Saúde tem cura, de Silvio Tendler
Por Solange Peirão
Os primeiros sintomas
Os processos históricos de
desenvolvimento, sejam pessoais ou institucionais, são interessantes. Para o
bem ou para o mal. Em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS), para o bem. E lava
a alma dos brasileiros que têm, é inegável, tantos motivos para se entristecerem,
especialmente nos dias que correm.
O documentário Saúde tem cura,
do cineasta Silvio Tendler, disponibilizado via YouTube, nos mostra os caminhos
que o atendimento público à saúde percorreu, do século XIX aos dias atuais. E
nesse contexto, se coloca a implantação do SUS, um projeto memorável que tanto
nos envaidece.
E como a perspectiva é de resgate
histórico, o documentário, já de início, registra a precariedade das condições
sanitárias no Brasil do século XIX. Homens livres pobres e escravos, sem
atendimento, são os que mais sofrem; estão à mercê das grandes epidemias que ocorrerão
até as primeiras décadas do século XX. Interessante ressaltar o papel das
Santas Casas de Misericórdia, que fica explícito nos registros dos jornais
cariocas, praticamente as únicas instituições a atenderem os doentes,
especialmente àqueles que comumente eram chamados de indigentes.
As primeiras iniciativas de Estado
aconteceram justamente nesse período do início da República, dada a urgência
que as epidemias (peste bubônica, febre amarela e outras) provocaram. O
documentário faz aqui duas constatações válidas em todas as fases futuras da
vida nacional: a relação da saúde com a situação de desigualdade social, significando
que as carências alimentam os surtos e sua amplitude; e a ameaça que a falta de
atendimento à saúde de toda a população provoca em todo o tecido social, incluindo
as elites.
Já nessas primeiras décadas do
século XX, fica claro a importância da classe médica — pesquisadores
sanitaristas, como Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz, Vital Brasil, Carlos Chagas — como
proponente de uma política pública e nacional na área da saúde. Oswaldo Cruz já
alertava, por exemplo, sobre a necessidade da produção de vacinas no Brasil. Para
isso, foram criados, o Instituto Butantã em São Paulo e o Instituto Soroterápico
Municipal do Rio de Janeiro, que deu origem posteriormente à Fiocruz.
A Saúde, antes e depois do SUS
A primeira instituição de proteção
social, formalmente criada pelo Estado, foi a Caixa de Aposentadoria e Pensões (CAP),
em 1923, destinando assistência médica e farmacêutica a seus segurados e
familiares. Uma rede de atendimento começou a ser criada, ao menos para os seus
contribuintes.
Na década de 1930, as Caixas foram
substituídas pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAP), iniciativa que reafirma
dois aspectos: o da descentralização da gestão, visto que os institutos têm a
marca corporativa dos vínculos com seus segurados, ou seja, referem-se cada um
a uma determinada categoria de trabalhadores; e o do fomento da desigualdade
social, visto que o vínculo dos segurados contribuintes fazia-se por meio do
trabalho formal, aquilo que se popularizou dizer “tem direitos, quem tem
carteira assinada”.
Mesmo depois, com a criação do Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966 e, posteriormente, do Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), em 1977, em que os
embates entre a assistência pública e o setor privado foram aumentando, em
torno da questão, a quem compete e quem paga pela assistência previdenciária
como um todo, algo é inquestionável. A imensa maioria da população brasileira,
de recorte rural, e decisivamente marcada pelo trabalho informal também nas
cidades, está de fora da cobertura de um sistema, pensado nessa perspectiva.
É nesse contexto que a mobilização
por um novo modelo acontece. E vai culminar na criação do SUS, que a carta
constitucional de 1988 consagrou. O documentário registra, em sua maior parte,
essa movimentação e seu alcance que transcende, em muito, a cobertura da assistência
sanitária da população brasileira.
Os agentes dessa mobilização foram
médicos, cientistas sociais, economistas, políticos e a grande massa da
população brasileira, de trabalhadores à universitários, gerada na década de
1960. O movimento militar de 1964 barrou o sonho, mas as sementes estavam
lançadas. E em fins dos anos 1970 e na década de 1980, no bojo da
redemocratização, renasceram com todo vigor.
O marco mais expressivo foi a
realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde que, além das lideranças,
oriundas de diversos segmentos profissionais e políticos, contou com uma
participação popular de mais de cinco mil pessoas.
Todos os entrevistados, no filme, registram
esse momento ímpar de mobilização, em torno da formulação de uma política
pública, amplamente democrática, de atendimento à saúde.
Saúde pública para todos, como
direito coletivo e não como mercadoria. Saúde pública indissociável do projeto
político de redemocratização, com vistas à uma sociedade mais equânime.
Desta conferência, saiu uma
Comissão Nacional da Reforma Sanitária, que elaborou o documento, encaminhado à
Assembleia Nacional Constituinte, e que norteou a criação do SUS. Uma
pesquisadora declara, de forma divertida, como o termo se consagrou durante a
Assembleia: “eu não aguento mais, todo mundo fala a mesma coisa, todo mundo
fala desse tal do SUS”. E aqui, além de se constatar a ligação forte que se
estabelece entre nome e conceito, quando aquele bem espelha a este, lembramos também
que o “único” nasce da ideia de que não pode haver dois tipos de atendimento,
um para o contribuinte do Inamps, e outro para a população não-contribuinte. O
atendimento à saúde pelo Estado deve ser um direito igual e inalienável para
todos.
