Cadernos de delicada loucura (Parte 1)
Por Antonio Yelo
1
O detetive de homicídios Somerset,
da polícia de Nova York, entra numa sala. As paredes são ocupadas por estantes
que chegam até o teto. Nelas, milhares de cadernos estão empilhados. Somerset
pega um. Capa sem designativo. No interior, preenchido totalmente de frases
manuscritas, diminutos e rascunhados desenhos e pequenas fotos, aparentemente
recortadas da seção de contatos do jornal. Os desenhos, imagens e texto ocupam
cada centímetro das páginas. Somerset pega outro caderno e o folheia. Igual ao
primeiro, cheio até a borda. Somerset vai até outra prateleira e pega outro
caderno. O mesmo. O detetive olha ao redor. Estão na casa do assassino. Seu
parceiro, o detetive Mills, entra na sala.
Três assassinatos brutais foram
cometidos. Há um fio que une os crimes: são inspirados em três dos sete pecados
capitais. Os detetives verificam se os cadernos não contêm datas ou lugares e
não estão organizados de acordo com nenhum critério. São todos iguais e não
possuem designativos ou nomes identificadores; cada um deles tem
aproximadamente duzentas e cinquenta páginas. Três oficiais uniformizados
entram na sala. Somerset abre outro caderno e lê em voz alta:
“Somos fantoches doentes e
ridículos. Dançamos em um pequeno e asqueroso palco. Nós nos divertimos,
dançando e fodendo. Ninguém cuida do mundo. Não somos nada. Não somos o que se
pretendia.”
A forma desarticulada, a falta de
sentido nas anotações e, sobretudo, a quantidade de cadernos para ler,
impossibilitam encontrar neles qualquer informação útil que ajude a prender o
criminoso e evitar os quatro novos assassinatos que quase certamente ocorrerão
nos dias seguintes.
Essa cena pertence a Seven,
filme dirigido por David Fincher e lançado em 1995. O roteiro é obra de Andrew
Kevin Walker. O papel do serial killer (que se faz chamar “John Doe”; o
nome dado aos cadáveres não identificados nos Estados Unidos) foi interpretado
por Kevin Spacey. Morgan Freeman e Brad Pitt entraram na pele dos detetives
Somerset e Mills.
2
A poeta Sylvia Plath, desde muito
jovem, tinha consciência de que vivia dentro dela uma sexualidade exigente,
sempre presente e capaz de arrastá-la para situações que poderiam escapar de
seu controle. Sabia que era atraente para os homens e conhecia sua necessidade de
tê-los por perto. Ficava claro para ela que havia apenas dois caminhos para sua
vida: o de uma esposa e mãe respeitável ou o de uma mulher entregue e
abandonada às paixões da carne. Em 17 de julho de 1952, aos dezenove anos,
escreveu em seu diário: “Qual das duas coisas…? A dama ou o tigre? Em dez anos
saberemos.”
Pouco antes de se casar, depois de
passar um dia na praia, ela escreve em um de seus cadernos:
“Tal era o calor emitido pela
rocha, um calor tão áspero e confortável, que senti que poderia ser um corpo
humano. Queimando o tecido do meu maiô, um calor imenso irradiava pelo meu
corpo, e meus seios doíam contra a pedra dura e plana. Um vento salgado e úmido
soprou levemente umedecendo meu cabelo. Através do meu cabelo brilhante eu
podia ver o azul cintilante do oceano. O sol penetrava por todos os poros da
minha pele, extinguindo cada fibra queixosa dentro de mim com uma grande paz
dourada e brilhante. Esticando-me sobre a rocha, tensionei meu corpo e depois o
relaxei. Como num altar, senti que o sol me estuprava deliciosamente; me enchia
e me completava com um ardor que vinha do impessoal e colossal deus da
natureza. Quente e perverso era o corpo do meu amante debaixo de mim. E a
sensação de sua carne esculpida era diferente de qualquer outra — não era macia,
nem flexível, nem molhada de suor, mas seca, dura, lisa, limpa e pura.”
