As divagações existenciais de um português pós-moderno. Análise crítica da obra “As intermitências da morte”, de José Saramago

Por Lucas Pinheiro

José Saramago. Foto: Leonardo Cendamo.


 
Seria simples vir aqui e comentar sobre as características técnicas e estilísticas de Saramago, mas você, leitor instruído, com certeza já sabe, e entende, que ele foi um autor de apostas ousadas em sua literatura. Quem diabos deixaria toda uma população cega em um de seus romances? Apenas um autor demiurgo de veemente agilidade, é claro. Ora, primeiro ganhador português do Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, de modo irreverente, neste livro que resenho, propõe reflexões sobre a morte e outras instâncias da vida humana, sendo esta a protagonista absoluta da narrativa, enquanto constrói críticas à sociedade, revelando sua hipocrisia, sem intermitências, à luz da morte — desafiando a própria mortalidade enquanto subverte, ironicamente, o tema desgastado da imortalidade.
 
Eis que, no primeiro dia do ano, em um país sem nome, a morte resolve tirar férias e, inicialmente, isso é motivo de festa! Em pouco tempo, entretanto, sua ausência desencadeia uma calamidade que, em condições romanescas, conduz o leitor à real imprescindibilidade da morte para a preservação da vida. Mesclando causos absurdos, como as pessoas envelhecendo e se deteriorando, até os devotos ao clero, que, preocupando-se com o fato de a vida após a morte se tornar uma questão sem sentido, enxergam, portanto, que sua doutrina também o é. Saramago perfaz uma dupla realidade encenada por milhões de pessoas que, felizes pelo desaparecimento da morte, percebem-se paradoxalmente aliviadas quando ela volta a ter sua presença, pois, se não começarem a morrer de novo, não terão futuro.
 
O autor enseja um prisma panorâmico dos acontecimentos, das instituições religiosas, do Estado e do capitalismo, cada um atuando, é claro, em defesa de seus interesses; entretanto, chega a ser cômico que, como uma forma de compensação, um setor econômico clandestino surja, possibilitando que pessoas sejam levadas para além da fronteira, onde ainda há morte, restaurando em alguma medida a velha ordem natural da comédia humana.
 
Quando sua trama começa a perder força, ainda nem mesmo na metade da obra, Saramago resolve agitar as coisas com uma misteriosa carta, de autoria da própria morte, anunciando que seu pequeno experimento, e seus consequentes resultados deploráveis, terminará à meia-noite.
 
A personificação da morte se torna, assim, a primeira personagem explorada, de fato, na narrativa. Interessante que, sendo uma morte com “m” minúsculo, esta não é, ou ao menos não passa a ideia de ser, uma representação de certa nobreza, nem de uma figura ilustre, de realidade invisível, cega, e implacável. Ela é, na verdade, uma morte desajeitada e sozinha, que reconhece o seu erro aos interlocutores como se fosse parte dele, senão parte dos próprios interlocutores — uma alguém, portanto. Uma alguém de esqueleto cansado embrulhado em trapos de lençol, habitando um quarto frio em que a mobília se restringe a uma cadeira e uma mesa, sua foice enferrujada e algumas dezenas de papéis avulsos. No entanto, demonstrando consciência de si, e para compensar sua crueldade furtiva, ela começa a enviar cartas de aviso, com uma semana de antecedência, para que seus remetentes comecem a se preparar para sua iminente chegada. Porém, a morte, mais uma vez, comete um erro que desencadeia uma bagunça sem igual, incitando o pânico à luz de sua tentativa de originalidade, enquanto a população desperdiça sua semana restante como sempre fizeram, ou, então, buscam alívio na libertinagem. Todavia, as coisas começam a ficar realmente interessantes quando uma carta passa a ser devolvida à remetente continuamente, e ela percebe, portanto, que um certo violoncelista, de algum modo, a enganou; despistando-a.




