base rudimentar contrasta com
os frondosos galhos da assim chamada árvore genealógica literária. Sem os nomes
de Raul Brandão e Gógol, todos os outros aparecem registrados no álbum de
Schnetzer e Viel. Mas, enquanto faltam uns, só agora podemos visualizar uma
janela capaz de oferecer um contato mais evidente com a constelação de escritores
e obras que, de uma maneira ou outra, constituíram marca indelével no seu universo
criativo, na sua formação intelectual e política; estão reunidos Almada Negreiros,
Aquilino Ribeiro, Armindo Rodrigues, Sophia de Mello Breyner Andresen, Federico
García Lorca, Rafael Alberti, Antonio Machado, Ángel González, Molière,
Montesquieu, Colette, Flaubert, Proust, Rainer Maria Rilke, José Régio, Karl
Marx, Georges Duby, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral
de Melo Neto, José Donoso, Eliseo Diego, entre outros.
Se a organização desse livro se
estrutura à maneira do sugerido em Todos os nomes, um arquivo ou caderno
de verbetes, os autores buscaram privilegiar as dimensões essenciais na
composição de uma vida: as memórias que dão forma a toda existência. No caso da
sua personagem, a biografia se articula em pelo menos três linhas indissociadas
que são, a obra, a história e a atitude ética. A pluralidade dos elementos se
guia por uma unidade bastante cara a José Saramago, a da coerência entre
pensamento e ação, costurada por uma lucidez sempre viva e atenta aos
princípios que colocam o homem como medida de todas as coisas. E o álbum
biográfico fez disso seu componente essencial.
É nesse sentido não apenas um
livro de celebração ao escritor por através dos elementos que o constituíram; é
a reafirmação daqueles valores que significam o melhor de nós: nossa capacidade
de renovação da vida pela arte, pela amizade e pela reivindicação dos ideais revolucionários
que nunca deixaram de cair em obsoletismo — falamos de liberdade, igualdade e
fraternidade. Que bom seria que este fosse um livro inspirador para novas
gerações de Josés, capazes cada um de inaugurar sua própria singularidade, sem
deixar ao acaso as valiosas contribuições que seus antepassados já deixaram.
Palavras de um livro de
palavras ou um pequeno cânone segundo Saramago
ANTÓNIO VIEIRA é uma dívida que
reivindico. E mesmo que me digam que tal influência não se nota assim tanto na
minha própria linguagem, sei que, profundamente, é o verbo vieiriano que vai
ressoando no meu cérebro enquanto escrevo. (Correio do Minho, 12 de
fevereiro de 1983)
DE UMA PESSOA que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões já se sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas, acabaram por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que sobra: uma pálpebra caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que Fernando Pessoa também vai a caminho da invisibilidade, e, tendo em conta a corrente multiplicação das suas imagens, provocada por apetites sobre-excitados de representação e facilitada por um domínio generalizado das técnicas, o homem dos heterónimos, já voluntariamente confundido nas criaturas que produziu, entrará no negro absoluto em muito menos tempo que o outro de uma cara só, mas de vozes também não poucas. Acaso será esse, quem sabe, o perfeito destino dos poetas, perderem a substância de um contorno, de um olhar gasto, de um vinco na pele, e dissolverem-se no espaço, no tempo, sumidos entre as linhas do que conseguiram escrever, se do rosto sem feições nem limites ainda alguma coisa vem intrometer-se, está garantido o dia em que mesmo esse pouco será definitivamente lançado fora. O poeta não será mais que memória fundida de memórias, para que um adolescente possa dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como se ter sonhos e declará-los fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia. (Um rosto para Fernando Pessoa, 1985)
O MEU racionalismo tem uma raiz
“voltairiana”. Esse ceticismo, essa ironia e essa espécie de compaixão pela
loucura dos homens, vêm daí. (Expresso, 2 de novembro de 1991)
O AUTOR está no livro todo, o
autor é todo o livro, mesmo quando o livro não consiga ser todo o autor. Não
