Escritores em viagem e romances de viagem
Por Joaquín Pérez Azaústre
Caspar David Friedrich, Caminhante sobre o mar de névoa, 1817. |
Você precisa de uma viagem, mas
ainda não sabe para onde. Diz o seu corpo, lhe diz o medo diante de uma sala
que se torna cada vez menor, mesmo quando escreve. Essa febre de luz e palavras
que chegam em torrente agora se torna espessa. Porque é disso que você sente
falta quando estende os olhos além do limite do texto: distância, horizonte. Isso
que lhe dá pano de fundo e perspectiva em contraposição de vozes.
Você precisa se mexer com
urgência: impossível pensar em tudo isso sem considerar os dois últimos anos de
pandemia, porque o confinamento tem sido um sufoco moral. Precisamos nos
expandir além de nossos ambientes, para que possamos voltar e suportá-los
novamente: até mesmo celebrá-los, se ficarmos tranquilos. E os escritores que
sobreviveram à tentação de escrever seu romance sobre a Covid precisam seguir o
caminho para encontrar, mais uma vez, seu lugar de escrita no regresso.
O escritor de viagens, nasce ou é
feito para tanto? Viaja com a ideia prévia de escrever o que viu e ouviu, ou é
uma sedução do lugar que logo o atordoa e o conquista, o que quase lhe obriga a
reescrevê-lo? Homero fundou tudo e é possível que ele nunca tenha saído da
atual costa turca, em Samotrácia ou em qualquer outra ilha com seus mares de
bronze; mas não há viagem maior do que a sua Odisseia, nem com mais
longo alcance.
Agora leia A Travel Guide to
Homer: On the Trail of Odysseus Through Turkey and the Mediterranean (2014),
de John Freely, e você viaja pela sua mão pelas costas de Tróia, as do mar Egeu
turco e as praias douradas do Mediterrâneo, seguindo os vários rastros de
Ulisses quando voltou da guerra, em algumas aventuras que agora você vive
novamente; mas em sua pele e de seus sentidos, para depois retornar à sua
família em Ítaca. Ulisses puxará seu arco com você e você chegará junto com ele
ao destino.
Mas coloca esse livro frente a
outro: Na Odyssey: A Father, a Son, and an Epic (2017), de Daniel
Mendelsohn, a extraordinária autobiografia em que um matemático aposentado de
oitenta e um anos se inscreve por acaso no seminário que seu filho ministra
sobre a Odisseia na universidade. Você obterá uma abordagem radicalmente
diferente: a de um homem que vai em busca de seu filho, mas também um filho que
recebe seu pai, enquanto eles seguem o curso universitário sobre a Odisseia
e eles mesmos são Odisseu e Telêmaco — revelação e espelho — com Homero como um
anjo protetor da jornada.
Livro de viagem, então, ou romance
de viagem com mais ou menos doses de autoficção? A questão é difícil porque é
muito ampla, porque todos os escritores, mais cedo ou mais tarde, temos algum
livro em que contamos uma ou mais memórias de viagem. Mas fica claro que O livro
das maravilhas (1298) de Marco Polo, também conhecido como Descrição do
mundo ou O milhão, escrito após retornar do Oriente Médio, Ásia
Central, China, Japão, Índia ou Sri Lanka, em uma viagem que durou sua vida,
estabelece uma categoria que poderia incluir também O itinerário de Benjamim
de Tudela (1543) — o escritor errante do Mediterrâneo que ligou o vale do
Ebro a Bagdá— ou Naufrágios (1555) de Alvar Núñez Cabeza de Vaca, que em
suas explorações foi da Flórida ao Novo México.
