Desvelando uma dialética doméstica: leituras de Otelo
Por Guilherme Mazzafera
Otelo e Desdêmona. Eugàne Delacroix. |
Em suas famosas palestras, agrupadas
no clássico Shakespearean Tragedy (1904), A. C. Bradley dispende algum
tempo tentando divisar quais os elementos que compõem a substância e sustentam
a construção da tragédia shakespeariana. Para ele, as tragédias do bardo
envolvem uma história de sofrimento e calamidade que conduz ao declínio e morte
de um homem de estatura social elevada. As calamidades e sofrimentos
enfrentados pelo herói são sobretudo derivados de suas próprias ações, por meio
das quais seu caráter se expressa. Os heróis são indivíduos de alta
proveniência social, obtida por nascimento (reis e príncipes) ou mérito
(autoridades militares), que têm que lidar com a impossibilidade de controlar o
curso dos eventos que de alguma forma iniciaram e cujo destino privado acaba
por afetar a esfera pública, adquirindo poderoso sentido simbólico (BRADLEY,
2009, p. 6-8).
Desde suas palestras iniciais,
Bradley chama atenção para a singularidade de Otelo entre as outras
tragédias por conta da excepcionalidade de sua construção: o conflito começa
consideravelmente tarde e se move em linha reta rumo à catástrofe inevitável,
gerando forte tensão que torna a segunda metade da tragédia mais excitante e
intensa que a primeira. Ademais, o crítico observa que essa estrutura inusual
não é necessariamente prolífica na obra do bardo, mas sim consideravelmente
adequada para um enredo estruturado por intrigas como o de Otelo (BRADLEY,
2009, p. 48).
A proeminência estrutural da
intriga, para Bradley, faz de Otelo “a menos distante, dentre todas as grandes
tragédias de Shakespeare, de uma história da vida privada” (p. 132) e contribui
para o seu menor grau de simbolismo: “Otelo não tem […] o poder de expandir a
imaginação por meio da sutil sugestão de imensos poderes universais agindo
sobre os destinos e paixões individuais” (2009, p. 136). Constantemente
referida como uma “tragédia doméstica”, a peça lida com eventos então recentes
(a presença dos turcos em Chipre é datada de 1570) e possui algumas cenas
consideradas desagradáveis e até mesmo chocantes para o crítico — as cenas do
prostíbulo e de assassinato, por exemplo —, cenas que parecem amplificar a
tensão crescente na segunda parte da tragédia. Para Bradley, em suma,
Shakespeare lança mão em Otelo de uma estrutura singular eficazmente
desenvolvida de acordo com seu tema (ciúme fomentado por intriga pessoal), tema
este intimamente vinculado à esfera doméstica e menos simbólica mobilizada pela
peça.
A leitura das palestras de Bradley
sobre as outras grandes tragédias do autor, Hamlet, Rei Lear e Macbeth,
dá a impressão de que Otelo é classificada abaixo destas por não
desvelar “o Shakespeare integral” (p. 136). Além disso, o interesse pelos
aspectos universais das peças dirige seu olhar para figura dos heróis enquanto
corporificação de traços universalizantes, como nota Marjorie Garber (2004, p. 17-18)
Um aspecto importante dessa leitura, que ajudou a elevar essas peças ao status
canônico, foi justamente o de fomentar leituras responsivas que põem em
destaque a especificidade cultural dos textos. Assim, o aporte de Garber sobre Otelo
envolve a ideia de que as peças de Shakespeare (e Otelo acima de todas)
são solo fértil para a discussão e representação de elementos como raça,
classe, questões que acabam por desvelar pontos de ruptura, produzindo um
sentido de desestabilização e deslocamento: “Otelo não é redutível a um tratado
político, mas sua riqueza atesta e responde a um mundo em crise, crise
parcialmente figurada por meio de categorias emergentes como raça, classe,
gênero — e sexualidade (GARBER, 2004, p. 589).1
Garber se aproxima da peça
propondo e desmontando uma série de pares opositivos que parecem antes performar
uma relação dialética do que uma mera oposição claro-escuro. Nesse sentido,
Chipre não é a contraparte de Veneza e sua evidente negação, mas sim seu eu
oculto; o mesmo raciocínio se aplica à apreensão da contiguidade imanente dos
outros pares: luz e sombra, razão e paixão, sagacidade e bruxaria, público e
privado (GARBER, 2004, p. 589-90).
