Hermann Hesse: a desaparição dos oráculos
Por Christopher Domínguez
Michael
Hermann Hesse. Foto: Martin Hesse. |
Estamos diante de um dos
romancistas mais lidos do século XX. De 1904, quando apareceu Peter
Camenzind, até quando não encontrei mais o exemplar de Narciso e
Goldmund que eu havia localizado na semana passada, Hermann Hesse
(1877-1962) é o rito de passagem na leitura para milhares de jovens em muitas
línguas.
Ao contrário de outros “educadores”,
a popularidade de Hesse sobreviveu ao menosprezo dos críticos e, acima de tudo,
ao dissimulado aborrecimento de quem o leu e o esqueceu. Hesse não precisa mais
de nós. Alguns, eu mesmo nestes dias, espantados ante a morte, precisam dele.
Sinto falta e odeio o que Hesse talvez simbolize: a adolescência.
Os historiadores da vida cotidiana, uma
ciência inexata, nos ensinam a desprezar as essências que identificam as idades
consagradas da vida. Infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice
seriam, mais do que uma sucessão biológica, um museu de cera criado
artificialmente pela cultura. A criança, tal como entendida pela modernidade,
teria nascido no século XVIII, filho de Rousseau. O Emílio abolirá a
sentença de Santo Agostinho, porque antes de receber o batismo da Igreja a
criança é um ser sem razão, embora carregado de pecado: se morre sem batismo,
queimará eternamente no inferno. Mas depois de Jean-Jacques, a pedagogia
oscilará entre o pequeno adulto e a criança como pai do homem, segundo a frase
de Wordsworth.
A adolescência, se é que foi uma
das grandes obras inventadas pela literatura moderna, ocupará esse reino de
ambiguidade entre a puberdade e uma maturidade que se cruza como uma ponte no
nevoeiro. Mas a história é antiga. Entre as objeções pagãs à vida de Jesus está
a espantosa ausência, na narrativa evangélica, de sua passagem pela
adolescência. Entre seus 12 anos, quando ele apostrofa os doutores da Lei no
Templo, até o início de sua pregação após o retiro batismal no Jordão, os anos
de aprendizado passam no escuro. A civilização greco-latina tinha que prestar contas
desse esquecimento capital. Gregos e romanos — como os discípulos de Confúcio,
Buda ou Quetzalcóatl — se empenharam com a práxis de uma educação. A pedagogia
das virtudes cívicas e militares, bem como o cultivo da saúde do corpo e da
mente, preocuparam as tradições espirituais anteriores ou paralelas ao
cristianismo. Os vários ritos de iniciação, quando cumpridos, atestavam o
êxito, em cada jovem, da missão do Estado e da religião.
O cristianismo deformou essa
pedagogia, porque na figura de Cristo esse adolescer aparece
dramaticamente visível. Homem-deus, unigênito do Pai, filho do homem ou profeta
e milagreiro, Jesus de Nazaré foi um ser incompleto, um adolescente por
desígnio divino. Judeus e muçulmanos, mais tarde, descobrirão nessa falta de
formação em Jesus argumentos suficientes para desconfiar de um mestre que não
viveu, por exemplo, aquela única obra de arte a altura de qualquer pessoa: o
casamento, segundo Goethe. Como poderia um homem que não conheceu o amor carnal
e a paternidade, que morreu adolescendo das experiências genéricas e
genéticas que nos unem, ensinar a virtude — se perguntaria um sábio sofista?
Essa escandalosa irregularidade motivou as ineficazes versões gnósticas que
apresentavam Jesus com uma mulher — celestial ou terrena — e até com filhos.
O eterno adolescente — talvez todo
o gênio de Dostoiévski se encaixe nessa definição — será Jesus Cristo. Toda a
caracterologia adolescente — exceto a iniciação sexual — parece surgir,
paradoxalmente, dele, que segundo os evangelistas não teve adolescência:
enviado pelos deuses, sente-se inseguro quanto à sua divindade até que a prove
no sacrifício. Ele é altivo e rebelde contra o poder e o dinheiro, mas
misericordioso com os pobres, os humilhados e os ofendidos. Na cruz, ele
pergunta ao Pai sobre o abandono. Ele sofre de um destino na Terra em troca de
ser o Messias. Jesus era anódino ou incompreensível para a Sinagoga e a romanidade.
