Ascensão ao cânone

Por Christopher Domínguez Michael



 
O maior elogio que posso fazer ao livro de Álvaro Santana-Acuña sobre como Cem anos de solidão foi escrito e como se converteu em um “clássico global” é que quase todas as minhas inquietações, discordâncias e mesmo exasperações com o sociólogo de origem canária e seu García Márquez, encontram-se no terreno da discordância fértil. Talvez o mais irritante esteja no começo de Ascent to glory. How ‘One hundred years of solitude’ was written and became a global classic, quando o professor do Whitman College, imitando Harold Bloom — que, por sua vez, serviu-se do positivismo, de Joaquim de Fiore e da Santíssima Trindade quando dividiu toda a literatura moderna em Era Aristocrática, Era Democrática e Era do Caos¹  —, decide, por sua vez, dividir a literatura latino-americana do século XX em três gerações: as da Forma Breve, da Forma Híbrida e do Romance per se, a monopolizada pelo “realismo mágico”, o boom e Cem anos de solidão (1967). Como no caso do finado Bloom (a quem admirei por tantas coisas), considero errática a tríade de Santana-Acuña.
 
Embora tenha a honestidade de dizer que seu critério se baseou no tamanho (o que entrega o sociólogo e descarta o crítico literário), afirmando ter levado adiante essa temeridade por inspiração de Karl Mannheim e Ángel Rama, sua proposta é daquelas inventadas por professores para suavizar, generosos e didáticos, a vida de seus alunos, tomando-os pela mão para atravessar o syllabus sem suar por toda a adolescência. Para aqueles de nós alheios à universidade, o esquema parece anticanônico (já retornarei à distinção entre canônico e clássico que encerra Ascent to glory) e causa alguma repugnância.
 
Para compor sua Geração Breve, Santana-Acuña convoca Pablo Neruda (somente autor de suas memórias e de alguns discursos quanto à prosa) como criado para justificar a obra de Jorge Luis Borges. E inclui nesse nicho romancistas de largo fôlego como João Guimarães Rosa, José Lezama Lima (cujo Paraíso, sujeito a uma operação comercial e crítica da envergadura de Cem anos de solidão, fracassou por conta de suas dificuldades de leitura, como se diz em Ascent to glory), Miguel Ángel Asturias e Alejo Carpentier (a quem é devolvido o merecido lugar como influência dominante em García Márquez) junto do breve Juan Carlos Onetti.
 
Acontece que para Santana-Acuña, como é comum entre os acadêmicos e produtores de “literatura industrial” (para reverberar Sainte-Beuve), a categoria “ficção” (mais no sentido de Barnes & Noble do que no de Borges) usualmente se refere não apenas à narrativa em geral, mas ao romance em particular, deixando de fora a poesia, por não ser rentável, do quadro da experiência literária.
 
Se o grande poeta Neruda aparece para justificar Borges, na geração seguinte, a Híbrida, é Octavio Paz o outro grande poeta que presta seus serviços para explicar a natureza um tanto anômala, segundo nos é dito, de Julio Cortázar, Ernesto Sabato, Juan Rulfo, Mario Benedetti (cujas infelizes declarações contra o boom são oportunamente retomadas) e Jorge Amado. Os ensaios de Paz, decisivos para García Márquez, como confessou o próprio em seu inesquecível epitáfio para o poeta, pouco importam a um sociólogo coerente no exercício da objetividade auferida ao cientista e não da gravidade do juízo estético.
 
O ápice do Espírito Positivo, em Ascent to glory, é o boom e sua Geração do Romance, com Gabriel García Márquez (1927-2014) na qualidade de astro-rei — como Shakespeare em Bloom —, custodiado pelo hiperativo Carlos Fuentes (o romancista profissional sem o qual o genial costeiro de Aracataca não teria chegado tão longe), pelo volúvel José Donoso, por Jorge Edwards (um dos poucos daquela geração que nunca lhe ofertou grande reconhecimento) e por Mario Vargas Llosa.
 
Antes de prosseguir esclareço que não me atreveria a incluir Cem anos de solidão entre os livros mais importantes da história universal, como fazem alguns de seus exegetas titulados em muitíssimos campi remotos ou exprimem por meio de seus votos os impressionáveis resenhistas espontâneos em Amazon.com, prontamente incluídos em Ascent to glory. Estamos, em boa medida, diante de uma sociologia da recepção literária aplicada a um manicômio de macondofilia e, em menor grau, de macondofobia, existente entre colombianos mortos de inveja e rançosos censores franquistas. Um dos grandes romances da língua espanhola, li e reli Cem anos de solidão com prazer desde minha própria adolescência e, como tantos colegas, seria difícil conceber a mim mesmo sem ele como escritor em espanhol, embora prefira — ponto fraco no qual, bem o sei, estou em escassa companhia — O outono do patriarca (1975), a retumbante profecia desse comandante Castro ante cuja autoridade o romancista haveria de se submeter.
 
Tendo pago meu tributo, prossigo. Se a trindade de Santana-Acuña não me agradou enquanto exemplo da monopolização novelística do chamado “campo literário” e seus gerentes, expresso minha satisfação diante da conquista do professor canário, que conseguiu impor a seus editores de Columbia o uso de “U.S. scholar” ou “U.S. writer” em vez do odioso “American” como gentílico dos estado-unidenses, e creio que, ao falar de “Latin American Spanish”, tornou as coisas mais bem simplificadas.
 
