Doze tanka de Wakayama Bokusui¹
Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)²
Wakayama Bokusui |
I.
pergunto-me: quantas montanhas e
rios
terei ainda de atravessar
até atingir o lugar
onde a solidão enfim termina?
a viagem recomeça
II.
encontrarei alguma paz de espírito
respirando os ares do oceano
assim pensei
então, desejoso de mar, aqui
cheguei
— mas o que busco está ainda por
descobrir
III.
um solitário pássaro branco
permanece no alto sem se evolar
no imenso azul do céu ou do mar
e não deixo de me perguntar
quão profunda será a sua tristeza
IV.
contra o vento marítimo
pássaros flutuam em linha recta
subitamente
um deles desvia-se
e os restantes seguem-lhe o
destino
V.
as cerejeiras florescem sob a
melancolia
dos pálidos céus do começo de
verão
mas quão terríveis parecem ser
desde que a morte
cerrou os olhos do meu amigo3
VI.
a uma certa distância
trovões rugem como deuses
porém, a chuva não chega aqui
debaixo das nuvens carmesins do
poente
continuo só, aquecendo sake4
VII.
o bosque está tranquilo
nenhum pássaro se faz ouvir
nesta solidão profunda
debaixo duma árvore repouso
escutando o solitário suspiro do
outono
VIII.
cão triste, cada pêlo teu
nesta noite escura e fria
é ao toque dos meus dedos
a palavra
que em silêncio proferes
IX.
um ser misterioso
eternamente por descobrir
— não deixo de pensar nisto
de toda a vez
que me observo
X.
sinto-me desamparado
penso que cada poema
cada canção minha
é um triste rastro deixado por
meus pés
ao longo da praia da vida
XI.
quão desesperante
e terrível é viver
a minha vida sobre a terra!
caminho tacteando na escuridão
que nenhum raio de luz toca
XII.
estou cansado da medicina
apenas espero
e anseio por sake
esquecendo-me de tudo
numa taça cheia desejo morrer
_______
Wakayama Shigeru nasceu no dia 24
de agosto de 1885, na antiga cidade de Togo, hoje parte de Hyuga, situada na
prefeitura de Miyazaki, no extremo sul do Japão — um lugar de extrema beleza
natural ainda nos dias que correm.
Era o filho mais velho dum médico
local, mas cedo demonstrou outros interesses: a poesia, claro está. Depois das
primeiras incursões no género, adoptou o nome por que ficou mais conhecido por
volta dos dezoito anos de idade, uma espécie de homenagem à sua mãe e às quedas
de água que ocorriam num vale perto da sua terra natal: Bokusui, um nome que
incorpora ambos os caracteres japoneses representativos do atrás descrito.
Em 1904, entra para a universidade
Waseda, em Tóquio, iniciando um curso em Letras. Durante esse período, trava
conhecimento e grande amizade com outros futuros poetas de renome,
principalmente Hakushu Kitahara (1885 – 1942). Ambos estudaram sob a orientação
dum conceituado compositor de tanka, Onoe Saishu (1876 – 1957), pelo que
não se estranha as diversas incursões que os então jovens poetas tenham realizado
pelo género, explorações essas muitíssimo bem-sucedidas. Juntamente com outros colegas,
Bokusui publica, nestes tempos académicos, a revista Hokuto (que se
poderá traduzir livremente por “Estrela do Norte”).
Terminado o seu curso, o jovem
poeta lança-se na aventura da publicação, apresentando em 1908 o primeiro
livro: Umi no Koe, “Vozes do Oceano”. No ano seguinte, é contratado por
um jornal local, mas o seu trabalho nesse lugar não durará mais de cinco meses.
Em 1910, nascem para o público duas obras: Hitori Uta e Ru, “Cantando
Só”, e Betsuri, “Partida”. Com estes três trabalhos consegue granjear a
atenção do público e o louvor da crítica da época.
É importante referir que Bokusui é
contemporâneo do grande movimento de reformulação da poesia clássica japonesa.
Foi um enorme sopro dado sobre as cinzas decrépitas dos exercícios poéticos da
época, por muito tempo demasiadamente apegados aos preceitos tradicionais do
género — o que já os tornava bastante impopulares, de tão artificiais que se
apresentavam.