As vidas proféticas do Antigo Testamento, como as biografias de Plutarco, são
existências completas, uma estátua de fogo ou de perfeição.
A instituição do monacato cristão
por volta do século IV procurou regular essa adolescência festiva e anárquica
que florescia no novo cristianismo. Embora medidas como o estrito celibato só
fossem rigorosamente canônicas até o longo Concílio de Trento no século XVI, a
igreja dos Padres do Deserto inventa o monge como dono de um “estado de
perfeição” que o preserva, à imitação de Cristo, na eterna adolescência. Casto,
longe dos demônios do mundo, o eremita, o cenobita e, mais tarde, o frade
mendicante, permanecerão, para glória e honra do papado, longe da totalidade do
adulto. O monge, de jure ou de facto, faz do seu “estado de
perfeição” uma exceção regulamentada pela Igreja. Pode, em teoria, travar a
guerra, mas sem derramar sangue; se ele cometer pecado carnal, poderá
ser castigado ou tolerado, mas sem se casar. E o piarista do monastério,
para aceder às dignidades seculares da Igreja, deverá suspender os seus votos
regulares. Algo semelhante acontecerá com o monacato feminino: a monja, serva
ou esposa do Senhor, será uma adolescente e irmã, mãe ou velha, mas nunca uma
mulher. Somente a infame menstruação, até a menopausa, a fará lembrar da sentença
de perecer sem procriar.
O romance formativo, Bildungsroman
ou Erziehungsroman, é um gênero cujo esplendor nascerá da Alemanha da
Reforma. Essa cultura violentamente emancipada de Roma foi forçada a duvidar,
por livre exame, diante da eterna adolescência do cristianismo. A abolição
luterana e calvinista do celibato — nunca ordenada nos evangelhos e apenas
sugerida por Paulo — tentará pôr fim ao despudor monástico — detestado também
pelo católico Erasmo — reintegrando o pastor em seu rebanho não mais como
intermediário sacramental, mas de homem de família. Mas o que aconteceria com
os milhares de jovens ansiosos por Deus que sonhavam com mosteiros fechados?
Que espiritualidade oferecer a quem queria ser o eterno adolescente
crucificado? Coube aos escritores da Aufklärung alemã, tão religiosa, oferecer
uma resposta sobre o que o adolescente deveria fazer com sua adolescência, com
seus genitais e sua mente, com suas dúvidas de consciência e seus devaneios.
Esse caminho — o pietismo — nos leva a Hermann Hesse.
A beleza
Os botânicos têm uma classe de
plantas à qual que eles chamam de incompletae. Também pode se dizer que existem
homens incompletos, deficientes. São aqueles cujos desejos e aspirações não
mantêm proporcional à sua atividade e desempenho.
— Goethe, Os anos de aprendizado
de Wilhelm Meister
A crise confessional que atravessa
o Iluminismo desenvolveu o pietismo, origem da literatura alemã moderna. Uma
polígrafa esclarecida, Madame Guyon (1648-1717), amiga de Fénelon,
formulou o quietismo francês, graças ao ímpeto espanhol de Miguel de Molinos
(1628-1696). Mas foram os alemães, graças ao pastor Philipp Jacob Spener e seu mecenas
Francke, que por volta de 1700 colocaram essa heresia contemplativa no centro
da espiritualidade luterana, até se cindirem para pregar a piedade pessoal e o
ardor religioso além da estrita observância doutrinária. O pietismo invadiu a
Suábia e a Suíça, alcançando uma notável influência entre os metodistas e os Irmãos
da Morávios.
