O príncipe Kropotkin e a literatura russa

Por Christopher Domínguez Michael

Piotr Kropotkin.


 
Nenhum outro revolucionário legou uma imagem tão impecável como Piotr Kropotkin (1842-1921), “anarquista entre os príncipes e príncipe entre os anarquistas”, segundo o crítico dinamarquês Georg Brandes.1
 
É unânime a lembrança de seu bom berço no bairro dos Velhos Cavaleiros de Moscou, de sua primorosa educação à maneira do czarismo do Iluminismo, de sua alta relevância como geógrafo de estatura internacional — ainda hoje célebre autor dos mapas siberianos —, e seu caráter simultaneamente gentil e firme. Ele é o único dos anarquistas que, com seu “anarquismo científico”, tinha algo a dizer ao século XXI, segundo o historiador marxista Eric Hobsbawm.2
 
Enquanto Mikhail Bakunin não é perdoado por seu estridente antissemitismo ou Pierre-Joseph Proudhon por sua cruel misoginia, Kropotkin saiu ileso da arena do absolutismo e da Revolução. Em 1914, enlouqueceu seu povo ao fazer o impensável para um anarquista: tomar partido, na Grande Guerra, pela civilização contra a barbárie, pela França e seus aliados contra os impérios centrais e pela Rússia.3
 
Ao fazê-lo, “autorizou” Buenaventura Durruti e os anarquistas espanhóis, que, pouco mais de vinte anos depois, aderem ao governo da República Espanhola como ministros. Exilado desde 1876, retornou à Rússia em 1917 e, apesar de condenar sem reservas a revolução bolchevique, esse “socialismo de Estado” escravista idealizado pelos primeiros anarquistas, Lênin o recebeu duas vezes. Em sua morte, no que provavelmente foi o último gesto de deferência dos bolcheviques em relação à oposição, lhe deram um funeral oficial, que sua família recusou.
 
Suas Memórias de um revolucionário (1899) foram para outro príncipe — D. S. Mirski em História da literatura russa (1926)4 junto com as de Aleksandr Herzen (Passado e pensamentos, 1870), um modelo do gênero. O que eu não sabia é que Kropotkin também era o autor de Russian Literature. Ideals and Realities (1905).
 
Sem outra pretensão senão a de ser um manual e aparentemente escrito originalmente em inglês (como as Memórias de um revolucionário desse poliglota eslavo), não é apenas uma obra elegante e bem documentada: contém perspectivas e opiniões inusitadas, cuja originalidade acaba colocando o príncipe entre os polímatas mais ilustres da história moderna.
 
Não consegui descobrir se Vladimir Nabokov disse alguma coisa sobre o príncipe Kropotkin, mas o autor de Lolita — filho de um grande liberal constitucionalista assassinado em 1922 — deve ter desprezado o príncipe como mais um dos loucos que, intoxicados pela religião ou ciência, destruíram a Rússia, fossem eles populistas, niilistas, terroristas, revolucionários sociais, mencheviques, bolcheviques ou anarquistas. No entanto, os capítulos iniciais de Memórias de um revolucionário, ambientados na infância de Kropotkin durante o sombrio reinado de Nicolau I e sua juventude nos dias de ilusões perdidas sob Alexandre II, são um rascunho do memorável conto de fadas de Nabokov (Fala, memória, 1966). Parece — e aqui acrescento Herzen — que só a velha Rússia criava para suas nobres infâncias perfeitas, cheias de luz e abundantes em doces, com a mesma intensidade com que, se transformada numa “bruxa uivando na nevasca” (a imagem é de Boris Pilniak), lançava, como uma mãe, seu povo à destruição. Ao contrário do rabugento Nabokov, o príncipe conservou durante toda a vida a bonomia típica das crianças felizes e ouso dizer, tendo lido Memórias de um revolucionário, que Kropotkin foi vacinado desde cedo contra todo mal. Não apenas seu sistema filosófico-econômico o descarta como uma questão passageira, obra da irracionalidade, mas a vida do príncipe é caracterizada por sua indiferença ao Mal. Kropotkin, o cientista, lutou, outra coisa bem diferente, contra a injustiça em todas as suas variedades, mas ele nunca foi tentado, ao contrário de todos aqueles russos errantes e chorosos que leram Hegel, a buscar um plano metafísico contra nada ou alguém.
 
O horror dos campos de concentração soviéticos, sem dúvida, deveu muito à crueldade do czarismo, que, em comparação, tendemos a esquecer, embora Kropotkin o detalhe, com a indignação de um homem esclarecido, mas sem o ódio de um romântico: desde o quartel de um século de serviço militar ao qual os russos foram forçados até a escravidão dos servos, que foi desaparecendo, segundo nos conta alguém que estudou para ser pajem do czar, assim que chegasse à Sibéria. Nessa terra desolada de utopistas práticos (abundantes, dado curioso, mais entre os administradores militares czaristas do que entre os conspiradores exilados), Kropotkin não só se associou, em solidão, à Natureza (sua verdadeira utopia corre ao longo do rio Amur), mas prolongou a beleza de sua infância frequentando a literatura russa.
 