Na época, os ideais niilistas
proliferavam com enorme sucesso pelo Japão. A necessidade de romper
formalidades, e de exprimir o que realmente era pensado e sentido sem qualquer
filtro ou requinte desenhado em nome duma arte oca, acabou por se unir de modo
feliz ao pensamento então dominante, criando uma expressão mais pura e depurada.
Este período de reformulação acabou, assim, sendo mais um fértil terreno para o
cultivo niilista. É neste contexto que surge o haiku como hoje o conhecemos e,
no que para o caso mais importa, o tanka.
Um dos mais destacados nomes dessa
revolução foi Yosano Tekkan (1873 – 1935), tão importante para a nova forma de
tanka que então surgia quanto Shiki (1867 – 1902) o foi para o haiku. Tekkan
criou a revista Myoji, “Estrela Cintilante”, em 1900, um pouco como modo de dar
seguimento ao apelo público que fizera quatro anos antes, num artigo de sua
autoria. Nessas linhas, apelava vivamente aos poetas actuais, e aos que estavam
na iminência de o vir a ser, a favor da suprema necessidade de se injectar uma
enorme dose de originalidade na poesia japonesa então produzida, ela que, por
não conhecer evoluções significativas em décadas, tombava na completa
indiferença do leitor comum e desagradava ao mais experimentado.
Assim, ia Tekkan colectando as
diversas tentativas que, pelas mãos duma juventude sedenta de inovação, surgiam
por todo o território nipónico, as novas formas e temáticas duma poesia que,
como algo de vivo, pulsava para assumir renovados contornos. Ao receber os
efeitos dos novos ventos criativos, o tanka adquiriu uma forma renovada,
libertando-se finalmente da ditadura do esquema, do discurso formal e das
trinta e uma sílabas. Praticamente todos os autores que se destacaram nesse
tempo de renovação foram publicados em tal revista, que desde logo se tornou muito
popular entre os leitores mais jovens, e Bokusui não foi excepção. A sua
associação à Myoji foi, aliás, um dos primeiros motivos pelo qual a sua
poesia se difundiu e adquiriu notoriedade.
No mesmo ano em que publica o seu terceiro
livro de poemas, nasce a revista Sosaku, isto é, “Criação”, que será
dirigida por Bokusui até ao dia da sua morte.
Sendo um grande admirador de Bashô,
seguirá as suas passadas ao realizar diversas viagens, que se alastrarão pelos
anos fora, através do Japão e da Coreia, à época sobre o domínio imperial dos
nipónicos, compondo imensos poemas sobre o que via e sentia. Formava-se assim
um poeta tanka de inclinação naturalista.
Os lugares visitados eram amiúde
descritos, na sua fisionomia e recorte paisagístico, com linha fiel e segura.
Há, inclusive, uma cascata com o nome do poeta em Chichibu, no centro oeste do
Japão, local que visitava frequentemente e sobre o qual escrevia. Porém, a sua
visão nem sempre será limpa, pois tende a tingir-se pelas emoções do próprio, o
que levava a que certos animais ou elementos ostentassem o sentimento que o seu
observador trazia no peito.
Com ecos românticos, um certo
perfume confessional e atravessada por múltiplos sentimentos de solidão,
tristeza e melancolia, a obra de Bokusui reserva espaço à beleza do mundo
natural e à compaixão por todos os seres, especialmente animais vadios,
expostos a maiores dificuldades de sobrevivência (veja-se o tanka VIII desta
selecção, por exemplo). Embora simples e breve, é uma poesia madura e bela, mas
de angústia e pesar, o que lhe confere um aroma algo agridoce. Fica a sensação
do verdadeiro motivo das deambulações do poeta ser a busca de si mesmo, mas
dado o falhanço da demanda, que instiga a sôfrega sede de se entregar aos
caminhos e se perder na sua imensidão, paira uma inquietação triste que só o
seu amado sake parece amenizar. Graças ao seu gosto por tal bebida, transposto
para a poesia, Bokusui também se destingiu por resgatar aos grandes mestres
chineses o tema do álcool, embora já não tanto num sentido de louvor, mas de
fuga à realidade e amenização de dores existenciais profundas.