Hermann Hesse, nascido em 2 de
julho em Calw (Baden-Württemberg) e cidadão suíço desde 1924, era filho de uma
família fanática pietista. Antes dele, vários de seus professores de língua
alemã, como Karl Philipp Moritz, Hölderlin e Goethe, cresceram em ambientes
pietistas de rigor variado. Essa seita, dedicada ao estudo comunitário da Bíblia,
mas extremamente livre ao interpretá-la, não pôde deixar de gerar aquele
viveiro de ideias filosóficas e literárias que foi o romantismo. E cada um
desses adolescentes teve que viver aquela tensão entre a rebelião contra a
religião local e sua marca indelével. Hesse teve uma adolescência atormentada
por colapsos nervosos e internações psiquiátricas. O Dr. Jung, seu amigo, o
considerou um exemplo de neurótico redimido pela arte: Hesse foi “curado”
quando começou a publicar. O pietismo força a descrever o caminho para Deus (e
sua negação) e esses adolescentes fizeram do Bildungsroman o caminho
eletivo desse testemunho.
Johann Wolfgang Goethe
(1749-1832), esse fantástico revolucionário conservador, escreveu essa
autobiografia espiritual que vai fundar oficialmente (nele está tudo) o gênero.
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister foram escritos essencialmente
entre 1793 e 1795, embora um rascunho quinze anos antes tenha sido descoberto
em 1910. Será difícil para muitos leitores terminar esse romance sentimental e
pesado, que Novalis descreveu em seu tempo como “tolo e incompetente” porque o
herói “era um Candide em armas contra a poesia”. Diante da adolescência,
Goethe optou por recusar o cristianismo e o pietismo, refazendo, muito à sua
maneira, uma imagem classicista do jovem, porque as aventuras de Meister não
devem nada aos virtuosos plutarquianos ou aos malévolos césares suetônios. Wilhelm
Meister batiza a palavra “formação” com o conteúdo que continuamos a
reconhecer como tal, o processo, geralmente doloroso, que leva o ser a se
completar, a amadurecer. Goethe escolhe para seu alter ego uma vocação
escandalosa e sublime, o teatro. As peripécias de Meister são uma negação da
autoridade pietista: abandono da obediência paterna, indiferença panteísta ao
confessionalismo, busca de si através da arte e do amor. Setecentas páginas
depois, Meister culmina seu aprendizado em humanitarismo, dedicando-se a
sangrar os doentes.
Ao superar o pietismo, evitando a
grosseria do deísmo francês, Goethe recorreu a essa religiosidade sem religião.
Mas se o pietismo é a origem, o pansofia será o método de conhecimento
comum para a enigmática literatura alemã de 1800. A pansofia era originalmente
uma forma grandiosa de alquimia, adoração pagã ou cristianizadora do Grande
Deus Pã, identificado com a totalidade. Desenvolvida pelos discípulos de
Paracelso, em particular por Jacob Böhme (1575-1624) e Angelus Silesius
(1624-1677), nos diz que o Todo se corresponde com tudo: a incessante regeneração
física da matéria é paralela ao desenvolvimento espiritual dos seres humanos. A
missão do sábio e do poeta é descobrir essa correspondência secreta, porque
sendo a substância natural que vai para Deus, o espírito deve conquistar a
matéria para alcançar a harmonia universal.
Como ocorre sob o domínio de uma Ideia
geral, a pansofia produziu uma variedade de interpretações que foram desaguar no
acervo romântico. Racionalista e sensual, Goethe fez ciência e poesia aspirando
a descobrir o segredo na condenação e salvação de Fausto. Católico e
metafísico, Novalis faz Heinrich von Ofterdingen viajar ao reino dos minerais
em busca dessa unidade perdida. Na contra a corrente, Moritz, Hölderlin e
Jean-Paul Richter reagiram como blasfemadores ante a pansofia, criando a
loucura sagrada dos modernos, bem como seu antídoto ou explicação, a psicologia
do inconsciente. Todos eles, porém, foram discípulos de Franz von Baader
(1765-1841), para quem só o caminho interior leva à pansofia, pois tudo o que é
segregado depende do mal. Como afirmam alguns físicos contemporâneos, para
Baader o planeta era um ser vivo. Minha hipótese é que o romance de
aprendizagem foi o instrumento mais preciso para alcançar ou negar a pansofia.