Comecei a ler Russian Literature. Ideals and Realities por disciplina, esperando me encontrar com aquela visão romana, utilitarista e filisteia da arte, “pequeno-burguesa”, tão típica dos revolucionários do século XIX, que Tolstói levou ao extremo em O que é a arte? (1897), livro com o qual Kropotkin discute no final de seu manual. Grande foi minha surpresa quando cheguei rapidamente — a vida é longa, a literatura russa é curta — a Aleksandr Púchkin e encontrei uma opinião herética. Aqueles que sabem russo asseguram que aqueles de nós que o ignoram nunca serão capazes de ouvir, em sua inimitável beleza, a musicalidade de Púchkin, a ponto de uma das controvérsias literárias mais áridas do século ter sido protagonizada entre Nabokov e Edmund Wilson sobre como traduzir Eugênio Onêguin.5
 
Tudo bem: nunca desfrutaremos desse dom de Deus. Mas acontece que Kropotkin se pergunta, como sempre, por que Púchkin não é tão admirado no Ocidente quanto na Rússia e responde assim: “A beleza da forma, o verso alegre e o ritmo são suas virtudes principais, mas não a beleza de suas ideias.” E as ideias nobres, acrescenta o anarquista, ajudam a tornar a poesia ainda mais bela.6
 
O que eu jamais ousara suspeitar, para não incorrer em blasfêmias, revelou-se impiedosamente diante de meus olhos, lendo Kropotkin algumas linhas mais adiante, quando diz que o belo Púchkin, amigo dos dezembristas de 1825, não tinha “a profundidade e a elevação de ideias” próprias, pelo menos, de Goethe, Schiller e Lord Byron. Ou seja, o grande poeta russo era um romântico menor. Fico aqui.
 
O anarquismo de Kropotkin, inspirado tanto na comuna agrária russa quanto em Proudhon, acabou por libertá-lo da querela entre eslavófilos e ocidentalizantes. Mas isso não o impede de considerar que o grande escritor russo do século XIX, depois de Tolstói, é Ivan Turguêniev, uma admiração que, após a aparição diabólica (e problemática) de Fiódor Dostoiévski, deixa a posteridade prostrada. Ninguém trava um duelo, há mais de um século, pelo gigantesco amigo de Flaubert; sua tradução jamais despertaria tanto ressentimento como o que destruiu a amizade entre Nabokov e Wilson, e este implica em Uma janela na Rússia: para uso de leitores estrangeiros (1972) que Turguêniev, esse admirável liberal sem religião, não teve as grandes quedas próprias de Tolstói ou Dostoiévski porque não era tão grande quanto eles.7
 
Foi, para dizer à moda da Terceira República Francesa, “um grande escritor menor”, com o qual Nabokov concorda. Kropotkin, temo, nos desaprovaria. O que chamamos de mediania em Turguêniev, para aquele a-romântico que era o príncipe, era o grande na literatura: o meio-tom, a sutileza, o humor amargo de Anton Tchekhov, o último grande a aparecer em Russian Literature. Ideals and Realities.
 
Sua discrepância com Turguêniev, a do anarquista, remete, é claro, ao niilista Bazárov de Pais e filhos (1862). O romancista adorava o personagem — disse a Kropotkin em Paris — mas era um amor incompreensível pelos revolucionários russos, fossem eles os idealistas de 1848 ou os furiosos de 1861 durante a libertação dos servos. O bem-humorado anarquista se ressente de um Bazárov retratado como um homem frio e cruel, ou seja, um “niilista”, quando sua geração, descrita por Kropotkin em Memórias de um revolucionário, foi caracterizada, diz ele, não pelo terrorismo (que ele detestava), mas pelo distanciamento dos jovens narodnik que deixaram universidades, corporações e casas paternas para se fundirem com os camponeses, liderados por aquelas meninas estudiosas que cortavam o cabelo e se tornavam noviças da vontade do povo. Kropotkin cita Hamlet e Dom Quixote (1860), de Turguêniev, e diz que, tendo que ser um Quixote (o quixotismo russo está à frente ao de Miguel de Unamuno no que diz respeito ao ideal de caridade tomado como loucura), Bazárov se apresenta como um cético hamletiano.
 
O desprezo de Kropotkin por Dostoiévski também é previsível, é o mesmo de Nabokov e de quase todos os russos de origem aristocrática e ocidentalizante. Para ambos, a genialidade do autor de O idiota (1869) não é para tanto. Ele foi um folhetinista melodramático, um estilista descuidado e totalmente irrealista (Kropotkin) ou um cristão neurótico (Nabokov),8 quem de vez em quando é visitado pelas musas da inspiração para abandoná-lo e deixá-lo, não em transe epiléptico, feito um náufrago. O ateísmo de Kropotkin (para quem uma expressão como “misticismo eslavo” era um absurdo típico de “histéricos”) e Nabokov nos torna insensíveis à religião de Dostoiévski: o famoso anarquista fugindo da prisão militar de São Petersburgo como quem brinca de esconde-esconde e o grande caçador de borboletas, eternas crianças alheias ao Mal, não queriam nada com a tempestuosa adolescência da humanidade exposta em Os irmãos Karamazov.
 