Garber sugere que, à medida que a
peça se desenrola, Otelo é um texto que constantemente busca a claridade
em meio a uma constante desleitura de imagens de luz e sombra: Iago, sempre
tido por honesto, dá conselhos aos outros personagens, supostamente iluminando
seus caminhos enquanto tece sua perdição; a bela e inocente Desdêmona, com o
‘demo’ no nome, é acusada de adultério e morta pelo ‘negro’ Otelo (i.e., o
Otelo ‘tornado turco’); Bianca, a branca, é uma prostituta; Otelo, inegavelmente
negro e estrangeiro, é dotado de uma linguagem musicalmente poética e
civilizada. A questão da raça, a despeito de muitas leituras “descoloridas” que
ignoram a observação de Bradley (2009, p. 159) sobre a importância de tal
questão para o entendimento do personagem Otelo e da ação e catástrofe da peça,
é essencial para a construção da identidade do personagem, visto que delimita
um problema de autoidentificação. Uma vez assumido como negro aos olhos dos
outros (Brabâncio, Iago e Desdêmona), o Mouro irá se inserir em um processo de
construção de um eu público capaz de dissociá-lo dos estereótipos vinculados à
cor de sua pele. Em sentido mais amplo, isso implica uma busca constante por
ser mais veneziano que os próprios venezianos, com o custo de uma negação
traumática do seu eu privado. No entanto, essa busca é de certo modo malfadada
por conta da natural fluidez da linguagem e também pelos recursos ativados no
interior da peça que fazem com que o limiar entre brancura e negritude não se
mostre inequivocamente discernível. De fato, a peça constantemente nos ilude ao
colocar em cena pistas falsas (GARBER, 2004, p. 590) que são não apenas
projeções do teatrólogo real, mas do dramaturgo dentro da própria peça, Iago, “um
artista propriamente livre” nas palavras de Hegel (apud BLOOM, 1998, p.
6)2, que experimenta “o prazer da criação artística” (BRADLEY, 2009,
p. 172), fazendo dos atos e cenas livre terreno para uma aguçada improvisação,
transformando os outros personagens em espectadores no palco e tendo seu
domínio assegurado pelo fato de ser nosso único confidente, implicando-nos em
seus desígnios assim como nos mantendo “fora de alcance” (GARBER, 2004, p. 603).3
Todavia, apesar de sua habilidade e esforço, e da ausência de qualquer clara
força contrária, Iago não pôde atingir o nível necessário de despersonalização capaz
de impedir que sua arte acabasse por consumi-lo (BRADLEY, 2009, p. 172-3).
Se a busca pela luz que parece
descrever o movimento da peça está relacionada à obtenção de ordem e controle,
como sugere Garber (2004, p. 590), tais instâncias só serão efetivadas após a
eliminação de duas figuras da razão que sucumbem às suas paixões: Otelo e Iago.
De modo oposto ao de suas respectivas esposas, Desdêmona e Emília, seu
relacionamento é sugestivamente descrito como entrechoque de “razões extremas
que negam a paixão [...] com paixões extremas que negam a razão ou lógica” (p.
589).4 Otelo, modelo de virtude e dever cívico, é tragado pelos
argumentos de Iago — a despeito de sua falta de coerência e mesmo veracidade — devido
ao receio de que a infidelidade da esposa poderia macular sua imagem profissional
e sua identidade pública.
