Literatura: censura e boas intenções
Por Gisela Kozak Rovero
Ilustração: Ivan Lubennikov |
Na primeira parte desta série
comentei os altos e baixos da arte verbal entre a submissão aos valores
postulados do poder e seu desafio ou desmascaramento.¹ Tais oscilações estão
relacionadas à preocupação das elites políticas e religiosas com as influências
da escrita sobre os leitores. Em seu belo texto “A muralha e os livros”, Jorge
Luis Borges conta a história de um imperador da China que baniu os textos do
passado, testemunhos de reinados anteriores com os quais os seus poderiam ser
comparados. Outro Jorge, um monge, personagem do romance O nome da rosa,
de Umberto Eco, envenena um livro, A Comédia de Aristóteles, para punir
seus leitores, culpados do maior pecado possível, o riso, porque quem ri muito
zomba de Deus.
Este monge, cego e trancado numa
biblioteca labiríntica, constitui uma homenagem lúdica e irônica ao escritor
argentino e uma confirmação de seu zelo pela palavra escrita. Padre Jorge
zelava pela pureza dos bons católicos, livrando-se dos eflúvios venenosos dos
livros pagãos. O censor perfeito é um estoico com o poder de ditar o que é
conveniente ou não para potenciais leitores, considerados menores. A relação
entre igreja, livros e censura transcende, é claro, o jogo ficcional: só os
bibliotecários, os monges mais experientes, os preguiçosos, alguns nobres, os vagabundos
e os hereges conheciam as páginas perturbadoras dos volumes proibidos. Não é
por acaso que o personagem que dirige a queima de livros em Dom Quixote
é um padre, incendiário, católico exemplar e grande conhecedor do cânone e da
boa, má e regular literatura de seu tempo.
Em termos da modernidade
esclarecida, um marxista diria que os livros estão ligados à ideologia, capazes
de fazer o inaceitável parecer aceitável. Portanto, deve haver instâncias que
nos protejam de seus possíveis efeitos. Até o século XX, a censura como
política de Estado era comum no mundo, embora nenhuma democracia liberal
chegasse aos limites dos governos fascistas e comunistas em todo o planeta. Com
o entendimento de que um mundo completamente sem censura nunca existiu, deve-se
reconhecer que as democracias liberais da segunda metade do século anterior
foram muito mais longe. Passada a maioridade, se dava como fixada a idade
adulta, principalmente no caso de estudantes universitários, expostos a
diversos estímulos intelectuais e estéticos.
Ainda é assim no século XXI?
Somos testemunhas de atos de
censura por parte dos Estados em sociedades que se consideravam voltadas para
essa intervenção nas liberdades civis. No Brasil, um funcionário do regime de
Jair Bolsonaro tentou proibir textos com temática LGBTQ em uma feira do livro
no Rio de Janeiro, no melhor estilo dos regimes antiliberais que pululam na
Ásia, África e Leste Europeu. Nos Estados Unidos, bibliotecas públicas em
entidades governadas por republicanos retiram títulos considerados perigosos
para a sexualidade e a formação moral de crianças e jovens. Esses dois exemplos
vêm da direita, mas não devemos nos enganar: eles não estão sozinhos em suas
tentativas de controle dentro de países considerados democráticos.
Nas universidades mais
prestigiadas dos Estados Unidos, prosperou a ideia de que a linguagem é capaz
de se tornar uma violência extrema. Assim, um texto de Ferdinand Céline ou Mark
Twain poderia perfeitamente prejudicar alunos pertencentes a setores
historicamente discriminados. A elaboração estética já não salva a literatura,
submetida à mesma leitura unívoca típica de uma sátira. Céline, um grande
escritor de conduta infame, não supera nos corredores da universidade
purificada a consideração de seu antissemitismo e racismo assustadores? Parece
que não: ao invés de lutar contra a corrupção da juventude, um argumento
conservador, evita causar dor ao corpo discente com leituras totalmente fora de
seus valores atuais.
Entre os homens e mulheres
criadores de literatura, as reações a essas tendências censórias não foram
unânimes. Após o terrível ataque de fundamentalistas islâmicos à revista
francesa Charlie Hebdo, o Pen Club Internacional se dividiu entre
defensores irrestritos da liberdade de expressão e aqueles que acusaram os
editores e ilustradores da publicação de serem racistas, sem justificar
plenamente o ataque, é claro. Em outras palavras, o ataque não é endossado, mas
a indignação que o anima é compreendida e tal entendimento é dado como certo. A
mesma tolerância seria mantida se fosse um ataque de cristãos fundamentalistas
a uma editora feminista nos Estados Unidos? Ou o cristianismo é censurável, mas
o islamismo não? A desculpa da diferença cultural que considera os valores
liberais como um reflexo colonial é então imposta quando se trata de religiões
não-cristãs?
Estamos diante de uma ruptura,
talvez definitiva, com o que justificou a importância cultural da literatura
nos últimos séculos: sua experimentação, como arte verbal, com todas as
possibilidades da imaginação. A estética, dimensão do conhecimento e da
sensibilidade humanas, não é importante em nome de causas ligadas ao avanço dos
direitos humanos; não é a primeira vez que a esquerda assume esse papel
paternalista, também o fez apoiando a censura nos países socialistas
(escreverei sobre essa relação entre literatura e revolução num próximo texto).
Mesmo os adultos devem ser
protegidos de representações simbólicas que relembrem as diversas
discriminações existentes no passado e no presente ou que estimulem leituras
não unívocas sobre temas polêmicos, como suicídio e a pedofilia. Supõe-se que a
letra tenha o poder material de ferir de forma análoga à escravidão, à tortura
e ao assassinato. É claro que devemos combater esse absurdo e enfatizar que um
livro sempre pode ser discutido e questionado entre iguais, enquanto a força
bruta implica uma relação de poder caracterizada por sua verticalidade, com
efeitos duradouros nos corpos das vítimas. A universidade é o lugar perfeito
para essa discussão e questionamento, sem limites ou proibições. Assim, é
obrigado a abandonar as tendências autoritárias e a liderar a luta contra a
censura nas sociedades democráticas, censura que hoje assume não apenas a
roupagem vulgar da direita mais ignorante, mas também das mais refinadas
inspiradas na teoria pós-estruturalista ou teoria decolonial.
A censura identificada com grandes
causas políticas é a mais perigosa de todas, pois tem o apelo de se apresentar
como o caminho para a mudança em um tempo desconcertante, vivenciado como
perigo iminente. Também fornece uma mercadoria rara: a esplêndida certeza
absoluta, a maior doçura do fanatismo.
Nota da tradução:
>>> O primeiro texto da série também foi traduzido para este blog. Leia aqui.
* Este texto é a tradução livre para “Literatura: censura y buenas intenciones”,
publicado aqui, em Letras Libres.
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