A defesa Lujin, de Vladimir Nabokov
Por Sérgio Linard
Vladimir Nabokov. Foto: Horst Tappe |
Escrito na língua materna do autor,
A defesa Lujin é o terceiro romance do ainda jovem Vladimir Nabokov e persegue
a história de um exímio jogador de xadrez cujo nome é aquele que dá título ao
livro. São catorze capítulos que se ocupam da construção de uma simbologia que
está diretamente relacionada aos movimentos e às peças daquele jogo milenar,
com melhor exploração naquilo que aqui chamarei de segundo momento do romance¹.
O infante Lujin demonstra nítidos
traços melancólicos. Possui questionável beleza, sofre bullying por ser
filho de um escritor mediano — ambos têm o mesmo nome — e não tem bom
relacionamento com os colegas da escola. A mãe demonstra um certo posicionamento
austero em relação ao filho e o pai força uma aproximação constante, não
entendida como saudável por parte daquele adolescente. A tia de Lujin é a única
por quem ele demonstra algum afeto, mas que se justifica somente por ter sido
por meio dela o seu primeiro contato com o xadrez.
O primeiro momento do romance,
portanto, constrói esta fase da vida do protagonista, introduzindo algumas
imagens que contrastam a misantropia daquela criança com os ambientes em que ela
se encontra:
“O papel de parede lá era branco,
com uma faixa azul no alto onde se sucediam gansos cinzentos e filhotinhos de
cachorro cor de mel. Um ganso avançava num cachorrinho trinta e oito vezes em
volta de todo o quarto. Sobre uma étagère havia um globo e um esquilo
empalhado, comprado num domingo de Ramos. Uma locomotiva verde de dar corda
espreitava por baixo dos babados de uma poltrona. Era um quarto claro e bonito.
Papel de parede alegre, objetos alegres.”²
Esse contraste entre uma criança
ensimesmada que sofre bullying na escola e que tem vergonha de seu nome versus
uma família aparentemente equilibrada, sem problemas postos à vista — até certo
ponto, porém —, é o que faz com que se constate, desde o início, uma confusão
interna e externa da personagem, sendo aquela mais presente na segunda parte do
texto. A leitura do romance na sua integralidade permite perceber, então, que a
separação de pessoas por motivos externos pode ser uma atitude com efeitos
jamais superados.
A guerra, primeiro dos tabuleiros,
depois dos homens, motiva Lujin a seguir uma vida distante de seu pai, após,
especialmente, a morte da mãe daquele enxadrista. Inicialmente jogando
escondido de seus pais, foi por meio do xadrez que o protagonista desse romance
alcançou a notoriedade e conseguiu atingir outros ares. Visto como um jovem
prodígio por ser autodidata no jogo e rapidamente alcançar o título de Grande
Mestre, Lujin tem sua foto estampada em jornais de grande circulação e, neste
ponto, a história entra no que acima denominei de segunda parte:
“E foi assim que tudo começou.
Entre a série de noites na varanda e o dia em que a fotografia de Lujin
apareceu numa revista de São Petersburgo, foi como se nada tivesse acontecido,
nem a chuva fina de outono caindo sobre os ásteres da casa de campo, nem a
viagem de regresso à cidade, nem a volta à escola.”
Até aqui, porém, tem-se quatro
capítulos que pouco contribuem para o andamento do texto. Um pequeno mistério
em torno do rompimento de relação por parte de Lujin pai (ele é assim
denominado no livro) com a tia do garoto e o sumiço daquela mulher do cotidiano
daquela família. Mas nada de grande importância para o texto, tanto que acaba
sendo esquecido e não tem influência no que se lerá nas páginas seguintes. Há,
portanto, uma excessiva exploração de ambientações e de problemáticas com Lujin
filho que não fariam diferença alguma se estivessem ou não dentro da narrativa.
Salvaguarde-se, ainda, que toda a
melancolia do protagonista pode até ter uma certa base na infância, mas os
acontecimentos primeiros são tão esquecíveis que, ao adentrarmos no universo
deste homem já adulto, vê-se uma repetição de comportamentos e de algumas
entediantes imagens comuns. A leitura, até chegar na fase adulta do protagonista,
exige um certo esforço por parte do leitor que será compensado somente nos dois
últimos capítulos da obra.
Pondero, porém, que os problemas
apontados não são porque espero que qualquer obra de arte siga um percurso
muito claro. Entendo que, na literatura mais especificamente, espera-se que a
disposição dos elementos e dos conteúdos tenham um porquê, seja no campo
social, no campo simbólico ou até mesmo no metafórico. O leitor deve lembrar,
no caso do romance em tela, que a simbologia das peças de xadrez e dos
movimentos do jogo são uma vertente — quiçá o norte — do texto; tudo bem. No
entanto, até mesmo essa simbologia deve ter limites para evitar-se uma
repetição cansativa ou pouco frutífera para a obra, posto que se torna circular
sem um porquê, apontando mais para um insucesso do que para uma boa realização,
algo que o próprio Vladimir Nabokov ressaltaria em suas Lições de literatura
I.³ O livro poderia ser bem realizado se tivesse um nítido projeto de
ser uma grande ausência de porquês, o que não é o caso. Sendo assim, a questão, como já disse em
outros textos aqui nesta casa, não é sobre o que está sendo dito; é sobre o
como está sendo dito. Quem conhece o Nabokov de Lolita, por exemplo, sabe que o
autor tem enorme maestria no domínio da linguagem e do discurso. Mas nem sempre
se consegue escrever um Lolita.
