Uma gracejante obra-prima que expandiu as possibilidades do romance
Por Parul Sehgal
Seria possível que o romance mais
moderno, mais surpreendentemente vanguardista que apareceu esse ano tenha sido
originalmente publicado em 1881?*
Este mês marca a chegada de duas
novas traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra-prima do
romancista brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis, uma história
metaficcional e metafísica narrada por um homem que morre de pneumonia. Muito
sinistro? Esqueci de mencionar que ele é carregado para o além no dorso de um
volúvel e enorme hipopótamo.
Se imaginarmos o progresso
histórico do romance como a evolução do homem — do vergado primata ao ereto
homo sapiens — o livro de Machado representa o momento em que o romance
aprendeu a dançar. O livro lança mão do gosto onívoro do seu criador: tragédia
grega, Shakespeare e Schopenhauer, fermentados pela tradição picaresca de
Cervantes e Laurence Sterne. Sua experimentação formal e jocosidade são
consideradas precursoras dos romances de Nabokov, Calvino e dos pós-modernistas
americanos.
A história acompanha o inepto e
inigualavelmente preguiçoso fidalgo Brás Cubas enquanto ele reflete de
além-túmulo sobre sua vida. E que registro de fracassos! Ele jamais se casou,
nunca gerou filhos. Suas ambições de carreira foram temerárias e frustradas. Mesmo
suas amantes só lhe inspiraram morna paixão e vaga piedade. Ele é
irremissivelmente pretencioso, frívolo — e uma companhia soberba. Não lemos
pelo enredo, no sentido tradicional, mas para ficarmos mais perto de Brás
Cubas, de sua candura desarmante e seu autodesprezo profundamente merecido, e
pelas perguntas que nos incita: o que é a vida, se definida para além de
incidentes e conquistas? O que é um romance?
“Amar este livro”, escreveu uma
vez Susan Sontag, “é tornar-se um pouco menos provinciano sobre literatura,
sobre as possibilidades da literatura.”
Machado nasceu na pobreza em 1839,
o neto mestiço de escravos libertos. Feroz autodidata, começou a publicar
poesia quando adolescente. Pôs-se a escrever crítica teatral, colunas
jornalísticas, libretos¹ e contos. Quando morreu em 1908, tido como o maior
escritor brasileiro, Machado foi pranteado em todo o país.
A despeito de todos os seus
defensores peso-pesado no mundo anglófono (incluindo Sontag, Philip Roth, John
Updike), a posição de Machado tem sido vacilante. Diz-se que cada geração
redescobre um novo Machado. Essas duas novas traduções trazem outra oportunidade
para consagrar o talento e traquinice singulares deste escritor, cujos romances
tardios são insurreições contra o próprio romance, contra sua tendência ao
realismo banal e ao zelo piedoso/ devoção zelosa.
Machado tende a atacar de
esguelha. Suas armas favoritas são ironia e charme — embora ele não tenha
vergonha de alfinetar os leitores, sobretudo os críticos, por seu gosto
limitado e predileção por interpretações fáceis. (Devidamente anotado.) Ele é
um escritor obcecado pelas licenças concedidas pela ficção. Por que não narrar
um capítulo unicamente como um diálogo despido de tudo exceto pontuação — desde
que se possa fazê-lo bem? Por que não dispor uma seção em elipses ou pular o
clímax de uma vez? Leia Machado e você verá que muito da ficção contemporânea
pode subitamente se mostrar penosamente amarrada e conservadora.
As duas novas traduções possuem
suas diferenças, mas são notavelmente complementares. A edição de Flora Thomson-DeVeaux é uma dádiva para os estudiosos. Seu ensaio introdutório e
notas oferecem um valioso guia para a obra e o mundo de Machado — e um
importante corretivo. Machado tem sido descrito como reticente quanto à raça.
Na verdade, como revela Thomson-DeVeaux, sua ficção abunda em referências ao
tráfico de escravos. Leitores modernos, especialmente não-brasileiros, simplesmente
não sabiam para onde olhar. Neste romance, essas referências estão plantadas na
geografia. Veja por exemplo a cena em que Brás Cubas menciona sua passagem pelo
bairro do Valongo no Rio de Janeiro. Thomson-DeVeaux observa que os
contemporâneos de Machado reconheceriam o nome de imediato como o antigo
mercado de escravos local — outrora o maior das Américas. Este é o pano de
fundo das investigações ociosamente filosóficas e do narcisismo do nosso
aristocrata; eis a sutileza da sondagem psicológica de Machado.
Margaret Jull Costa e Robin
Patterson, que traduziram a monumental edição das Collected Stories
de Machado, oferecem pouco contexto histórico, somente notas esparsas. Seu livro não tem adornos, quase sempre para melhor — no que se refere ao
leitor comum. Nos deparamos com o romance não como uma relíquia, incrustada em
renome e análise, muito reverenciada e muito manipulada, mas sim em todo o seu
frescor e truculenta recusa dos tropos ficcionais.