Chamando Eagleton para o debate,
podemos sugerir que Desdêmona se torna desejável para Otelo apenas quando sua
possessão por ele é ameaçada pela possível deslealdade dela: “Suspeitar da
traição de Desdêmona implica conferir a ela uma identidade autônoma em relação
a Otelo, o que rompe o circuito narcísico e começa a minar a própria identidade
do Mouro” (1990, p. 68).5 “Possessão”
é um termo fundamental porque desnuda as visões tradicionais de Otelo sobre a
condição da mulher, corporificadas nas noções de estreita obediência e
admiração (GARBER, 2004, p. 598), e igualmente reforça a incômoda resposta à
sexualidade, tornando possível a sugestão de que a posse sexual de Desdêmona por
ele não tenha acontecido, sempre postergada em nome dos deveres civis e
militares, tornando a peça um curioso estudo não de desvio sexual, mas do “desvio
do sexo” (EAGLETON, 1990, p. 69). Trata-se de um detalhe potencialmente
crucial, que destaca a predominância do soldado sobre o amante em Otelo,
inviabilizando que este possa conhecer sexualmente Desdêmona, o que
poderia, quiçá, ter refreado a tragédia. Como bem lembra Bloom, “As primeiras
insinuações de Iago sobre o suposto relacionamento de Desdêmona com Cássio não
teriam qualquer efeito se Otelo soubesse que ela era virgem. É justamente por
não saber que Otelo é tão vulnerável” (BLOOM, 1998, p. 459-460).6
As raízes da falta de conhecimento
de Otelo são localizadas por Garber na constante confusão e incapacidade de coordenar
as esferas pública e privada por parte do Mouro, fato simbolizado em sua
persistente negação do amor sexual em prol dos deveres cívico-militares, o que
o torna incapaz de obter autoconhecimento (GARBER, 2004, p. 599). Assim, ele
não pode conhecer Desdêmona e Iago propriamente, e tal falha acarreta um
problema de linguagem — tanto em expressão como em leitura — que está colocado
no centro de Otelo. De certa forma, a ausência de fronteiras nítidas
entre o público e o privado na mente do personagem reflete uma série complexa
de elos que interconectam os serviços civil e militar sob o jugo do lar patriarcal:
“a sociedade jacobeia, não contando com uma distinção clara entre as esferas
pública e privada, via as formas mais simples de trabalho doméstico como
existentes em uma continuidade absoluta com o serviço ao Estado (NEILL, 2006,
p. 161).7 Para além da interpenetração de extratos sociais e formas
de serviço, o continuum entre público e privado é também performado pela
linguagem, que em Shakespeare adquire um interessante paradoxo: as peças, em
termos gerais, tendem a valorizar estabilidade e ordem social, mas tal anseio é
confrontado por uma linguagem fluida que nega qualquer estase, apoiando-se em “trocadilhos
extravagantes” — típicos de Shakespeare e sua época — e representando uma
espécie de “epistemologia (ou teoria do conhecimento) às avessas” (EAGLETON,
1990, p. 1)8 em relação à ideologia política do dramaturgo. A
linguagem de Otelo, bela e musical, é usada como constante afirmação de seu eu
público, tecendo a imagem de um herói romântico, civilizado e prestativo ao
Estado. Sua linguagem, no entanto, nunca se torna privada nem se mostra atenta
a trocadilhos e desvios de sentido.
Como consequência, Otelo não
consegue pôr em palavras a natureza privada de sua paixão e pessoa — “O próprio
Otelo não é um homem comum, pura e simplesmente; mas general da República”
(BRADLEY, 2009, p. 6-7); desse modo, ele não pode aceitar o rogo de sua esposa
em favor de Cássio (GARBER, 2004, p. 603) nem entender a natureza do amor dela
por ele, Otelo. Desdêmona viu-se atraída por conta das narrativas da vida aventureira
do Mouro e seus valorosos feitos em prol da república veneziana — contudo, a
despeito de toda a jactância de Otelo, ela ama-o pessoalmente. Mais do que isso,
“Desdêmona fala de amor, e de um amor que é francamente sexual assim como
romântico” (p. 598),9 e seu audacioso desafio aos deveres filiais na
cena da Câmara do Conselho (I.3), embora benéfico para Otelo naquelas
circunstâncias, será ardilosamente utilizado por Iago para advertir o Mouro
sobre o suposto caráter enganador da esposa, instilando primeiro pelo ouvido,10
e depois pela prova ocular, o veneno do ciúme.