Esta situação, à vista do narrador, é um escândalo sem precedentes: alguém que deveria estar morto há dois dias ainda estava vivo! E isso não era o pior. O tal violoncelista, que estava destinado, desde o seu nascimento, a morrer após quarenta e nove verões, acabara de completar cinquenta anos, desrespeitando, assim, a morte como espectadora de seu destino, que já aplaudia em pé, por ter à sua frente as cortinas da tragédia humana se fechando no palco do tempo. Sacada genial, admito.
 
O violoncelista é, também, um solitário. Vive sozinho com seu cachorro e sua música, alheio às atenções e, principalmente, às intenções da morte. A partir disso, decerto constrangida, a morte — e Saramago, para além do caos que é o seu estilo —, brinca com o leitor, desafiando-o. Determinada a atingir o objetivo que é intrínseco a sua natureza, a morte, então, assume a forma de uma mulher, com o prévio intuito de conseguir chegar perto o suficiente do violoncelista e, assim, reivindicá-lo.
 
Os dois iniciam, por consequência, um flerte mesclado com mau presságio. E aqui reservo espaço para dizer que Saramago, quando constrói seus narradores, tende a assumir o papel de manipulador de marionetes, mas não de causa e consequência. Muitas vezes abrindo as cortinas do palco para os espectadores — aqui, leitores — refletirem sobre os elementos que se encontram às ocultas, demasiado parecido com Nabokov que, também, traz sofisticadas ideias lúdicas que deixam matéria escura suficiente para que mentes curiosas possam devanear e mergulhar nelas depois. Segredos ainda debaixo de sombras escondidas nas entrelinhas e, apesar da esperteza e profundidade dos dois autores em peças de seus quebra-cabeças narrativos já trazidas à tona, não se pode deixar de pensar que algo está faltando, visto que alguns elementos recorrentes em suas obras parecem implorar por atenção e, por vezes, acabam ignorados ou emudecidos. Neste romance do português, espelhando o que decerto faria o russo, o distanciamento torna difícil adivinhar para onde o desejo crescente do violoncelista o levará: atração, obsessão ou destruição. E é a partir desse trabalho com a perspectiva, com a desordem própria de estar no mundo, com o desespero, que Saramago se torna também possível de ser visto sob um aspecto demasiado filosófico e, em específico, existencialista.
 
A morte tem o poder de ceifar o violoncelista, e ainda assim ela vacila. Claro, o casal acaba cometendo o maior erro da vida humana: apaixonam-se e, por meio de seus erros e de sua vulnerabilidade, a morte encontra um caminho de fuga de sua própria natureza, enquanto o violoncelista, em meio à rotina lamuriante, encontra reservas do que lhe torna humano: os sentimentos.
 
A obra de Saramago parte de uma incrível situação fisicamente impossível e, em seguida, com lógica abstrata e humor ímpar, passa a desenvolver em detalhes o que se segue. Isso torna a leitura desafiadora, permitindo o leitor a prestar-se a acompanhar a lógica, concedendo a necessária descrença, enquanto o deleita com a magnificência e a ironia de sua escrita. Mas é aí que o brilhantismo da escrita do português cai em problemas, pois acaba tornando-se histórias intimamente relacionadas ao “eu”, de modo que o pós-moderno bate à porta mas não chega a entrar, levando sempre para um desfecho extraordinariamente insatisfatório, levantando a questão do que é, ou o que acaba se tornando, a escrita de Saramago, visto que uma vez que nos deparamos com alguma situação, parágrafo por parágrafo, ideia por ideia, o abuso da linguagem é certeiro e magnífico, como Nabokov também o faz. O português, porém, vacila quando o todo de sua narrativa é explorado, deixando de resolver seus próprios desafios — neste caso, ao tangenciar o perigoso limite entre vida e morte, se é que tal limite existe de fato — de maneira verossímil, ou, neste caso, de qualquer maneira. E isso é um ciclo sem fim do autor português, decerto genial, mas que, por exemplo, ao tratar da morte, não consegue senão uma matiz de tudo e nada.


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As intermitências da morte, José Saramago
Companhia das Letras, 208p.


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