A ideia da defesa Lujin,
que dá título ao romance, é um apontamento para como aquele enxadrista enxerga
o mundo. Ele tem, por exemplo, algumas alucinações em que se vê e/ou se
metamorfoseia em uma peça do jogo, sempre se enquadrando em uma casa negra ou
branca. Inicialmente, isso o faz ampliar os pensamentos sobre os movimentos do
tabuleiro; com o desenvolvimento da narrativa e o aumento da tensão diante de
um torneio, as “ilusões” vão ficando mais constantes e intensas até chegarem ao
ponto de gerar uma estafa em Lujin.
Rememora-se, então, que a vida deste
jogador de xadrez foi marcada por cortes diversos e invariavelmente abruptos. A
tia que simplesmente tem relações rompidas com os familiares, a mãe que morre,
o pai que vai para a guerra, o agente que o deixa... No entanto, é o rompimento
de uma partida dentro de um campeonato que revelará e traçará o destino de
Lujin. É quando as peças param de fazer sentido, e os movimentos não podem mais
ser calculados sem antes deixar graves traumas no jogador, que este
protagonista interrompe a partida de sua vida.
Aqui tem-se uma simbologia mais
pertinente. Interrompe-se a partida de uma vida, para ser retomada e, em seguida,
abandonada. Enquanto isso, Lujin, tal qual um Rei no jogo de xadrez, é
defendido, protegido, cercado e assistido pela esposa, sua Dama, uma metáfora
bastante esperada e constantemente enfatizada. Nabokov explora, por essa via,
como a principal peça do tabuleiro sofre ameaças, mas é incapaz de defender-se;
melancólico porque detém o poder de acabar com o jogo, mas quase nada
pode fazer para garantir sua própria existência. É um poder-sem-poder. É somente
um potencial, baseado em frustrações, resultando em libido que não se consome,
em incontornável melancolia, da criança com seus cortes traumáticos, do adulto
que é-sem-ser. Lujin está sempre na iminência de ser capturado e morrer
(xeque-mate); é aquele que tem muito conhecimento, mas pouco ou quase nenhum
poder efetivo para colocar em atividade aquele mesmo conhecimento. Relativa
esterilidade de poder, consequente frustração.
Os dois últimos capítulos chegam
ao ápice sintático e semântico do romance. O final ocupa espaço comum para o
que vinha sendo narrado e dispensa comentários porque chega ao local mais provável
possível para este tipo de personagem. É a construção que chama atenção. Todo
potencial que os capítulos anteriores tinham é resgatado nesses momentos finais,
com uma linguagem que se mostra breve e confusa, materializando muito bem os
dramas internos de Lujin:
“Lujin foi fotografado para o
passaporte, e o fotógrafo, pegando-o pelo queixo, virou sua cabeça ligeiramente
para o lado e pediu que abrisse bem a boca e aplicou uma broca em seu dente com
um zumbido tenso. O zumbido cessou, o dentista procurou algo numa estante de
vidro, achou, carimbou o passaporte e fez anotações com movimentos velocíssimos
da caneta. ‘Aqui está’, disse, passando-lhe um papel com o desenho de duas
fileiras de dentes, dois dos quais assinalados com uma cruzinha feita à tinta.
Nada havia de suspeito em todos esses atos [...]”
A mutação de dentista em
fotógrafo, de passaporte em prontuário odontológico é a mesma alternância em
que o protagonista se enxerga: ora como peão que enfrenta cavalos, ora como rei
que espera pela defesa da dama. O que ele precisa é tecer, portanto, A
defesa Lujin, para alcançar proteção contra todos que o “atacam”. No
insucesso desta empreitada, abandonar a partida, nos tabuleiros e na vida, foi
a melhor solução que encontrou. Um jovem prodígio esmagado por sua genialidade,
o que é uma temática até interessante, mas que se faz somente razoável porque
repetitiva com pouquíssimas motivações internas ou externas para tais escolhas.
Infelizmente, o romance tem apenas
boa execução em alguns capítulos ao passo que possui muitos momentos ruins, porque
passa boa parte da narrativa em óbvios caminhos, com óbvias simbologias
exploradas com grande ênfase, como que querendo se fazer notar a qualquer
custo. Tem-se, porém, uma razoabilidade, a partir do segundo momento, posto que
nele aprofundam-se algumas interpretações sobre uma vida de rompimentos e de
possibilidades que não passam disso: potencial. A confusão psicológica que
chega até a superfície do texto é bem realizada e é este o bônus que o leitor
recebe por ter chegado até ali. De “mãos
abanando” não saímos.
Não é, contudo, a melhor realização
de Nabokov; no entanto, sabemos que erros são mais comuns do que acertos. Não
ganharemos todas as partidas.
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