Bradley é bastante categórico ao
expressar seu desgosto por algumas cenas e, para o crítico, o sofrimento de
Desdêmona é quase intolerável porque “Desdêmona jaz irremediavelmente
impotente. Não existe absolutamente nada que ela possa fazer. Não pode reagir
nem ao menos verbalmente; [...] Jaz impotente porque a sua natureza é
infinitamente doce, e seu amor, incondicional” (BRADLEY, 2009, p. 131). Entretanto,
isso não significa que ele ignore sua conduta excepcional “na taxativa
afirmação da vontade da sua alma” (p. 150) nem que, em certos momentos, ela “age
exatamente como se fosse culpada” (p. 152), o que, somado à incapacidade
epistemológica de Otelo, acaba por selar seu destino. Apesar de ser considerado
por Bradley o maior poeta dentre os personagens shakespeareanos, Otelo é um mau
exegeta que acaba por projetar um estereótipo de Desdêmona que está tão
distante da realidade quanto a posição dela em relação às outras personagens
femininas que a circundam: Bianca, a prostituta, e Emília, a esposa pragmática
e obediente (GARBER, 2004, p. 613). Na mente de Otelo, Desdêmona só pode
pertencer a alguma destas duas categorias, sendo essa visão esquemática problematizada
pela articulação das noções de dever e serviço enquanto conectadas às “personagens
femininas para as quais a obediência mostra-se uma virtude profundamente equívoca”
(NEILL, 2006, p. 169).11 Em certo sentido, tanto Otelo como Iago
falham na apreensão dessas noções tais como expressas por suas esposas. As
percepções de Iago, todavia, são mais acuradas e vastas que as de Otelo,
derivadas de um agudo poder de autoescuta (BLOOM, 1998, p. XIX) que o torna
capaz de se recompor constantemente de modo a adaptar-se às situações. A
análise das motivações de Iago tem sido um filão central na fortuna crítica da
peça, e os aportes de Bradley e Garber não são exceções.
Para justificar seus
procedimentos, Iago designa uma série de razões e fatos aparentes que não
apenas são substituíveis e voláteis como parecem mobilizados por uma lógica
privada que se vê presa das paixões, mas que a elas responde racionalmente. Seu
narrar tendencioso, embora funcione linearmente com outros (Cássio, Rodrigo),
soa artificial e suspeito em seus solilóquios: seus apartes denotam uma mente “à
cata de um motivo”, ponderando intenções e tentando convencer a si mesmo de sua
validade (BRADLEY, 2009, p. 169). Ciúme sexual, inveja política e dano à
reputação são listados, mas não parecem se adequar ao seu caráter. De fato, a
sequência de motivos trazidos ao palco nos solilóquios parece ser uma defesa
artificiosamente aguda que mal dá conta de explicar um sentimento básico e
apaixonado: ele odeia o mouro (GARBER, 2004, p. 605). No entanto, Bradley nos
lembra de que Iago não demonstra qualquer sinal de prazer sobre o destino
infeliz de Desdêmona, mas é “profundamente sensível a qualquer coisa que atinja
seu orgulho ou amor-próprio” e tem “uma opinião elevada a respeito de si mesmo
e profundo desprezo pelos outros” (BRADLEY, 2009, p. 165). Esse desprezo o
torna negligente com Emília, mas não a ponto de tolerar a ideia de outro homem partilhando
de seus lençóis, que é exatamente a sugestão que ele projeta sobre Otelo. A
possessão sexual não parece ser posta em dúvida no caso de Iago e Emília; contudo,
pode-se sugerir que ela não produziu conhecimento efetivo. Emília o conhece
melhor que os outros, mas só pôde conectar as pontas soltas e desmascarar o
plano do marido quando Otelo mencionou o lenço. Sua atitude, então, consistiu
em desobedecer ao marido em nome de um laço de amizade mais profundo com
Desdêmona, expondo a injúria de Iago e fomentando o fatal contra-ataque que pôs
fim a sua vida. Cabe ainda notar que Iago age efetivamente apenas quando o
poder de sua linguagem se exaure e, tendo sido obrigado a matar com as próprias
mãos em vez de incitar o assassinato, o único caminho que lhe resta é o do
silêncio.