Sylvia Plath tentou suicídio pela
primeira vez quando tinha dezenove anos. Desde os onze anos escrevia um diário.
A escritora nascida em Boston passou a maior parte de sua vida lutando contra
uma enfermidade mental. As páginas de seus cadernos refletem suas depressões,
seus problemas conjugais, sua intensa libido e os altos e baixos de seu
trabalho como escritora. Mas também há espaço para seu amor pela culinária e
pela comida. É impressionante que, entre as páginas que descrevem descidas aos
infernos mais profundos da mente ou reflexões de uma grande inteligência sobre
seu trabalho ou sobre o papel da mulher na sociedade, haja outras em que detalham
apenas sobre comida.
“Eu me diverti muito comendo meus
primeiros caracóis, ostras, camarões e provando os vinhos e todo o maravilhoso
mundo neon de ladrões e milionários. (13/12/54)”
“Como um ovo no café da manhã,
depois subo e trabalho, e desço ao meio-dia para fazer uma grande refeição
quente para Susan, Frieda e eu, que comemos sentados na alegre sala de jogos. Em
seguida eu trabalho. Depois de uma hora de descanso, uma xícara de chá com
Susan, e antes que eu perceba, os bebês estão na cama. (25/10/62)”
Em 11 de fevereiro de 1963, Sylvia
Plath deu bom dia aos filhos (de três e um ano); desceu à cozinha, preparou o
café da manhã para as crianças, ligou o gás e enfiou a cabeça no forno. Tinha
trinta anos.
O poeta Ted Hughes foi o
responsável pela primeira edição (1982) dos diários de Sylvia Plath, sua companheira.
Hughes reconheceu que havia eliminado inúmeras entradas e que dos cadernos
escritos entre 1957 e 1959 não havia incluído nada. No prólogo, ele explicou
que havia destruído o último caderno, aquele escrito pouco antes do suicídio de
Plath. Ele fez isso, argumentou, para impedir que seus filhos o lessem e para
sua própria sobrevivência. “Eu precisava esquecer” escreveu ele.
Cinco anos após a morte de Plath,
Assia Wevill, amante de Ted Hughes, tirou a própria vida da mesma forma,
deixando aberta a torneira do gás. Nesta ocasião, seu suicídio causou a morte
de suas filhas. Ela deixou um bilhete: “Não se pode viver com o peso da memória
de Sylvia.”
3
Aos quarenta e oito anos, André
Gide apaixonou-se por Marc Allégret, um rapaz de dezesseis anos. Gide, então,
já era um renomado romancista na França. Ainda era casado com sua prima
Madelaine. O casamento que nunca foi consumado.
O menino era o quarto filho do
pastor protestante que foi nomeado tutor legal de Gide quando seu pai morreu.
Em seu diário, datado de 1º de maio de 1917, anota: “O prazer de corromper é um
dos menos estudados; o mesmo acontece com tudo o que nos apressamos a censurar
antes de tudo.” Em dias sucessivos, ele escreve sobre seu estado de felicidade e
sobre a calma com que desfruta de sua paixão, mas o faz de maneira velada: “Eu
me absterei de falar sobre a única preocupação da minha mente e do meu corpo...”
(19 de maio). Em 6 de agosto, escreve: “Conto com ciúmes as horas que me
separam de Marc”. A partir desse dia ele começou a usar os nomes fictícios de
Fabrice (para ele) e Michel (para Marc) em seus cadernos.
Gide foi criado em uma família
conservadora e passou parte de sua juventude obcecado com a culpa e a responsabilidade.
Aos 22 anos, conheceu Oscar Wilde na casa do romancista e poeta simbolista
Henri de Regnier. Profundamente impressionado com o romancista britânico, ele o
frequentou nas semanas seguintes. Esse encontro o fez repensar as regras de
conduta que lhe haviam sido incutidas durante a infância e relaxar seus
princípios morais. “Wilde se dedica a matar o que resta de minha alma em mim
com o argumento de que para conhecer uma essência é preciso suprimi-la”,
escreve a Paul Valéry.