Somente o adolescente pode realizar esta peregrinação. Por isso esquecemos ou
repudiamos a lição didática de Hermann Hesse: ela nos lembra a tristeza ou a
inutilidade da formação, mas mantém, latente e incômoda, aquela “religiosidade
sem religião” a que aspiram tantos homens do século XX. Os que leram Hesse, tenho
impressão.
Para Goethe, a adolescência será
uma forma mutante de beleza. O teatro de marionetes de Wilhelm Meister nos é
estranho por sua ânsia de perfeição, pela facilidade antirromântica com que o
menino aprende a ser belo “na proporção de sua atividade e atuação”. Os finais
de Goethe são desconfortáveis: o suicídio narrativamente implausível de Werther
é o capricho de um idiota (como disse Stendhal) que idiotizou milhares de
jovens; a salvação de Fausto — perdoada por Deus depois de fazer um pacto com o
diabo — foi interpretada como uma metáfora para o nazismo, e a conclusão de Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister tem uma atmosfera de aldeão e
pequeno-burguês.
Hesse deve quase tudo a Goethe.
Até seus defeitos: o pedagogismo, o manejo inepto das religiosidades alheias (Siddharta,
1922) e a permanente tendência à moralização. Mas seria injusto esquecer que as
virtudes goethianas honraram Hesse durante a tempestuosa jornada vigesêmica: o amor
pela cultura humanista, a simpatia pela prudência, a paz e a neutralidade.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Hesse, um antinazista, permaneceu na Suíça,
tentando a todo custo preservar o mercado alemão para seus livros, o que lhe
rendeu o ressentimento de seu amigo e rival Thomas Mann. Como qualquer autor de
sucesso, Hesse adorava dinheiro, mas também acreditava que o sopro pacifista de
sua obra estimularia o vigor e a esperança nos jovens. Foi o primeiro Prêmio
Nobel do pós-guerra.
A retórica formativa de Hesse vem
de Wilhelm Meister: o adolescente é a beleza. Mas depois de um século e
meio de romantismo e vanguarda, Hesse sabia que essa beleza, longe de
florescer, estava fadada a murchar. A crônica dessa minúscula catástrofe é a
essência do mais simples e talvez mais perfeito de seus romances: Debaixo
das rodas (1905). Reler esse livro é se mergulhar em águas cristalinas em
direção ao lago da morte. O retrato do adolescente Hans Giebenrath, na melhor
tradição goethiana, é um hino à imobilidade rural, pouco perturbada por aquele
talentoso estudante que se formou no seminário protestante de Maulbronn. Fracassa
por motivos sutis, mas dramáticos, totalmente adolescente, pela
incompatibilidade entre o ambiente e os personagens, um temperamento nervoso
que nunca beira a loucura. De volta para casa, sua sentença é o trabalho
manual. Depois de um amor fugaz e uma bebedeira, ele se afoga em um lago. O
poder de evocação de Hesse é imenso: poucos fazem tanto com tão pouco. A
importância está na aprendizagem. Se tudo é inútil, nada é: Debaixo das
rodas oferece o mais feliz dos finais tristes.
O horror
A vergonha é um afeto como
qualquer outro e é estranho que suas consequências não sejam às vezes mortais.
— Karl Philipp Moritz, Anton Reiser
No tempo de Goethe viveu e morreu
o maior romancista alemão de seu século. Seu nome era Karl Philipp Moritz
(1756-1793), nascido na lendária cidade de e Hamelin, filho de um oboísta e
vítima da austeridade pietista. Em uma década de trabalho deixou uma imensa
obra como jornalista, dramaturgo e romancista. Anton Reiser é o primeiro
Bildungsroman moderno, mais próximo de Robert Musil do que de Goethe.
