Na prisão, de Kazuichi Hanawa
Por Joaquim Serra
Condenado por porte ilegal de
armas, o artista Kazuichi Hanawa vive os dias numa prisão em Hokkaido. Para
nós, acostumados com a aparente arbitrariedade como norma do sistema
carcerário, a ordem na prisão japonesa parece soar inverossímil. A prisão de
Hanawa, em 1994, serviria de exemplo para o país; depois da queda da União
Soviética, “militares russos, em uma busca desesperada por dinheiro, se
aproveitavam do afrouxamento da vigilância para contrabandear armamentos para
Hokkaido” (p. 7). Nenhuma apelação foi aceita, a adoração de Kazuichi Hanawa
por armas de fogo seria punida mesmo diante de testemunhas que afirmaram ser o
crime um ato isolado.
Em Na prisão, Hanawa não
pretende focar na sua experiência psicológica como interno, mas parece partir
da própria organização do espaço como meio de repressão individual. As
primeiras ilustrações mostram homens sem rosto, bonecos que Hanawa utiliza para
mostrar como se deve vestir o uniforme da penitenciária, suas roupas de
inverno, de verão e o jeito que todos por lá põem e tiram os casacos. Há também
uma forma de dobrar tudo, a roupa do dia a dia e o pijama, nos detalhes
práticos de um manual. Logo depois dessa breve introdução, Hanawa desenha o
espaço prisional, com atenção aos detalhes das estruturas de horários e deveres
dos internos. Aqui estamos em terreno mais ou menos conhecido. Muitas narrativas
carcerárias costumam enfocar o espaço como principal personagem, afinal são os
detalhes das paredes e celas que convivem com os presos durante anos. Do espaço
também surgem as histórias de Estação Carandiru, de Drauzio Varella, ou
de “Enfermaria n°6”, de Anton Tchekhov.
Assim também começa a linha
narrativa de Na prisão. A primeira história mostra um homem que acabou
de chegar na prisão e tem de enfrentar a fissura por nicotina. Num ambiente
completamente diferente das prisões brasileiras, em que o cigarro funciona como
papel-moeda, na prisão de Hanawa não se pode fumar. Depois do almoço, o preso
não pode se deitar ou andar pela cela individual. Deve se sentar e esperar a
próxima ordem.
Quando é dia de exercício, o preso
deve arrumar a cela antes de sair e permanecer ajoelhado até que venha a ordem
dos guardas. Uma das punições internas por alguma irregularidade também é feita
assim: o preso ajoelha e não pode se mover. Os guardas não se referem aos
presos pelos nomes ou sobrenomes, os uniformes idênticos sequer trazem alguma
informação sobre o detento. Seus nomes foram trocados por números que devem ser
verificados em cada vistoria. Diante dos carcereiros para a chamada, é preciso
ter a máxima disciplina, tanto nas respostas submissas e no vestuário. Nos
primeiros dias de prisão, o que mais impressiona Hanawa é a alimentação e como
é tratado, “na nossa legislação”, pensa ele, “não sinto qualquer tipo de
desprezo ou sentimento de vingança em relação aos criminosos. Desse jeito, quem
leva a pior e ainda tem que se conformar são as vítimas”.
Mas a ordem na prisão parece
responder a essa inquietude de Hanawa. Numa cela comunitária, para onde Hanawa
é transferido, alguns presos começam uma pequena algazarra que bagunça a cela.
A cabeça do carcereiro aparece na janelinha gradeada; “O que é isso? Onde vocês
pensam que estão?”, grita, “Pensem nos familiares que estão lá fora, sofrendo
por vocês”. Mas nada fica barato, a televisão é desativada na cela. Em outro
momento, um homem da cela da frente é levado para a punição por ter feito um
jogo de palavras cruzadas, um crime aos olhos da lei. Não é possível esquecer
das ordens por um segundo, já que as punições resultam diretamente na condicional.
No trabalho nas fábricas, é
proibida a conversa, olhar para o lado e se levantar. Caso precise ir ao
banheiro, o preso deve preferencialmente esperar o fim do turno e pedir ao
carcereiro, caso contrário, deverá seguir uma série de códigos de conduta. Hanawa
ressalta o uso contínuo do “por favor” quando o preso precisa falar com algum
guarda. Não poder olhar para os lados dificulta a mobilidade do preso e o
próprio trabalho a ser feito na fábrica. Mas também a ordem carcerária não
parece se importar com a eficiência da produção, mas com o modo de execução das
tarefas.
No relato de Kazuichi Hanawa percebe-se
que a mobilidade do preso como indivíduo é completamente afetada. A organização
carcerária dessa prisão parece entender que a primeira forma de punição é a
perda total de liberdade, submetendo o indivíduo a um sistema de normas que
devem ser cumpridas à risca, o que cria ruídos na visão de Hanawa sobre o seu
papel como condenado. Entre os companheiros de cárcere, o personagem encontra
inúmeros homens que não se arrependeram dos seus atos criminosos, abrindo um
leque de indagações ao leitor sobre a efetividade daquele modelo prisional.
Hanawa e os outros presos parecem
antes interessados em manter certa integridade e direitos dentro daquele
sistema, não explicitamente em tom de denúncia contra a organização prisional,
mas de encontro com a perda de liberdade do homem enquanto preso. Suas histórias
nos fazem pensar numa punição repleta de limites ordenadores como uma resposta
da sociedade contra aqueles que cometeram crimes, mas que isso, por si só, já é
a punição pelos atos criminosos, algo que, quando lemos a respeito das cadeias
brasileiras, está muito distante.
Para este texto:
Kazuichi Hanawa. Na prisão. São
Paulo: Conrad, 2005.
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