Gide e Marc viajaram juntos para a
Suíça. Em 7 de agosto escreve: “O medo de ver o adolescente crescer rápido
demais atormentava Fabrice incessantemente e precipitava seus amores. O que ele
mais gostava em Michel era o que ainda conservava de infantil, no tom de voz, na
atitude folgazã, nos mimos, tudo o que reencontraria variadas vezes, louco de
alegria, quando se deitavam juntos à margem do lago.” No final da vida, Gide
escreve a Maria Van Rysselberghe (sua melhor amiga): “Só duas coisas me
interessaram apaixonadamente: os meninos e o cristianismo.”
Como conta Ignacio Echevarría em
seu bem documentado prólogo à edição espanhola dos dois primeiros volumes dos
diários de Gide, um amigo aconselhou o escritor em 1924 a não publicar Corydon.
Nesta obra, ele justificava sua pedofilia usando práticas sexuais na Grécia
antiga como argumento para recomendar as relações amorosas de adolescentes com
adultos. A resposta de Gide ao amigo foi: “Quero calar todos aqueles que me acusam
de ser um mero diletante, quero mostrar a eles o verdadeiro Eu”. O livro foi
publicado e fez muito sucesso.
Esse desejo de sinceridade
presidiu o processo de escrita dos diários de Gide. Em seus romances, obcecado
pela forma e pelo estilo, perfeccionista por essência, o autor acostumara-se a “escrever
devagar”. Essa lenta elaboração de seus textos gerou boa literatura — Gide
conhecia sua qualidade —, mas prejudicou a sinceridade de suas páginas. Para
expressar sua verdade, por mais crua e chocante que fosse, forçou-se a “escrever
rápido” em seus cadernos.
Em 3 de junho de 1893, aos 24
anos, escreveu em seu diário: “Minha eterna pergunta (e é uma obsessão
doentia): posso ser amado?” Ele confessa à sua amada Maria Van Rysselberghe que
se sente um “hipócrita, que sua necessidade de simpatizar com os outros o leva
a adotar as opiniões dos outros e acabar dando uma impressão enganosa de
consenso”. Consciente de sua inevitável vontade de agradar, à medida que Gide
avançava na escrita de seus diários, convenceu-se de que a única sinceridade
possível era aquela que saía de sua pena e era impressa a tinta nas páginas
daqueles cadernos.
No seu romance Os moedeiros
falsos pode ler-se, no diário do seu personagem Eduard (o próprio): “Este
diário é o espelho que anda comigo. Nada do que me acontece adquire existência
real até que eu o veja refletido nele.”
André Gide ganhou o Prêmio Nobel
de Literatura em 1947 e foi o único dos vencedores cuja obra foi proibida pela
Igreja Católica. Morreu quatro anos depois, aos oitenta e um anos, de congestão
pulmonar. Em seu leito de morte, disse: “Temo que minhas frases se tornem
gramaticalmente incorretas. É sempre sobre a luta entre o que é razoável e o
que não é.”
4
No domingo, 13 de junho de 1937, o
jovem Tennessee Williams anota em seu diário:
“Eu gostaria de nadar, mas as
velhinhas não me deixaram sair por causa do meu nariz machucado. Irritado e
entediado. Vou acabar como Rose? Deus me livre! Minha obra teatral vai de mal a
pior.”
Em 19 de novembro de 1938,
Williams vai com sua mãe para ver sua irmã Rose no hospital psiquiátrico onde
ela está confinada. Ele descreve a visita em seu diário e acrescenta no mesmo
registro:
“Vou ao Clube de Poesia amanhã. Não
tenho visto ninguém ultimamente — vida tranquila do tipo sonâmbulo – talvez eu
tenha um indício da doença da minha irmã?!”
Rose Williams foi diagnosticada
com “demência precoce” (como a esquizofrenia era chamada na época) e internada
em uma instituição psiquiátrica onde passou o resto de sua vida. Devido ao seu
mau estado, em 1943 foi submetida a uma lobotomia pré-frontal bilateral. Sua
irmã e seu desequilíbrio emocional inspiraram vários personagens das obras de
Williams, incluindo Blanche Du Bois, de Um bonde chamado desejo.
