Sobre o que é literatura

Por Lucas Pinheiro

Imagem: Cristina Coral.


 
O ponto de partida para compreendermos o que é literatura é reconhecer que buscar sua essência é complicado e pode estar fadada ao fracasso a tentativa de definição. É necessário atentarmos ao caráter funcionalista da literatura e não ao ontológico. As tentativas de definição de literatura pelos formalistas russos ou mesmo Terry Eagleton, por exemplo, foram construídas a partir de diferentes momentos históricos e sociais.
 
Tomemos Terry Eagleton. Ele parte do princípio de que a literatura remete a um conjunto de textos socialmente valorizados, portanto, textos julgados como literatura só podem ser compreendidos dessa forma a partir de uma perspectiva funcionalista, o que anula a busca ontológica, já que é preciso levar em consideração aspectos como o contexto social e histórico que estamos inseridos. Esclarecido que não há um conceito ontológico e limitador do que seria a literatura, o nosso objetivo a partir de agora é procurar entender essa perspectiva funcionalista de sua definição.
 
A partir desse pressuposto, somos capazes de perceber que os textos literários mudam de constituição ao passar do tempo, isto é, em determinada época podem ser considerados literários por conta do contexto histórico e social de seus leitores, e ao passar do tempo e do contexto social esses textos podem deixar de ser literários. O que também pode acontecer é o caso de textos que não foram considerados literários no seu tempo passarem a ser literários depois.
 
Podemos usar como exemplo o caso de Shakespeare. Durante o século XVII ele foi considerado um autor de obras que não seguiam a constituição do que era “boa arte” e não merecia ser considerado um mestre, e, portanto, deveríamos deixá-lo de lado. Porém, mais tarde, onde hoje é a Alemanha, no século XVIII, Shakespeare é redescoberto e passa ao lugar do gênio, primeiro, e depois, o que merece ser considerado um mestre a ser seguido, o que se amplia nos séculos seguintes.
 
Sabendo disso, é notável que a recepção que os autores recebem divergem ao passar do tempo, portanto, o caráter literário e não literário varia ao longo do tempo, mas qual o motivo, ou os motivos, que tornam isso possível?
 
Partindo disso, e definindo a literatura com essa perspectiva “antes funcional do que antológica”, como dito por Eagleton, percebemos que o conceito de literatura possui variação conforme seu contexto histórico e social, e isso também torna notável a instabilidade que reside na constituição do literário. Seria, então, impossível definir a literatura de forma objetiva?
 
A partir dessas questões precisamos pontuar que essas variações não são arbitrárias. Para entendermos a lógica dessas variações precisamos inicialmente reconhecermos que elas têm como base os juízos de valor. Textos são categorizados como literários em determinadas épocas, em determinadas sociedades, a partir dos juízos de valor predominantes. E esses estão inseridos no estatuto das “belles lettres” —  termo francês que designa os textos bem escritos, que são considerados literários.
 
Podemos notar, por exemplo, que o considerado autor de textos categorizados “belles lettres” do século XVII era aquele que imitava os clássicos. O belo era baseado na capacidade de imitar bem os mestres ao ponto de, nesse processo, considerando-se a impossibilidade de originalidade da cópia, se inserir o elemento de diferenciação, certa garantia de permanência da nova obra ao lado das grandes obras.Indo contra essa prática, a partir do século XVIII, se pressupõe o ideal de originalidade. É quando o belo se revela, por oposição ao modelo vigente da imitação, como a obra que não imita nenhuma outra e é extremamente única.
 
Portanto, as sociedades categorizam o que é literatura de acordo com os juízos de valor vigentes naquele período histórico e social que determina o belo para aquelas pessoas. Esses juízos de valor muitas vezes são pautados em percepções criadas a partir de um contrato social inconsciente de interesses. Em Teoria da literatura: uma introdução, Terry Eagleton demonstra como essas percepções são geradas a partir de interesses que, mesmo não tendo consciência, são repletas de juízos de valor, juízos esses que são criados a partir de ideologias.
 
“A estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações factuais, é parte do que entendemos por ‘ideologia’. Por ‘ideologia’ quero dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. Segue-se, dessa grosseira definição, que nem todos os nossos juízos e categorias subjacentes podem ser proveitosamente considerados ideológicos. […] Mas, embora essa maneira de ver possa se relacionar de modo significativo com a estrutura de poder de nossa sociedade, isso necessariamente não ocorre sempre e em toda a parte. Não entendo por “ideologia” apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social”. (2006, p. 22–23).
 
A razão dos juízos de valor divergirem ao longo do tempo está ligada ao fato de que eles estão conectados aos interesses e crenças de determinada sociedade e seu contexto histórico, gerando assim a perpetuação pelo poder social.
 
Exemplo disso, no Brasil, é Machado de Assis. Se agora, o escritor é considerado um mestre e gênio da literatura deste país, nem sempre foi assim, apesar do amplo reconhecimento em vida. Mas, o Machado de Assis como nos é apresentado na escola, o genial, o afrontoso e o crítico perspicaz de nossa sociedade, só se estabelece partir da década de 1970.
 
Esse período é marcado no Brasil pelo auge da ditadura militar, o terreno propício ao nacionalismo e à forja dos heróis nacionais, quando se gesta boa parte do lugar de gênio a Machado de Assis. Não é como se o escritor não fosse tudo que o faz gênio antes da década de 1970, mas é a partir dos interesses e crenças dessa época que viram na sua obra os valores que o colocam entre os grandes. Portanto, notamos que o valor dado ao Machado de Assis se estabelece a partir do contexto histórico e social e nos interesses e crenças da sociedade de uma época.

A partir disso, torna-se claro que ao tentar definir o que é literatura, ou quando vemos um texto categorizado como literário, fica evidente a ligação que essa definição tem com as crenças unidas aos juízos de valor que estão inseridos e que são praticados dentro de uma sociedade. Desse modo, podemos afirmar que ao apontar o que é literatura, descartamos sua ontologia, já que não temos acesso à essência, e apontar o que é literatura é instigar nossos juízos de valor, crenças e interesses, os quais favorecem determinados textos e desfavorecem outros.
 
O conceito de literatura seria então uma construção social e histórica que depende dos juízos de valor já determinados por uma sociedade, que instigam interesses e crenças que acabam valorizando determinados textos. Portanto, a definição do que é literatura é uma definição que parte de um discurso ideológico, visto que permeada pelas crenças, valores e interesses de uma sociedade.
 
A conclusão a que podemos chegar a partir disso é: são considerados literatura os textos aceitos e valorizados por uma sociedade. As regras que são usadas para categorizar o que é ou não literatura variam e apresentam instabilidade por conta dos diferentes jogos ideológicos em períodos históricos e sociais distintos. A definição de literatura jamais será limitadora, decisiva e objetiva.

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