O Céu de Suely: o sensível também é possível
Por Heto Sazá
O céu de Suely começa
com um sonho, com um delírio, e deixa claro, desde o primeiro plano, o seu
caráter intimista. A protagonista Hermila apresenta-se com a seguinte frase:
“eu fiquei grávida num domingo de manhã” e em seguida, ao som da balada brega-romântica
“Tudo que eu tenho de Diana”, dança em lembrança, feliz e apaixonada, com seu
namorado. Até que ela desperta, em um ônibus a caminho de sua cidade natal,
Iguatu, no semiárido cearense. Hermila é doce e amável; volta para casa com um
filho no colo e com algum brilho na cara, mas depois disso, como o protagonista
de Árido movie (Lírio Ferreira, 2006), ela não mais pertence àquele
lugar. E que lugar é esse, afinal, que expulsa os seus?
Mesmo diante desse mote, tão
sensível aos sertões, o filme não cai na mesmice: Iguatu é uma cidade pacata e
não parada; Hermila deixou-a por causa do amor e não por causa da seca. O filme
parece, na verdade, mais interessado em desconstruir clichês do que se basear
neles. Ter um enredo centrado no universo feminino dentro de um lugar por tanto
tempo tão masculinizado como são os sertões¹, com suas mulheres-machos, é por
si só inovador; não que sua presença e o machismo não estejam aqui, mas quando
ele aparece é numa perspectiva crítica.
Hermila é solta, leve,
despreocupada, usa saia curta e barriga à mostra, sai com as amigas para dançar
e se diverte ao som de Aviões do Forró, diz com um sorriso no rosto que às
vezes tem vontade de deixar o filho “no mato”, paquera o motoqueiro enquanto o
namorado não chega da cidade grande, e não se culpa por isso, tampouco o
roteiro faz isso, pelo contrário, o texto naturaliza a postura de sua
protagonista. E continua. Hermila fuma maconha e cheira acetona para passar o
tempo, pensa abertamente em se tornar prostitua, e mesmo assim, o filme não a
julga, ao invés disso, a faz dançar livremente no plano seguinte ao som de “Que
tontos, que loucos”, momento no qual ela decide rifar a si mesma, ou melhor,
“uma noite no paraíso”, momento em que se torna enfim “Suely”.
Diante disso, ela tem de enfrentar
sua família; a tia pergunta “que ideia de puta é essa?” e ela responde “puta
transa com muitos, eu só vou dar pra um”.
A figura da avó assusta e pesa sobre Hermila, ela cobra das contas, do
filho, do marido, o que leva Hermila na cena seguinte a ir à rodoviária em
busca de passagem “para o lugar mais longe”. Mais tarde, ela apanha da avó no
rosto, que exige um pedido de desculpas pela “desonra”, firme e agressiva, em
pura violência, naquela que talvez seja a cena mais impactante do longa.
A tia, por outro lado, é mais
sutil e menos óbvia, porém, igualmente agressiva, critica o cabelo, critica a
roupa, critica a postura de Hermila. Mas os problemas não se limitam às paredes
do lar, a personagem também precisa enfrentar os homens da rua que, sempre
confortáveis e invasivos, discutem o valor do corpo de Hermila, como se
possuíssem mais autoridade sobre o assunto do que ela própria. Ela quase apanha
quando oferece a rifa a um homem no mercado, que a pega pelo braço, enojado, e
a força deixar o lugar.
Outra inovação do longa é trazer
para telas o sertão urbano, que como já pudemos ver, é exaustivamente associado
ao mundo rural ou, no máximo, a uma urbanidade incipiente. O sertão aqui é
moderno, das telas e dos rádios que ecoam preenchendo os interiores das casas
mais humildes, o sertão aqui já não é o mesmo “sem rádio, sem notícia das
terras civilizadas” cantado por Luiz Gonzaga. É, pois, o sertão das mídias e
das massas.
Aqui o sertão é pop. Aqui,
pôsteres de Bruce Lee dividem as paredes com quadros de Padre Cícero. Ao pintar
uma cidade de cores brutas e ruas escuras, o filme surpreende ao fazer muito
com pouco. O uso sensível dos tons crus na pacata cidade atrai a visão. A
iluminação é natural, e não foge das sombras duras. Temos aqui uma abordagem
sensível e realista, e uma tendência não anula a outra.
Essa estética configura o que
alguns críticos entendem como “novo realismo latino-americano”² e pode ser
percebida nas demais produções do diretor Karim Aïnouz, entre as quais estão Madame
Satã (2002) e A vida invisível (2019) . Nesse sentido, podemos
concluir como o filme consegue ser, ao mesmo tempo, íntimo, poético e sensível,
algo que fica evidente no uso de planos fechados e de planos-detalhe, como, por
exemplo, na cena do sexo rifado: incômoda e sufocante, ela nos embrulha o
estômago ao pintar uma Suely fria e distante que só então conhece o peso de se
vender.
Como
Deus e o Diabo na Terra do Sol, o filme de Karim Aïnouz termina em
êxodo. Hermila viaja para Porto Alegre e reconciliada com a família promete
voltar para buscá-la. Como em Vidas secas o filme termina e começa na
estrada, mas aqui os sertões são menos áridos, e os ventos mais favoráveis.
Aqui o céu é azul, aqui ainda há céu.
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