Dando crédito a Ivan Gontcharov, cujo Oblomov (1859) causou sensação ao aparecer e foi esquecido por décadas, e, depois de rejeitar que o “Oblomovismo”, essa preguiça teimosa e sublime, faz parte do caráter nacional dos russos, o príncipe chega às terras de Tolstói, o gigante. Admira o homem e o escritor, mas, como outros leitores inteligentes ou críticos literários afeitos ao estilo de Kropotkin farão, ele não compra a abjuração da arte encenada pelo velho Tolstói. Claro — fala um anarquista russo — que Guerra e paz é “uma fonte indecifrável de prazer estético”!9
 
Kropotkin era alheio tanto à doutrina da Arte pela Arte quanto ao cristianismo utilitarista de Tolstói, pessoa com quem nunca se encontrou. Com as mortes de Herzen (1870), Bakunin (1876) e do próprio Tolstói (1910), o príncipe herdou a liderança espiritual do anticzarismo, mas antes mesmo disso, quando o conde de Yásnaia Poliana era um aliado poderoso, ousou discutir sua condenação da arte. Admitindo que a Bíblia era um tesouro intransponível, se recusava — como Tolstói — a comparar uma canção popular, típica de um meio-dia bucólico, com uma sonata de Beethoven, “uma tempestade nos Alpes”.10
 
 E o fato é que se algo sobrava em Kropotkin, era bom senso: ele compreendia a necessidade política dos romancistas camponeses, precursores do realismo socialista, mas deles apenas resgatava, por seus poderes artísticos, o jovem Maksim Górki — me deu vontade de relê-lo graças ao príncipe — capaz de dizer que um rebelde vagabundo é um Schopenhauer à sua maneira.
 
Retratando os grandes críticos russos de seu século — Vissarion Bielínski, Nikolai Dobroliúbov, Dmitri Píssariev, Nikolai Mikhailóvski — Kropotkin reiterou uma certeza. Em nenhum país do mundo, como na Rússia dos czares, o crítico de arte e literário foi tão importante. A censura exige que as letras expressem apaixonada e implicitamente o que importa, o que é proibido e diz respeito à mesma “questão social” da beleza das ideias. No príncipe, a crítica literária ocorre naturalmente, como extensão das humanidades renascentistas e da ciência prática do século XIX. Ele, que havia explorado tudo em termos de sociedade e Natureza, com a ingenuidade do anarquista e do liberal — afinal, também acusado ​​de simplicidade —, não podia deixar sem visitar sua própria literatura. E o fez com autoridade e, claro, nobreza. Sem preconceito, alheio ao dogmatismo dos fanáticos da liberdade que ele cultivou e liderou, adversário de Marx, na Federação Operária do Jura. Por isso, em De profundis, Oscar Wilde confessou: “Duas das vidas mais perfeitas que conheço são as de Verlaine e do príncipe Kropotkin: ambos passaram anos na prisão. Verlaine, o único poeta cristão depois de Dante; Kropotkin, um homem com a alma daquele belo Cristo níveo que parece prestes a emergir da Rússia”.11
 
Notas

1 Georg Brandes, “Pierre Kropotkin et Georg Brandes, 1896-1919” em Correspondence, II, L’Anglaterre et la Russie, edição de Paul Krüger, Copenhague, dsl, 1956, p. 119.
 
2 Jim Mac Laughlin, Kropotkin y la tradición intelectual anarquista (Barcelona, Ariel, 2017), tradução de Vicente Campos.
 
3 E. Etkind et ali, Historie de la littérature russe. Le XXe siècle. L’Age d’argent (Paris, Fayard, 1987, p. 641).
 
4 D. S. Mirski. A History of Russian Revolution. From its beginnings to 1900, edição de Francis J. Whitfield (Evanston, Northwestern University Press, 1999), p. 354-355.
 
5 Alex Beam, The Feud. Vladimir Nabokov, Edmund Wilson, and the end of a Beautiful Friendship (Nova York, Pantheon, 2016), p. 67-129).
 
6 Piotr Kropotkin, Russian Literature. Ideals and Realities, p. 41.
 
7 Edmund Wilson, Ventana a Rusia. Para uso de lectores extranjeros (Ciudad de México, FCE, 1981), tradução de David Huerta e Paloma Villegas, p. 150.
 
8 Vladimir Nabokov. Lecciones de literatura rusa (Buenos Aires, Emecé, 1984), compilação de Fredson Bowers e tradução de María Luisa Balseiro, p. 168.
 
9 Piotr Kropotkin, Russian Literature. Ideals and Realities, p. 133.
 
10 Piotr Kropotkin, Russian Literature. Ideals and Realities, p. 326.
 
11 Oscar Wilde, Epistola: in carcere et vinculis (De Profundis) (Barcelona, Muchnik Editores, 1975), tradução de José Emilio Pacheco, p. 149.
 
* Este texto é a tradução livre de “El príncipe Kropotkin y la literatura rusa”, publicado aqui, em Letras Libres.

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