Santana-Acuña entendeu o essencial, a façanha do boom ao fazer com que a América Latina deixasse de ser um conglomerado de “literaturas nacionais”, esse óbice novecentista, para se converter em um território “amplo e alheio” da literatura ocidental. Só lhe resta pedir que, caso venha a falar da Espanha, que se refira à sua literatura como escrita em “Peninsular Spanish”, e que elucide aos leitores que, sendo muito variadas as formas de se falar espanhol na América Latina, é demasiado fácil para nossos leitores entender em profundidade o que se escreve em Santiago, Buenos Aires, Havana, Cidade do México ou mesmo em Los Angeles. Enquanto estudo de como o tardofranquismo limou os dentes de sua própria censura, reconquistando o mercado latino-americano necessário para tornar o “milagre espanhol” realidade, e também enquanto crônica de como o vernaculismo foi derrotado por nossos escritores em Barcelona, Ascent do glory é impecável. O boom não foi a odiosa operação comercial perpetrada pela ambição catalã da agente Carmen Balcells, nem tampouco a ascensão de um grupo de iluminados seguindo Remedios, a bela, rumo ao céu dos justos. Foi um exemplo proverbial do exitoso matrimônio entre o gênio do romance e o comércio livreiro, como o que consagrou sir Walter Scott e Honoré de Balzac no século XIX.
 
Quanto à questão da origem alemã, durante o expressionismo, do famoso “realismo mágico”, Santana-Acuña desempenha bem a tarefa, e também ao explicar como ele veio a ser sintetizado no “real maravilhoso” de Carpentier. O rótulo, como se vê em Ascent to glory, não pode significar o que der na veneta de um professor fervoroso qualquer, e para isso o autor cita grandes críticos como Emir Rodríguez Monegal (uruguaio, e não argentino, como se menciona no livro), que nunca duvidaram que em Cem anos de solidão dava-se o cruzamento da tradição caribenha com o cosmopolitismo, muito Faulkner e não pouco Rulfo: o único erro deletério está onde se diz que Pedro Páramo é de 1964 e não de 1955, o que altera o discurso, diminuindo o rúlfico que foi García Márquez, graças a Álvaro Mutis.
 
Finalmente, faço objeção ao uso que se faz de certo “neobarroco” enquanto o estilo característico do boom. Se entende o que Santana-Acuña quer dizer: García Márquez e cia. deram à língua espanhola uma liberdade e uma beleza, insólitas, lá na península, entre o Siglo de Oro e Ramón Gómez de la Serna. Mas como omite o modernismo e Rubén Darío, nem lê poesia, Santana-Acuña ignora ou omite que, propriamente falando, foram “neobarrocos” os poeta latino-americanos assim apresentados no século anterior, por volta dos anos oitenta, como o cubano José Kozer e alguns notáveis bardos rio-platenses, como Severo Sarduy batizou esse temperamento em 1972. De toda forma, seriam “neobarrocos”, pelo esplendor e prodigalidade do seu idioma, Carpentier, Lezama Lima, García Márquez ou, em outro registro, Fuentes, mas não prosadores tão exatos, frugais no dizer e mais dedicados à técnica narrativa do que à enumeração caótica, como Vargas Llosa, Donoso e Cortázar, o mais velho daquela tropa.
 
Deixo a mitologia de García Márquez, tão detalhada em Ascent to glory, aos seus fanáticos, porque, admirador fiel de alguns de seus livros, nunca o fui do seu personagem, um escritor que trazia no cinto as chaves dos ergástulos castristas que — já se disse — lhe foram confiadas pelo tirano. Tampouco comento o adequado exercício genético do sociólogo na hora de cotejar variantes em datiloscritos. Acrescento que, acertada em termos gerais, La Mafia mexicana descrita por Santana-Acuña não foi esse cenáculo quase militante que aparece vez por outra, mas sim algo mais próximo de uma festa interminável, como aquela interpretada em Ascent to glory, onde se conta como o mau-caráter do misantropo Donoso lhe afundou literariamente, enquanto a jovialidade de García Márquez, naquelas bacanais, potencializava geometricamente seus Cem anos de solidão. É de se admirar o rigor de que Emmanuel Carballo lançou mão para auxiliar seu gregário amigo colombiano e novamente lamento que aquele bom crítico tenha saído, indolente, de cena.
 
Santana-Acuña termina Ascent to glory afirmando que nem todas as obras canônicas são clássicas, porque as primeiras necessitam da manutenção regular da academia e da crítica enquanto as segundas permanecem incólumes. A afirmação é interessante, embora esqueça que os clássicos também são mutáveis. Nosso Miguel de Cervantes não é o mesmo que o de Miguel de Unamuno, nem o Shakespeare atualmente lido pelos franceses é o mesmo que o de Voltaire. Mas já se sabe que a história e a sociologia não se dão bem e é correto que assim seja. Obcecado pelo contrafactual até incorrer em disparate, seguramente Santana-Acuña se pergunta, em sentido contrário, que tipo de clássico será Cem anos de solidão em três séculos. Enquanto isso, Ascent to glory, de Álvaro Santana-Acuña, nasceu com boa estrela. Não sei dizer se chega a ser um clássico da crítica sociológica, mas é indubitável e certeira sua pertinência canônica para além dos estudos culturais nos quais toma parte porque foi escrito com dedicação e nobreza.
 
Notas
1 Sigo aqui os termos da tradução do livro de Bloom feita por Marcos Santarrita: O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo (Objetiva, 2010).
 
* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “Ascensión al canon”, publicado aqui, em Letras Libres em 1 out. 2020. 
 

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