Pontual, os alemães consideram que
o Bildungsroman teve uma derivação imediata, o “romance escolar” que
Hesse, Musil, Robert Walser ou Thomas Bernhard continuariam no século XX. E
como eles, Moritz vê na adolescência um horror sem limites, uma distorção que
anula o aprendizado e fecha o caminho para a pansofia. Anton Reiser — em grande
parte Moritz na terceira pessoa —é filho de fanáticos pietistas, leitores
diários de Madame Guyon. Foge de todos eles após a maravilha salvadora do
teatro e sua viagem, que segundo o grande Albert Béguin será por “uma estranha
Alemanha: ali o culto do conhecimento e o respeito pelo latim se unem
caprichosamente à rusticidade da população média; os intelectuais voltairianos
convivem com as seitas dos esclarecidos e a existência completamente medieval
dos pequenos artesãos”.
A fome e o fracasso guiarão Anton
Reiser durante sua jornada. Se Rousseau é um filósofo que se confessa e Goethe
um escultor do belo, Moritz é um narrador que sonha. Mas, ao contrário de seu
amado Jean-Paul Richter, ele não encontra profecia no sonho. Jornalista que
escrevia sobre sonhos noturnos e os detestava, Moritz foi um onicrítico aristotélico,
que considera que sonhar é entrar na realidade de pesadelo da existência. Entre
poesia e verdade há uma correspondência demoníaca: a pansofia é negativa.
Moritz fundou a psicologia como
Nietzsche a vislumbrou e Freud a aprofundou. O romancista alemão foi o primeiro
a conceber a origem da solidão do homem e sua derrota nos detalhes insignificantes
da infância, cujo horror a adolescência aumentará. Anton Reiser é a
memória do adolescente errante, Jesus a caminho do Calvário, assediado pelos
demônios da fé, da dúvida e do talento. Não haverá forma de fracasso que Anton
não tente. Falta a vocação esculpida por Goethe. Perambulação sem fim, desejo
alheio ao prazer, esse adolescente sofrerá a tortura não da escola, mas dos
pastores que o apanham e o descartam, encaminhando-o para aquele teatro
ilusório onde não encontrará lugar. Romance ignorado da modernidade, que só
Béguin e Michel Tournier, fora da Alemanha, leram com atenção, Anton Reiser
é a biografia da adolescência como castidade, aquela daqueles que não perderam
a fé porque não sabem para que ela pode ser útil.
As redescobertas literárias são
traiçoeiras. Ao nos libertar da ditadura cronológica, provam, em detrimento de
nossos contemporâneos, a divindade do gênio, sua onisciência. Comparar Demian
(1919) com Anton Reiser é um abuso que a admiração de Hesse por Moritz
autoriza. O escritor do século XVIII tirou as páginas didáticas da narrativa,
enquanto Hesse, em Demian, nos aborrece com coisas óbvias que emergem do
romance. Hesse, porém, avança na direção apontada por Flaubert, o Bildungsroman
deve ser também uma educação sentimental, um hino à amizade masculina, às
crianças que se tornam adolescentes juntas e para as quais a aprendizagem, ao
dividi-los, os transforma em um ser de duas cabeças. A relação entre Sinclair e
sua esquiva alma gêmea, Demian, teria sido incompreensível para Moritz. Mas o
que une Hesse ao seu ancestral é a identificação do adolescente com o
emboscador, uma fera que se esconde para sair da floresta transformada no
verdadeiro monstro, o adulto, cujo destino menos infeliz será ser o lobo da
estepe.
Não sei se Dostoiévski leu Moritz.
