O próximo passo, de Cédric Klapisch
Por Solange Peirão
O filme O próximo passo integrou
o Festival Varilux de Cinema Francês 2022, e certamente voltará às salas de
exibição, em breve. Com direção de Cédric Klapisch, e roteiro em parceria com
Santiago Amigorema, insere-se na área do cinema de entretenimento, nesse caso
uma “quase” comédia, na medida em que algumas passagens hilariantes e a ironia
bem francesa se entrelaçam para expor um drama pessoal.
O enredo
Trata-se de um roteiro
relativamente simples. Elise (Marion Barbeau) é uma bailarina clássica de
sucesso que se acidenta gravemente em uma de suas apresentações e que vê cair
por terra sua vida de longos anos de treinamento árduo. Isso porque, dada a
gravidade da lesão, deve, aparentemente, segundo os prognósticos médicos,
abandonar o sonho da carreira construída com tanta disciplina. Será?
E aqui, se coloca, talvez, o ponto
central do roteiro: o que fazer quando a escolha profissional supõe um longo
período de aprendizagem, e este é quase sempre o pressuposto de toda a
profissão, mas que se apoia sobre uma estrutura mais exposta e vulnerável, como
é o corpo? Deve-se sempre estar preparado para uma outra escolha, uma segunda
vida, como verbalizam vários personagens, visto que, além dos riscos de lesão, que
podem interromper a carreira de uma hora para outra, o corpo para dança (ou o
esporte) “envelhece” mais rapidamente?
Esse questionamento rendeu, no
filme, um contraponto interessante. A jovem Elise é reiteradamente pressionada pelo
pai Henri (Deni Podalydès), “se não teria sido melhor fazer Direito”. E a crítica
ácida, mas conduzida de forma natural, aparece nesse tipo de enfrentamento, tão
recorrente nas famílias, em relação às escolhas profissionais dos filhos, por oposição
a dos pais. A mãe de Elise foi sua tutora fervorosa no balé, desde a infância.
Uma de suas irmãs voltou-se para a culinária e é dona de restaurante. Para
desespero de Henri, amante da boa literatura, e viúvo precocemente, sobraram-lhe
as filhas, voltadas para essas “artes menores”.
Interessante que o roteiro caminha
em outra direção, justamente pegando o gancho da culinária. A irmã de Elise sugere
a ela que se junte ao chef de cozinha Loïc (Pio Marmaï), e sua namorada
Sabine (Shouheila Yacoub), para dar um tempo e pensar.
Ambos estão de partida para uma
cidade litorânea da Bretanha. Vão cozinhar no hotel da excêntrica Josiane
(Muriel Robin). A particularidade do espaço é receber grupos de artistas, que lá
se hospedam para ensaiar. Elise, entristecida e desanimada, topa. Mal sabe ela,
que ali encontraria um novo destino, a chave para uma nova vida.
E a vida nova estava naquele grupo
de dança contemporânea que chega ao hotel, e que Elise observa da cozinha,
pelas portas envidraçadas, a descascar e picar cebolas e legumes. Que proposta
era essa, tão distante das sapatilhas dos pés em ponta, e do tutu, a clássica
saia armada das bailarinas do balé clássico? Aqui, os dançarinos vestiam seus
moletons, e seus pés descalços batiam com vigor no piso da sala. Era possível para
Elise, fascinada aos poucos com os ensaios, tamanha reviravolta? Sua lesão
suportaria uma outra condição, essa nova forma de dançar?
Pontos remarcáveis do roteiro
— A bonita trilha sonora original,
de autoria do coreógrafo Hofesh Shechter, que também participa do filme com sua
companhia de dança contemporânea. A trilha evolui das referências musicais, do
clássico ao contemporâneo, e é o substrato das imagens de dança mesclada que
abre e fecha o filme. Além disso, a música do balé inicial, La Bayadère,
com toque orientalista, já introduz os ritmos que serão retomados na
coreografia final do grupo de dança contemporânea.
— Elise se desequilibra e cai
porque descobre, em cena, a traição do namorado, seu par e protagonista, com
uma bailarina da companhia. Bonita aqui a movimentação entre atos e o lenço que
cai sobre sua cabeça, tapando o rosto, conforme a tradição oriental. Seria
parte do figurino ou serve para ocultar a traição, antes da entrada em cena?
— A traição casada: o fisioterapeuta
de Elise, ambos atraídos posteriormente um pelo outro, também foi traído pela
namorada, e adivinhem com quem? Com o namorado de Elise.
— A reflexão entre os mistérios do
corpo, suas possibilidades de restauração, o “retrouver ton centre”, como diz o
fisioterapeuta, em oposição aos limites que a ciência impõe. Esse diálogo se dá
numa bonita tomada da câmera que focaliza a posição invertida das cabeças de
ambos, já que acontece no processo de massagem.
— A reflexão de Elise sobre o destino
trágico das mulheres nos textos e coreografias do balé clássico. A dança
contemporânea que se abre para novas abordagens.
— Um dos pontos altos, tanto pela
interpretação, como também pelos temas abordados, acontece em torno da dupla Loïc
e Sabine. Ficam ainda a cargo deles as cenas mais hilariantes. Antes de tudo,
registre-se que Loïc é esse grande ator, Pio Marmaï, premiado por sua atuação
recente em A fratura. Na mão deles, estão as deliciosas conversas que
relacionam alimentação e movimento dos corpos, enfim a dança; a aparente brutalidade
do cozinheiro que se contrapõe ao seu preparo delicado das peças do cardápio; e
os diálogos divertidos sobre comida vegana e os pratos sofisticados, nenhum
pouco veganos, do chef Laïc. No fundo, sempre está contida a reflexão
sobre o sentido e o alcance de todas as modalidades de arte (há grupos
diferenciados, ensaiando no hotel), retomando a posição inicial do pai de Elise,
focado na literatura, segundo ele “uma arte maior”.
— A cena do grupo de dançarinos em
visita à orla marítima no litoral escarpado, de fortes ventos, na Bretanha, que
os fazem, involuntariamente, repetir o balanço desequilibrado dos corpos, de
sua coreografia.
— A conversa de Elise com uma
antiga colega do balé clássico, em que se opõe a beleza própria das duas
modalidades de dança: a clássica, etérea, aérea, que remete ao sonho, e a
contemporânea, tribal, corpos no solo, em contato com a terra, com dados de
realidade que se abrem, entretanto, para uma nova forma de busca da luz e da
espiritualidade.
— A introdução sutil do tema das
relações homoafetivas na dança. Elise, traída, no início do filme, recebe o
apoio das amigas. Uma delas se gaba da segurança, em relação ao seu namorado.
No entanto, Elise sugere uma possível aproximação dele com Mehdi (Mehdi Baki),
um dançarino de hip hop, que Elise reencontrará, mais tarde, como membro da
companhia de dança contemporânea, e que será seu novo affaire. Ao final
do filme, na confraternização dos grupos na bela La Grande Halle de la Villette,
vê-se, ao fundo, Mehdi caminhando com o namorado da amiga, e o olhar sorrateiro
e tranquilo de Elise, que os observa. Autocrítica e postura revistada?
O fato é que em O próximo passo,
um filme leve, aparentemente sem reflexões de grande envergadura, as principais
questões que rondam a contemporaneidade foram colocadas. E é bonito de se ver.
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