Outra categoria, talvez frívola,
mas não desinteressante, poderia encarnar um livro um pouco mais ocasional, mas
cheio de encanto, como Inverno em Maiorca (1842) de George Sand,
relatando sua estada de três meses com Frédéric Chopin, doente com tuberculose,
no monastério de Valldemosa, antes de retornar a Paris, numa classificação que
também poderia admitir Paris é uma festa (1964) por Ernest Hemingway,
relatando suas memórias daquela juventude, quando F. Scott Fitzgerald já
começava a entrar em crepúsculo e naquela cidade ainda era possível ser jovem,
muito pobre e mesmo assim muito feliz.
E outro nível, diferente, com uma
abordagem menos intimista, embora com experiência direta de viagem e
claro-escuro de denúncia existencial, poderia ser Coração das trevas
(1899) de Joseph Conrad ou Moby Dick (1851) de Herman Melville. Claro
que nenhum deles se assemelha A ilha do tesouro (1883), do também bom
poeta Robert Louis Stevenson. E Júlio Verne, Emilio Salgari ou Gabriel Sabatini
com Capitão Blood: His Odyssey (1922), que sempre terá o rosto de Errol
Flynn na Ilha de Tortuga.
Há também outra viagem de um
escritor moderno, mais um testemunho convertido em discurso estético e moral,
que começa com Michel de Montaigne em suas viagens pelos balneários da Europa,
com seu Diário de viagem (1774) atravessando a Europa como Stefan Zweig em
Autobiografia: o mundo de ontem. Memórias de um europeu (1942), mas com
uma diferença terrível: Montaigne empreendeu uma longa viagem pela França,
Alemanha, Áustria, Itália e Suíça em buscando águas mais puras que pudessem
curar seu mal de pedra, e Stefan Zweig o faria, século e meio depois, numa travessia
festiva e elegante de concertos, recepções e apresentações de livros, antes, e
depois para chegar a Petrópolis, fugindo dos nazistas.
Pouco antes, em 1937, a indomável
Rebecca West viajaria pela antiga Iugoslávia para escrever Cordeiro negro,
falcão gris (1941). A também conhecida como Dorothy Parker britânica saberia
recolher a história dos Balcãs numa obra impressionante, de mais de mil
páginas, em que já era palpável a terrível ameaça do nazismo. Inaugura-se aqui
um mundo que é de ontem e de sempre: a viagem transformada em discurso nutrido
pela paisagem, sem romance ou com ele.
Talvez um dos maiores exemplos
contemporâneos seja Danúbio (1986) de Claudio Magris, mas a tradição é
anterior: Viagem à Itália (1816) de Wolfgang von Goethe, Roma,
Nápoles e Florença (1917) e Passeios em Roma (1829) de Stendhal — que
deu nome à sua síndrome, diante da concisão avassaladora de toda a beleza
acumulada em infinitos detalhes e nuances de uma arquitetura que atordoa seu
espírito —, Notas de América (1842) de Charles Dickens ou Viagem ao
Oriente (1851) por Gustave Flaubert, com seu amigo, também escritor,
viajante e fotógrafo Maxime Du Camp: eles fizeram as primeiras fotografias dos
vestígios arqueológicos do Egito.
Precisamente a tradutora de Salammbô
para o inglês, May French Sheldon, chegou vários anos depois à África para
explorar os arredores do Lago Chala, entre Mombaça e Kilimanjaro. Ela narrou
sua jornada em Sultan to Sultan: Adventures Among the Masai and Other Tribes
of East Africa (1892). Ela sempre viajava sozinha, mas com duas pistolas na
cintura.
Há mais exemplos, como o Diário
de uma viagem à Rússia (1935), de Lewis Carroll, com seu amigo Henry Parry
Liddon, passando por Bruxelas, Berlim e Potsdam, Moscou e São Petersburgo,
deixando para trás os passos invisíveis de Alice. Mas o escritor definitivo,
dentro desse registro, é Rudyard Kipling. Nascido em 1865 em Bombaim, toda sua
obra é viagem, sua obra é a Índia, seu mundo é o do homem que reinou na
aventura sem fim da condição humana exposta antes seus vértices mais profundos:
O livro da selva (1894), Kim (1901), seus contos e o famoso poema
“If”, que é a canção de amor e esperança de um autor para todos os seus
leitores, de um pai para seu filho, de um Ulisses a Telêmaco.