Jull Costa e Paterson também
oferecem a melhor tradução. A linguagem é afiada e específica, fluida, embora
carregada de emoção, enquanto a versão de Thomson-DeVeaux pode soar mais mofada
e obscura.
Aqui está a evocação da infância
de Brás Cubas na tradução de Thomson-DeVeaux:
[No original: “O que importa é a
expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada — vulgaridade de
caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade,
domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flor.”]²
“What matters is a general view of the domestic sphere, which is hereby
set out — vulgar characters, a love of hubbub and ostentatious appearances, a
weakness of will, the unchallenged reign of whims and fancies, and all the
rest. From that earth and that manure was this flower born.”
A versão de Jull Costa e
Patterson: “What matters is the general tone of my home life, and, as I have
said, this consisted in a basic vulgarity of character, a love of glittering
appearances, noise and disorder, a general weakness of will, the triumph of the
capricious and so forth. It was from that soil and from that dung that this
flower was born.”
Com que força o narrador habita a
segunda série de frases. Ali temos a impertinência imediata — “as I have said”
[“e essa aí fica indicada”], ele nos lembra, e podemos ouvir o beliscão em sua
voz (compare com a estranheza e o juridiquês do “hereby set out” de Thomson-DeVeaux).
Ali temos a atmosfera por ele experimentada como um assalto a seus sentidos e
pessoa; dá para sentir a aspereza das “glittering appearances” [“aparências
rutilantes”], o agudo “noise and disorder” [“arruído”], o opressivo “tone”
[“expressão geral”] do lar. Todos esses elementos se mostram colapsados e
amortecidos no impessoal “hubbub” [“burburinho”3] da “domestic
sphere” [“meio doméstico”] de Thomson-DeVeaux. Há, por fim, a franqueza da
última linha, o “soil” [“terra”] e “dung” [“estrume”] dos quais brota Brás
Cubas (em oposição aos mais amenos “earth” e “manure”4), que recende
seu medo de se ver contaminado pelo meio familiar, enquanto a súbita crueza de
seu fraseado acaba por relevar quão profundas são suas raízes.
Não que ele aprenda alguma coisa. Este
é um livro de recusas — a recusa do herói em se comprometer com qualquer coisa
ou qualquer pessoa, sua recusa em satisfazer as expectativas convencionais da
narração, tudo ancorado em sua recusa subjacente de se enxergar com clareza,
mesmo quando nos apresenta sua vida para que a inspecionemos.
Cegueira voluntária é um tema na
obra de Machado (o marido facilmente corneado é um personagem recorrente). No
caso de Brás Cubas, contudo, a cegueira jamais é apresentada como tolice ou um
tipo de inocência, mas como um método cruel específico de sua casta, a elite
branca do Rio de Janeiro. Em uma cena de arrepiar, ele avista um homem que
havia sido seu escravo, e por ele abusado, a vergalhar outro homem negro na
praça. “Agora é que ele se desbancava”, maravilha-se Brás Cubas. “Comprou um
escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera.
Vejam as sutilezas do maroto!”5
Sigo voltando a esta cena em minha
mente como um cubo mágico, indagando sobre a atitude do autor para com seu
personagem. Machado arma a cena com leveza. Ele não se demora, e permanece
visivelmente afeiçoado a Brás Cubas. Mas sinto Machado indagar, também,
enquanto espreita pelos olhos de Brás Cubas. Ele não criou este homem para
condená-lo ou corrigi-lo, mas para habitar sua consciência, e ele o faz tão
completamente que vemos os mecanismos da barbárie ordinária, a condescendência
e a autoabsolvição reflexiva.
Para um escritor com infindáveis
cartas na manga, sua realização fundamental é, no final das contas, mais
humilde e infinitamente mais deslumbrante do que qualquer efeito especial. Não
se trata de explorar os potenciais do romance, mas de ver as pessoas — pura e
impiedosamente — exatamente como são.
Notas da tradução
* Este texto foi publicado em 16
de junho de 2020, portanto o presente referido aqui deve considerar este
contexto.
Notas do texto
1 Sobre os libretos e as traduções
teatrais de Machado, ver o excelente texto de João Roberto Faria.
2 Trata-se do final do capítulo
11, “‘O menino é pai do homem’”.
3 Aqui Thomson-DeVeaux desdobra a
frase “amor das aparências rutilantes” em dois elementos, “love of hubbub and
ostentatious appearances”. Uma possível tradução para “hubbub” seria
“burburinho”.
4 “earth” e “manure” seriam
equivalentes possíveis para “terra” e “estrume”; contudo, quando comparados com
“soil” e “dung”, os termos de fato soam menos específicos e metaforicamente
“vincados na terra”.
5 Trata-se do capítulo 68, “O
Vergalho”. No original, a autora não indica a tradução que está citando. No
entanto, dada sua preferência pela de Jull Costa e Patterson, é provável que
seja desta: “‘He was turning the tables,’ Brás Cubas marvels. ‘He had bought a
slave and was paying him, with hefty interest, for all that he had received
from me. See what a clever rascal he was!’”
Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “A Playful Masterpiece That Expanded The Novel’s Possibilities”,
publicado aqui no New York Times.
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