Outro aspecto bastante importante registrado
no documentário é a exploração dos suportes financeiros para bancar um projeto
desse alcance. Afinal, como registram alguns, na Constituição de 1988,
“avançamos nos direitos sociais, mas não na estrutura tributária que garante
uma política universal de distribuição de renda, e que é fundamental para a
implantar e garantir um projeto dessa natureza”. E é por isso, que nos anos que
se seguem, a luta, em cada governo, para viabilizá-lo, sustentá-lo e melhorá-lo,
é sempre grande. O ex-ministro da Saúde, Adib Jatene, cita um dado esclarecedor
dessa situação: em 1989, o orçamento do SUS era de 11,5 bilhões de dólares, e
em 1993, 6,5 bilhões. É dessa correção necessária que se fala, que precisa ser
continuamente refeita, e que não se faz sem enfrentamentos políticos imensos.
Retrato do SUS na atualidade
O SUS é, seguramente, o mais
importante programa social de atendimento público à saúde do mundo. Não só
voltado aos esquemas de atenção primária, e aqui inclui-se, por exemplo, o
amplo serviço de vacinação, como também por gerir todo o programa nacional de
transplantes de órgãos do País. Nesse segmento, controla todo o processo, da
lista única de doadores e receptores, à captação dos órgãos e acompanhamento
dos transplantados e sua medicação.
Outro aspecto abordado, é a
excelência do trabalho desenvolvido pelos institutos de pesquisa e de produção
de medicamentos. É notório que a Fiocruz e o Instituto Butantã tiveram, durante
a pandemia do Sars Covid, papel fundamental para controlá-la. Isso só foi
possível porque há um percurso histórico de aquisição de conhecimento e de atuação
dessas instituições de praticamente cem anos.
De fato, chega a emocionar a
enunciação, pelos quadros dessas instituições, das ações interligadas que
envolvem pesquisa, parcerias com instituições públicas e privadas
internacionais, transferência de tecnologia, qualificação de quadros
profissionais técnicos e de gestão. Os institutos atuam na área da prevenção
(vacinas), do diagnóstico (kits para afecção de doenças) e do tratamento
(produção de bi fármacos). O dado relativo às vacinas infantis, que são 14,
impressiona: 10 milhões de crianças vacinadas contra poliomielite em um único
dia. Há ainda algo em torno de 7 vacinas para adolescentes e 6 para idosos.
O SUS gera 7 milhões de empregos.
A saúde, como um todo, é responsável por 30% do potencial de inovação em
pesquisa, em biossegurança, inteligência artificial, impressão em 3D, em uso
inteligente em grandes bases de dados.
Com essas referências é que se
fala da Saúde e do SUS, talvez, como o canal mais importante para o desenvolvimento,
no Brasil, numa perspectiva de uma sociedade mais justa e igualitária.
E que não se enganem os mais
abonados. Todos, de uma forma ou de outra, dependem do SUS. Falou-se mais
diretamente da questão dos transplantes, dos imprevistos que conduzem, por exemplo,
todos os acidentados, direto aos hospitais públicos. O documentário aborda
ainda a questão intrincada que relaciona recursos públicos, planos privados de
saúde, e impostos que pagamos.
A fala de Jurema Werneck, da
Anistia Internacional, encerra o documentário, sobre as forças que tentam
destruir o SUS: “As forças que produzem aniquilamento sempre estiveram ali. A
gente vai empurrar essas forças mais para lá. Espero que não demore. Nós somos
muitos, às vezes espalhados, desarticulados, mas somos muitos. Eles são
poucos.”
Documentário, uma forma de
fazer cinema
Recentemente, escrevendo sobre o
documentário Cesária Évora, da cineasta portuguesa Ana Sofia Fonseca,
tratei do assunto, documentário como fonte de pesquisa para os historiadores (leia o texto aqui). Quando
se trata de um percurso de vida pessoal, como nesse filme, ou de uma
instituição, como em Saúde tem cura, esse tipo de percepção é direta e
óbvia.
No entanto, não podemos confundir
uma abordagem que simplesmente reúne alguns documentos e entrevistas, para explicar
um processo histórico, com documentário, uma forma enfim de fazer cinema.
O documentário carece sempre de um
roteiro muito bem engendrado de materiais, sejam as entrevistas atuais, as de
arquivo, a documentação escrita, e outros recursos sonoros e imagéticos, todos
sintonizados para tornar a compreensão de uma proposta clara e bela. Enfim,
aquele toque que nos prende à tela e que nos faz “querer saber onde vai dar”.
No caso de Saúde tem cura o
uso harmônico dos recursos esteve a contento. Registro de forma especial: a
trilha sonora original, um rap de Fernaun, com boa sacada para a letra; a
introdução dos bonitos desenhos e grafismos (Karvan de Almeida), que dão leveza
e agilidade ao roteiro, denso e de muitos approaches; os textos e
intertítulos, marcando aspectos importantes dos temas focalizados; o discurso
reverberado dos narradores, em situações cruciais de uma abordagem.
Enfim, em tempos tão sombrios,
saímos orgulhosos dessa construção brasileira coletiva que é o SUS, e da
maneira correta, emocionante, que Silvio Tendler encontrou para nos contá-la.
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