Embora também tenhamos essa
tradição de escritores viajantes, ou viajantes escritores de interesse
científico ou antropológico: do explorador naturalista Alexander von Humboldt a
Charles Darwin, com seu famoso A origem das espécies (1859), passando
por David Livingstone e Richard Francis Burton, que viajou e escreveu no
continente africano. Sem esquecer, entre tantos, Diário ártico (1893) de
Josephine Diebitsch Peary, a primeira mulher a fazer uma expedição ao Polo
Norte: descobriu que a Groenlândia não era uma península, como se acreditava
até então, mas uma ilha.
Ou a emocionante e breve vida de
Isabelle Eberhardt, que protagonizou uma incrível jornada, desde sua terra
natal, Genebra, fazendo se passar por um homem para poder se movimentar
livremente pelo norte da África: Marrocos, Argélia, Tunísia. Diários de
viagem (1908) é o testemunho de uma mulher que morreu na cheia de Aïn
Séfra, na Argélia, quando tinha apenas vinte e sete anos.
São todas nuances, abordagens,
circunstâncias. George Orwell em Na pior em Paris e Londres (1933) e em Homenagem
à Catalunha (1938), essa autobiografia que nos leva ao momento em que as
milícias stalinistas executaram os trotskistas do POUM. Patrick Leigh Fermor,
antes de lutar na Segunda Guerra Mundial, viajou pelo continente até
Constantinopla com apenas 18 anos e depois escreveu a respeito. Bruce Chatwin
capturou, Na Patagônia (1977), sua brilhante e variada análise, e
Paul Theroux — A costa do mosquito (1981) — também nos deixou, O
velho expresso da Patagônia (1979), The Happy Isles of Oceania: Paddling
the Pacific (1992) e O safári da estrela negra (2002).
São grandes histórias de viagens
de trem, como Trem fantasma para a estra do Oriente (2008), seguido de O
último trem para a zona verde (2013), que também, de alguma forma, irmanam-se
com o elegíaco, luxuoso e lindamente decadente Mauricio Wiesenthal de Expresso
do Oriente (2020) e com boa parte de seus livros.
John Dos Passos e John Steinbeck
(com o esplêndido Viajando com Charley), mas também Lawrence Durrell,
Henry Miller, Malcolm Lowry, Somerset Maugham, Jack Kerouac, William Golding,
Graham Greene, Evelyn Waugh, Paul e Jane Bowles seguiram esse pulso selvagem de
Ernest Hemingway. E na Espanha em 1998, Julio Camba e Josep Pla, a Alcarria
de Cela, as viagens de González Ruano e o profissionalismo onívoro de Javier
Reverte, nosso grande escritor viajante, de O sonho africano (1999) a Corazón
de Ulises: Grécia, Turquia e Egito (1999).
E Vicente Blasco Ibáñez, que
montou uma colônia socialista na região de Cervantes, na Argentina, onde ainda
é cultivado arroz valenciano. Mas não apenas A volta ao mundo de um
romancista (1924), mas também o espetacular Os quatro cavaleiros do
Apocalipse (1916), um passeio vibrante de La Pampa a Paris, durante a
Grande Guerra.
Viajamos para estar com os
sentidos vivos, contrastar e avançar. Fixamos as imagens em livros porque há viagens
que só podem ser compartilhadas pelos olhos de quem olha. Todos esses homens e
mulheres são generosos homeros, escritores em viagem de romances itinerantes
nos quais redescobrimos as essências que havíamos perdido. Basta abri-los e
ler, para nos descobrirmos no mapa até nos reconhecermos em suas vozes.
Ligações a esta post:
* Este
texto é a tradução livre de “Escritores en marcha y novelas viajeras”,
publicado aqui em El Cultural.
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