Já Berdaiev — um pansofista cristão — disse que a glória do romancista russo
foi ter retratado a adolescência da humanidade. O adolescente (1875) é o
penúltimo romance do chamado “Pentateuco dostoievskiano”, o mais conhecido e certamente
o menos bem-sucedido. Em meio ao enxame de uma trama desconexa, Dostoiévski
apresenta seu adolescente como um mísero e um patife: o bastardo Arkadi
Makárovitch Dolgurúki não tem nada da idiotice sagrada do príncipe Mishkin e é
um esboço de Ivan Karamázov. Mas é cativante comparar esse adolescente perdido
entre a Ideia e o dinheiro com seus parentes alemães: o mundo urbano de São
Petersburgo e Moscou parece incompatível com o Bildungsroman, uma travessia
verificada por um mundo pré-industrial, um itinerário de pequenas cidades ainda
amuradas, onde aprender parece sinônimo de adolescer, enquanto a
aprendizagem é testada num ofício, num ministério religioso ou numa única
vocação frustrada. O adolescente dostoievskiano parece ser um jovem do nosso
tempo, submetido a uma variedade de estímulos tanáticos e lúdicos. Dostoiévski,
no final de O adolescente, cometeu a tolice de epilogar a obra com uma
advertência ética: chegará o dia em que os adolescentes deixarão de ser
adolescentes. A Parusia acontecerá, esse terceiro reino, o do Espírito Santo, no
qual Jesus Cristo, rodeado pela ressurreição dos mortos, deixará de ser
adolescente.
Hesse leu Dostoiévski e Nietzsche,
mas seu coração estava mais próximo do Bildungsroman do que realmente
assimilá-los. Fazer isso seria renunciar o aprendizado como um caminho
pansofístico. Nada é mais contrário à almejada unidade cósmica do que a
desintegração proposta por Nietzsche e ficcionalmente executada pelo russo. Em Demian,
as referências nietzschianas são forçadas mais pela coloração da época do que
por uma substância autêntica. Mas a ruína de Sinclair, sua hesitação diante do
irmão-guardião, sua hesitação psicológica entre os limites do eu e do mundo são
uma vulgarização dos tormentos adolescentes de Moritz e Dostoiévski.
Goethe amava Moritz como os gênios
consagrados costumam fazer com os anjos caídos. Enquanto estava em Roma em
1789, Moritz quebrou o braço e Goethe cuidou dele por trinta dias ao lado de
sua cama. Esse homem maltratado, filólogo obsessivo, escreveria sem querer a
refutação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: a adolescência
é o Horror. A última visão de Anton Reiser é o deserto da maturidade: os homens
tornam-se, finalmente, um rebanho disperso.
O Grande Pã está morto
Seja qual for a opinião que
gostamos de ter em relação à morte, podemos ter certeza de que não faz o menor
sentido ou o menor valor. A morte não nos pediu que lhe reservemos um dia folga.
— Samuel Beckett
A obra-prima de Hermann Hesse foi O
jogo das contas de vidro. Livro enigmático talvez destinado a apagar sua
memória de escritor didático, é um romance com uma expressiva tese de
polivalência, às vezes incongruente e sempre sincera, à qual chegou o velho
Hesse. Ao mesmo tempo, em O jogo das contas de vidro, Hesse foi vítima
consciente de sua atração pietista pelas ordens monásticas, mas esclareceu sua
pertença à Castália, a escola laica e maçônica dedicada à combinação de
conhecimentos matemáticos e musicais. Em nenhum romance da tradição alemã se
encontra semelhante casa da pansofia.
Outro adolescente, Joseph Knecht,
inicia sua formação em Castália, instituto que lembra o grande convento
imaginado por Campanella no século XVII. Entre os castalianos e os beneditinos,
entre o esotérico e o monástico, o estudante compreenderá arcanos de
conhecimento aos quais Hesse apenas alude. O romance se passa no futuro, em
2400, mas é um retorno àquela fantástica Idade Média que Novalis ou Hölderlin
sonharam, um universo governado pelo mago, pelo padre e pelo guerreiro. Mas uma
vez alcançado o posto mais alto, Magister Ludi do jogo das contas de
vidro, Joseph Knecht o renuncia. O adolescente torna-se homem ao renunciar à
sua educação. Viver um Bildungsroman é inútil? Como Wilhelm Meister,
Knecht se realiza, mas essa realização, alheia aos sofrimentos de Anton Reiser,
acaba no mesmo destino, longe das montanhas da Unidade Cósmica.
Entre os escritores alemães de sua
época, o Hesse de O jogo das contas de vidro lembra apenas Ernst Jünger.