Para Bradley, a asserção de
Coleridge sobre a “cata de motivos de uma malignidade gratuita” (2009, p. 446) é
de certo modo defensável porque aponta para a ideia de que a malignidade de
Iago não se associa às razões que ele lista para si próprio nem a qualquer motivação
consciente, mas antes a forças inconscientes que, de modo semelhante ao que
ocorre com Hamlet, sua contraparte, ele é incapaz de dominar. Garber comenta
que “malignidade imotivada” é uma justa descrição da origem e nível da “paixão
destrutiva” de Iago, fazendo dele uma figura de excesso e desejo apesar de suas
tentativas em contrário (GARBER, 2004, p. 605). A incapacidade de coordenar
todos os elos em uma cadeia de eventos derivada de um plano complexo, não
importando o quão bem planejados tenham sido os atos e cenas em sua mente
dramatúrgica, imprime uma nota trágica sobre o destino de Iago, reforçando a
ideia de que a perdição de Otelo é também sua, um “homem cabalmente mau, frio,
que, finalmente, sente-se tentado a dar livre vazão às forças que se movimentam
dentro dele, e é destruído” (BRADLEY, 2009, p. 163).
Bradley argumenta que Iago é de
algum modo motivado por paixão, ambição e ódio, já que de outro modo seria
muito difícil entender por que um homem tão sagaz e inteligente tomaria parte
em um enredo dramaticamente perigoso para si mesmo (p. 2009, 167). Suas paixões
são certamente mais dissimuladas do que as de outros homens, mas ele faz as
terríveis coisas que faz movido por elas, ou, o que é mais interessante, incita
os outros a performá-las. Usando a linguagem como arma para orquestrar sua
trama, Iago domina uma vasta lista de truques — subtração, insinuação, eco
artificioso, pausa e silêncio — que lhe permitem incitar animosidades, sugerir
infidelidade, reverter e distorcer sentidos e mesmo decidir o método mais
adequado para dar cabo da possível adúltera (GARBER, 2004, p. 607). Seu
controle da linguagem é tão completo que sua inflexão sobre Otelo produz o exato
oposto: suas palavras são capazes de abalar o Mouro fazendo sua linguagem
desmoronar (SHAKESPEARE, 2017, p. 217). Para Garber, perda de linguagem é o
emblema shakespeariano para perda de humanidade (GARBER, 2004, p. 612), e o
efeito produzido pelos fragmentos incoerentes de Otelo é especialmente
relevante em um personagem cujo discurso ordinário é musical, encantador e,
sobretudo, índice civilizacional. Uma vez transformado em turco e vendo corroborados
todos os paradigmas projetados sobre ele (negro, muçulmano, diabo, monstro,
estrangeiro, feiticeiro, incivilizado etc.), contra os quais apenas sua
linguagem e feitos valorosos poderiam escudá-lo, sua tragédia está consumada.
No final, será pela linguagem, uma vez recuperada, que o Mouro encontrará um
caminho para a reparação:
Esperem, duas palavras antes de
irem.
Prestei serviços ao estado e isso
é sabido:
E basta do assunto. Rogo-lhes que
em suas cartas,
Quando relatarem essas ações
aziagas,
Falem de mim como sou. Não
abrandem nada,
Nem usem de malícia. Falarão de
alguém
Que amou muito, mas com
insensatez, alguém
Pouco propenso ao ciúme, mas que,
defraudado,
Perpetrou ato extremo” (SHAKESPEARE,
2017, p. 259)12
Garber afirma que “na tragédia
shakespeariana, recontar sua história torna-se o único caminho do herói trágico
para a redenção” (GARBER, 2004, p. 615),13 e é pela linguagem que
Otelo finalmente tenta reconciliar pecados privados e virtude pública. Depois
disso, seu suicídio, ação tradicionalmente dotada de suprema privacidade, é
encenado enquanto demonstração pública do seu ato derradeiro a serviço do
estado veneziano (NEILL, 2006, p. 158), reforçando a interação complexa entre
público e privado na construção do personagem e da tragédia como um todo.