Durante a maior parte de sua vida
adulta, Williams temeu ter a mesma doença que sua irmã, e usou seus diários
para medir, calibrar, quão perto ou longe sua mente estava do desequilíbrio.
A expressão “blue devils” aparece
com bastante frequência nas anotações do caderno de Tennessee Williams. Essas
duas palavras, popularizadas pelos músicos de blues em suas canções durante a
década de 1930, tornaram-se um sinal codificado de que ele estava deprimido,
triste ou desmoralizado. Era um aviso de que o cachorro preto — como Churchill
o chamava — da depressão poderia estar próximo. O dramaturgo registrou por
escrito ao longo de sua vida a presença dos visitantes endemoninhados e
indesejados: “Um diabinho azul selvagem esteve comigo o dia todo” (31/08/36). “O
diabo azul abrandou. Só resta um beliscão no meu calcanhar” (09/11/43). “Os
diabos azuis me ameaçaram quando chegamos a Barcelona, mas por enquanto eles
se dispersaram” (08/1/54).
Outras vezes, quando a depressão
já estava presente e colonizava sua mente, a análise tentava ser mais completa.
Em 29 de julho de 1951, ele anotou em seu diário:
“Finalmente consegui dormir por
cerca de duas horas. Acho que há alguma causa psicológica — em vez de física —
nessa insônia. Embora eu seja de natureza nervosa, a insônia nunca mostrou essa
forma antes. Embora acho que também pode haver alguma hipertensão. Acho que
partirei de Veneza amanhã, vejo tudo através de uma névoa de doença. Qual é o
caminho para sair disso além daquele que eu não quero tomar? Existe algo mais
triste do que lugares exclusivamente dedicados à busca do prazer como este
grande hotel ao estilo de Miami Beach?”
Naquela mesma manhã (3 da manhã),
ele escreve novamente:
“Tomei meu primeiro Secconal meia
hora atrás e estou bebendo um pouco de uísque. Sinto-me relaxado, mas não estou
com sono. Eu me pergunto se com um parceiro de cama essa estranha aflição iria
embora. E se eu voltasse para minha casa e minha família? Vou tentar usar minha
inteligência para analisar minha vida nesses dias atormentados. Serei razoável
e paciente. Vou me comportar como um adulto e não me deixarei levar por um
desespero inútil, por mais fácil e tentador que seja.”
Em 1969, seu irmão Dakin admitiu
Tennessee Williams no hospital psiquiátrico em Saint Louis, Missouri, por três
meses para receber tratamento devido o abuso de álcool e outras drogas.
Sua vigilância exaustiva sobre a
doença mental (sua inimiga íntima) durou até o fim de seus dias. Nas últimas
páginas de suas memórias, Williams escreve:
“Acho que chegou a hora de
refletir se sou ou não um lunático, ou se posso ser considerado uma pessoa
relativamente sã. (…) Sanidade e insanidade são, na realidade, termos
jurídicos. Não estou ciente de que o agora lendário tenente Calley, um símbolo
da brutalidade sem coração que tingiu aquela vala na vila de My Lai (Vietnã) de
vermelho com o sangue de aldeões indefesos, de avós a bebês, foi declarado
legalmente insano. (...) Fiz um pacto comigo mesmo para continuar escrevendo,
pois não tenho outra opção, está tão enraizado em mim como forma de existência
e luta, mas provavelmente não entrarei em mais produções teatrais.”
Williams tinha então sessenta anos
(morreu doze anos depois) e já era um dramaturgo de renome mundial. Suas obras,
incluindo Um bonde chamado desejo, À margem da vida e Gata em
telhado de zinco quente, foram transformadas em filmes e interpretadas por
atores e atrizes como Elisabeth Taylor, Paul Newman e Marlon Brando, o que
aumentou sua fama.
* Este texto é a tradução livre de “Cuadernos de delicada locura (1)”, publicado inicialmente aqui, em Jot Down.
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