foi simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave Flaubert
declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me, até que, ao dizê-lo não
fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem faltar ao respeito
devido ao autor de Bouvard et Pécuchet, poder-se-ia mesmo dizer que tal
afirmação não peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert acrescentar
que ele era também o marido e os amantes de Emma, que era a casa e a rua, que
era a cidade e todos quantos, de todas as condições e idades, nela viviam,
casa, rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o
espírito, o sangue a carne de tudo isto, tiveram de passar, inteiros, por uma
só pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o homem, a pessoa. Também eu,
ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, sou a Blimunda e o Baltasar de Memorial
do convento, e O Evangelho segundo Jesus Cristo não sou apenas Jesus
e Maria Madalena, ou José e Maria, ou José e Maria, porque sou também o Deus e
Diabo que lá estão… (Revista Ler, primavera-verão, 1997)
SE HÁ um escritor do século XX por
quem tenho veneração, esse é Kafka, e reivindico ser kafkiano. Kafka disse que
um livro tem de ser o machado que corta o mar gelado da nossa consciência; tomo
isso como um programa de trabalho. (Época, 21 de janeiro de 2001)
EU TRADUZIA livros de Georges
Duby, um deles, O tempo das catedrais, que me fascinou. E aí eu pude ver
como é tão fácil não distinguir aquilo a que chamamos ficção e aquilo a que
chamamos história. A conclusão, certa ou errada, a que eu cheguei é que a
rigor, a história é uma ficção. Porque, sendo uma selecção de factos
organizados de certa maneira para tornar o passado coerente, é também a
construção de uma ficção. (Jornal de Letras, 18 de abril de 1989)
FOI PELA PORTA das Memórias
póstumas de Brás Cubas que entrei na obra de Machado de Assis. A minha
edição, a quarta, publicada em 1914 pela Livraria Garnier, apresenta um prólogo
e que o autor alude aos escritores que influíram em Brás Cubas, e aí saem,
inevitavelmente, Sterne e Xavier de Maistre. Todos os escritores, quer os
autodidatas como Machado de Assis, quer os que foram beijados na fronte pelas musas
e por uma mãe furiosamente intelectual como Elias Canetti, são filhos do que
leram e de si mesmos. Esses são os verdadeiros pais. Ora, ao menos que eu
recorde, não se tem falado de Diderot na hora de dilucidar as influências
(portanto as leituras) de Machado de Assis. Dir-me-ão que se Brás Cubas não fala
de Diderot é simplesmente porque não o teria lido. É possível. Mas então
ninguém me tirará da cabeça que foi Diderot quem leu a Brás Cubas… (The Author as Plagiarist — The
Case of Machado de Assis, 2005)
N’O ANO DA MORTE de Ricardo
Reis há muito de Borges. O ser, o não ser, o estar, o não estar, o espelho,
o que mostra e oculta. Não é em primeiro grau. Eu também não gostaria que se
reconhecesse lá Borges em primeiro grau. Mas é a presença de tudo em tudo. É o
que eu digo: Borges está lá. Inclusivamente na ficção que inventei para Ricardo
Reis, que se autoexilou no Brasil e voltará para Portugal depois da morte Fernando
Pessoa e encontra na biblioteca do barco, do Highland Brigade, um livro
de Herbert Quain, The God of the Labyrinth. (Depoimento no Museu
Nacional de Belas Artes em Buenos Aires, 21 de agosto de 1999).
**
Saramago. Os seus nomes: um álbum biográfico
Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel (Orgs.)
Companhia das Letras, 352p.
Notas
1 Entrada referente a 21 de julho
de 1996 dos Cadernos de Lanzarote II — Diário IV (São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, p. 179).
2 Em Diálogos com José Saramago
(Lisboa: Caminho, 1998, p. 73), Saramago assim responde a Carlos Reis: “Leituras
que tivessem levado directamente àquilo a que estamos a chamar o meu estilo,
não há.”
3 Excertos de Saramago. Os seus
nomes: um álbum biográfico (São Paulo: Companhia das Letras, 2022), páginas
116, 120, 137, 142, 144, 146, 148, 152, respectivamente.
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