Em 1920, fixa-se com a família na
cidade de Numazu. Durante esse tempo, em que a saúde começa a fraquejar, edita
ainda mais dois livros de poesia, contribuindo para o total de quinze ao longo
da sua vida (um a título póstumo). Já sabemos que possuía um profundo amor pelo
sake, de tal modo que o seu pobre fígado não aguentaria as intensidades
de tamanha paixão. Aos quarenta e três anos de idade, Bokusui falece, muito
provavelmente vítima de cirrose (algumas fontes apontam para uma infecção no
sistema digestivo, embora aceitem a fragilidade já existente no seu corpo
devido ao consumo abusivo de álcool). Actualmente, o parque cultural de
Miyazaki ostenta uma estátua em sua memória; e, desde 1996, atribui-se anualmente
um prémio com o seu nome aos autores que mais tenham contribuído para o tanka e
sua evolução.
Conta-se uma certa história,
talvez em modo de anedota, já não o sabemos, relacionada com o episódio da sua
morte e causa subsequente. O poeta terá falecido durante uma viagem que
realizava com a sua família; seria verão, o tempo estava quente, e, após o
óbito, alguns dias se passaram até que um médico chegasse ao local onde o
falecido e a família se encontravam. Quando este veio, ao ver o corpo não
conseguiu esconder o espanto: o cadáver encontrava-se num modo tal que aparentava
ainda estar vivo, não parecendo um corpo inerte há dias e exposto ao calor da
estação. Quando descortinou o motivo, ou pelo menos assim o supôs, exclamou: “estava
tão cheio de álcool que o corpo ficou conservado!” Onde terminará a linha da
ficção, começando a da realidade?
Antes da sua morte, o poeta deixou-nos
o seguinte haiku (que talvez venha contradizer a história atrás partilhada):
uma palavra de despedida?
a neve que derrete
não tem odor
Notas
1 Significa, literalmente, “poema
curto” e compõe-se por cinco versos que obedecem ao seguinte esquema, divididos
em duas estrofes: 5 / 7 / 5 // 7 / 7. No fim, o poema terá de perfazer trinta e
uma sílabas.
Nascido no Japão, teve o seu
apogeu entre os séculos VI e VIII. Inicialmente, era a forma poética de eleição
das mulheres cultas da corte japonesa. A partir dela, nasceriam outros estilos
de igual fama, como a Renga ou o próprio Haiku. Posteriormente, entre os
séculos XII e XIV, cada estrofe do poema teria de ser composta por autores
diferentes, sendo que dois seria sempre o número mínimo de poetas necessários
para criar um Tanka. Mais tarde, já em finais do século XIX / inícios do século
XX, a forma altera-se radicalmente e as temáticas por regra retratadas sofrem a
consequência do minimalismo então crescente, o que até se adequou a este estilo
de poema que desde o seu berço se quis breve.
2 Importa referir que o tradutor
japonês da edição consultada achou por bem transformar os tankas originais em
quadras com rima, já em língua inglesa. A dupla seguinte de tradutores, que
constituem a outra fonte sondada, optou pela forma tradicional dos cinco
versos, embora sem a exigência do número de sílabas nem o tom formal que o
tanka exibia, tal como convém nestes exercícios da nova expressão (só era
utilizado caso o seu autor o desejasse, por vezes até misturando os diferentes
discursos num só poema). Em todo o caso, pelos cinco versos serem tão
emblemáticos e um modo de clara distinção do tanka entre as demais formas
poéticas japonesas, tal decisão foi igualmente assumida em todas as versões
portuguesas aqui apresentadas.
As versões aqui apresentadas são a
partir da tradução inglesa de H. H. Honda in The Poetry of Wakayama Bokusui,
The Hokuseido Press, s.d., edição fac-símile de Hassell Street Press; e das traduções para o inglês de
Gregory Dunne e Goro Takano in Comparative Culture, publicação do
Miyazaki International College, vol. 22, 2017.)
3 O amigo a que Bokusui se refere
é Ishikawa Takuboku, também ele um poeta, falecido em 1912, vítima de
tuberculose — quando contava apenas 32 anos de idade. Tal como Bokusui,
compunha poemas tanka. Com o passar dos anos, tornar-se-iam ambos membros de
pleno direito do restrito panteão dos intérpretes mais importantes do género
aquando da sua reformulação — embora Bokusui já em vida tenha usufruído dum
certo prestígio.
4 Bebida alcoólica, de origem
japonesa, feita a partir da fermentação do arroz, após passar por um processo
de remoção dos seus óleos e proteínas naturais. Tradicionalmente, bebe-se à
temperatura de 35º C, embora não de modo exclusivo, já que consoante as
temperaturas em que for consumido o sake adquire diferentes sabores.
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