Tendo tomado por guias os
percucientes estudos de Bradley e Garber, separados por um século, viu-se que o
primeiro focaliza a singularidade de construção de Otelo, apontando seus
efeitos particulares e discutindo alguns elementos que tornam essa “tragédia
doméstica” menos simbólica e mais intensa do que as outras grandes tragédias do
Bardo. Garber, por outro lado, encontra em Otelo um texto privilegiado
para desvelar estruturas dialéticas complexas na construção dos personagens e,
em certo sentido, desenvolve a percepção de Bradley acerca da atmosfera
doméstica da peça por meio da análise da confluência entre as instâncias pública
e privada no contexto do drama e a constante negação do protagonista referente
ao seu eu privado. À guisa de conclusão, e tendo em mente aqui as ressalvas de
Bradley, pode-se acrescentar que Otelo enquanto personagem parece desejar ser o
protagonista de uma tragédia profundamente simbólica, mas o que ele não percebe
é que o cumprimento desse desejo depende da afirmação de um eu privado que, uma
vez estabelecido, seja capaz de alçar-se além da vida. Contudo, talvez seja
justamente essa falha interpretativa,14 localizada em uma peça que
veicula “uma limitação radical à confiança na razão” (GARBER, 2004, p. 590),15
que faz de Otelo uma obra capaz de alcançar e reverberar a melodia universal.
Notas
1 “Othello is not reducible to a
political tract, but its richness records and responds to a world in crisis, a
crisis figured in part through emergent categories like race, class, gender –
and sexuality.”
2 “a free artist of himself”
3 “out of earshot”
4 “extremes of reason that deny
passion are confronted with extremes of passion that deny reason or logic.”
5 “To suspect that she is
adulterous is to credit her with an identity autonomous of his own, which snaps
the narcissistic circuit and begins to undermine his own identity.”
6 “Iago’s first insinuations of
Desdemona’s supposed relationship with Cassio would have no effect if Othello
knew her to have been a virgin. It is because he does not know that Othello is
so vulnerable.”
7 “Jacobean society, lacking a
clear distinction between the public and the private spheres, saw the humblest
forms of domestic labour as existing in an absolute continuum with service to
the state”
8 “epistemology (or theory of
knowledge) at odds”
9 “Desdemona speaks of love, and
of a love that is frankly sexual as well as romantic”
10 Vale lembrar a importância
dessa imagem em Hamlet.
11 “the female characters for whom
obedience proves to be a profoundly equivocal virtue.”
12 No original: “Soft you; a word
or two before you go:/ I have done the state some service, and they know't – /
No more of that. I pray you, in your letters, / When you shall these unlucky
deeds relate, / Speak of me as I am; nothing extenuate, / Nor set down aught in
malice: then must you speak / Of one that loved not wisely but too well; / Of
one not easily jealous, but, being wrought, / Perplex'd in the extreme;” (SHAKESPEARE,
2006, p. 395)
13 “throughout Shakespearean
tragedy, retelling becomes the tragic hero’s only path to redemption”
14 Vale recordar aqui a importante
asserção de Lawrence Flores Pereira (2017, p. 28): “Otelo não é, como se
vê, apenas a tragédia da paixão (e mais particularmente do ciúme como estado de
ser), mas da desistência da interpretação”
15 “a radical limitation to the
confidence in reason”
Referências
BLOOM, Harold. Shakespeare – The Invention of Human. New York:
Riverhead Books, 1998.
BRADLEY, A. C. A Tragédia Shakespeariana: Hamlet, Otelo, Rei Lear e
Macbeth. Tradução de Alexandre Feitosa Rosas. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009.
EAGLETON, Terry. William Shakespeare. Oxford: Basis Blackwell,
1990
GARBER, Marjorie. Shakespeare After All. New York, Anchor Books,
2004.
NEILL, Michael. Introduction. In: SHAKESPEARE, William. Othello – The Oxford Shakespeare,
Oxford University Press, 2006, p. 1-179.
PEREIRA, Lawrence Flores. Introdução. In: SHAKESPEARE, William. Otelo. Tradução, introdução e
notas de Lawrence Flores Pereira; ensaio de W. H. Auden. São Paulo: Penguin
Classics Companhia das Letras, 2017, p. 7-86.
SHAKESPEARE, William. Othello – The Oxford Shakespeare, Oxford University Press, 2006.
SHAKESPEARE, William. Otelo. Tradução, introdução e notas de
Lawrence Flores Pereira; ensaio de W. H. Auden. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
Letras, 2017.
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