Soa estranho. Mas não é. Eles professavam admiração pública. Ambos viveram
situações ambíguas — Hesse como rebelde da paz em 1914 e Jünger como soldado
alemão com tendências antinazistas. O jogo das contas de vidro está à
frente das utopias jungüerianas (Heliópolis, 1949 e Eumeswil, 1977)
na postulação de uma falsa terra do futuro que na verdade é um nicho meta-histórico.
Hesse e Jünger compartilhavam seu amor por personagens sapienciais, chineses,
hindus ou romanizantes. Jünger está interessado em titãs e Hesse em
adolescentes. Mas coincidem em encontrar o clímax da condição humana no
Anarquista, na Emboscado ou no Lobo da Estepe, figuras de separação, maldições
contra a totalidade perdida, criaturas isoladas na floresta, o conhecimento ou a
errância. Esse é o destino de Joseph Knecht, chegar ao topo e deixá-lo,
iniciando a descida em direção à História.
Ao se afogar, como Hans em Debaixo
das rodas, Knecht termina seu aprendizado. Afundou por seu próprio peso
adolescente, São Cristóvão sem redentor, por não ter carregado o Filho? Incapaz
de se eternizar como adolescente, prefere a sanção da água, reintegração primordial
à origem, tal como ditada pela pansofia, sem se juntar, como Anton Reiser, ao
bando disperso dos adultos. Decepcionado com o caminho pietista, mas incapaz de
apostatar, Hesse preservou outra imagem memorável da pansofia. Como Juan Rulfo,
Hesse viveu um amor pela música antes de Bach. Tanto em Demian quanto em
O jogo das contas de vidro, ele fez da Música o único elo pelo qual
aquele adolescente poderia se conectar à pansofia. Essas amizades hesseianas
entre o jovem e o organista de uma velha igreja, sábio e silencioso,
exemplificam esse Bildungsroman cuja medida não está no tempo nem no
espaço. O próprio órgão é uma sobrevivência gloriosa de um mundo desaparecido,
que através daqueles tubos sonoros sopra ar no coração da terra.
O amor e o esquecimento para Hesse
caracterizam nosso tempo, que ele não hesitou em qualificar como “idade
panfletária”. Ele mesmo, atraído por viajantes do Oriente, recorreu a formas folhetinescas
de orientalismo. Lembremos que escritores de maior dignidade estética do que
ele também incorreram em marketing ideológico e a serviço de causas sinistras.
Seu próprio desejo desordenado de se relacionar com todos os adolescentes o
afundou. O pietista deve ter lembrado que somente Cristo pode permanecer um
eterno adolescente. E Hesse, que popularizou o I Ching e o budismo no Ocidente,
em cuja homenagem um grupo de rock recebeu o nome de Der Steppenwolf,
acompanhando beatniks e hippies em todas as estradas, terminou
sua missão quando aquela adolescência desapareceu. Não tenho dúvidas que toda
vez que um jovem se inicia com Hesse, o jogo das contas de vidro continua. Eu
mesmo mudaria todas as minhas ponderadas considerações para proclamar que Hesse
me é querido porque ele foi o único escritor que pegou uma ninharia essencial:
quando adoecemos e somos dispensados de ir à escola, a luz em casa, durante a
longa manhã, tem uma densidade que veremos novamente durante o constante
crepúsculo da vida.
Plutarco, no terceiro dos Diálogos
Píticos, escrito por volta do ano 100 depois de Cristo, visitou a rota dos
oráculos e confirmou seu desaparecimento, condenado “ao silêncio e à total desolação”
porque o Grande Deus Pã havia morrido, enquanto gritavam vozes misteriosas em
alto mar. Plutarco estava feliz que uma nova ciência ignorasse as afirmações tolas,
e hoje diríamos adolescentes, de que os homens se dirigiam a oráculos. Hermann
Hesse era um oráculo que ouviu os adolescentes e os enviou em busca do Grande
Deus Pã. Mas isso foi há muito tempo.
* Este texto é a tradução livre para “Hermann
Hesse: la desaparición de los oráculos” publicado aqui em Letras Libres.
Comentários