No mar, de Toine Heijmans

Por Pedro Fernandes

Toine Heijmans. Foto: Merlijn Doomernik


 
Uma vez no mar, o tempo se divide em duas diferentes esperas cujas margens sempre se encontram no final: o de quem está a bordo e o de quem fica em terra firme. Apesar de dedicar quase toda extensão da narrativa ao último curso da viagem de Donald, os dias que se passam entre Thyborøn e Harlingen, o pequeno romance de Toine Heijmans se estabelece como margem, porto de passagem entre esses dois tempos: no desfecho do relato, convivemos com os instantes dos que aguardam os que estiveram em navegação.
 
Em terra firme, a espera pode sempre ser preenchida ou atalhada por nossos interesses, encurtada pela pressa, o mar, por sua vez, cobra do navegante o criterioso zelo com todos os limites do tempo da espera e quaisquer alternativas fora de suas leis podem se tornar na garantia que faltava para a morte. A companheira de Donald não deposita a confiança que ele imagina possuir com um meio informe e traiçoeiro, sobretudo com alguém que não é dado a refletir sobre as coisas, ou se, reflete, é tarde demais, parafraseando a maneira como o narrador de No mar se reconhece, além de oferecer provas o suficiente disso.
 
Se o mar impõe ao navegante solitário outro tempo, o convívio estrito com suas leis favorece ao homem submetido, uma reeducação de si. O material de sua aprendizagem não é o metodismo das artes de marinharia que uma vez internalizadas constituem no movimento prático da existência, repetidas com o mesmo impulso invisível da natureza, também ela feita de comandos sempre os mesmos com as variações comuns a todo sistema; são dessas variações, quase sempre o ponto-limite para quem navega.
 
Quando parte numa viagem de três meses em mar aberto, com paragens rápidas em alguns portos, Donald passa algumas adversidades que conjugadas poderiam se denominar crise de meia-idade, feita da insatisfação para a resposta dada à pergunta típica aos nossos tempos de produtividade: o que fiz de valor até agora? No caso da nossa personagem, este homem trabalha há quinze anos sem receber quaisquer promoções ou reconhecimentos enquanto na empresa pululam benesses aos empenhados novos funcionários e, se na profissão não realizou nada de vantajoso, na vida pessoal, apesar do desenxabido casamento, o que parece lhe restar é a filha, restringida pela mãe a partilhar das aventuras com o pai.
 
É reiterado o desejo de Donald por permanecer em definitivo no mar, de fugir das estadias nos portos: “Uma vez que você se estabelece em um lugar, as pessoas vão automaticamente interferir na sua vida depois de um tempo. [...] Isso me cansava. Então nas últimas semanas eu evitei entrar num porto.” E do que foge? Do mundo da técnica, possivelmente; de si, sobretudo. Maria constitui, por isso, o ponto de sentido para Donald; é a menina, que ao refazer seu apego imensurável de pai, quem o permite pensar outra vez na família como o estamento que lhe resta num mundo para o qual desaprendeu a viver na mesma velocidade que se inteirou das leis da navegação.
 
Toda a narrativa se firma na obsessão desse pai — não bom em nada como se enxerga ou uma criança crescida como repara a companheira Hagar — com a filha. Algo que chega a roçar com o fora dos limites da pura relação paterna, como é fácil se notar quando Donald tem em Maria o lugar da Pequena Sereia. Embora a imagem que propõe tenha seu ponto na personagem da Disney, o desenho foi, como sabemos, uma simplificação rasa das narrativas antigas. No conto de Hans Christian Andersen, é esta personagem que enquanto se aventura na superfície do mar se apaixona por um príncipe sozinho no barco, a quem tentará salvá-lo no aparecimento de uma tempestade, motivo que de alguma maneira se repete em No mar.
 
Na região mais perigosa do Mar do Norte, a última parte da viagem, Donald é confrontado com uma mudança repentina da natureza, obrigando-o a permanecer um tempo fora do previsto, à espera de uma tempestade. É quando a personagem, à margem da lucidez — dado o cansaço de duas noites sem dormir e agora tomado pela ânsia de chegar em terra firme — mergulha definitivamente numa nebulosa de alucinações e só é resgatado à sua superfície, qual o príncipe de A Pequena Sereia, pelo amor incondicional de Maria. Antes, o navegante já descrevera todo o convívio com a filha nessa viagem, singularizando num episódio em que os dois envoltos na solidão do alto-mar, onde as leis dos homens também são outras, mergulham e nadam em volta do barco: a forma infantil de Maria adolesce na imagem de uma jovem de maiô com uma estampa da Pequena Sereia da Disney e os cabelos loiros, longos e desfeitos das tranças por sua própria atitude: “Às vezes eu acreditava poder adivinhar como ela seria aos vinte ou aos trinta anos: uma mulher.”
 
As camadas de leitura sobre a fuga do mundo e de si — que pode ser lida, em chave psicanalítica, como uma estratégia de sublimação da consciência sobre os limites culturais que estabelecemos enquanto princípios de civilização —, são várias. Donald parece motivado por um retorno impossível à própria infância ao enxergar na filha aqueles gestos que no final se firmam como sendo os dele próprio, ou aqueles que numa possibilidade de desfrute do barco, o teriam levado ao trato com a marinhagem; ou ainda, seu interesse pela fantasia que se choca com o ponto de vista prático e objetivo que encontra em Maria. Nos primeiros movimentos da narrativa de No mar, o narrador assume sua predileção pela fantasia, ao dizer que: “Crianças não diferenciam sonho de realidade. Seria bom se adultos também fizessem isso às vezes.”



 
A fantasia — por mais que se vista de alguma inocência, puramente perturbada, sublinhe-se — alimenta todo o périplo desse navegante. O romance de Toine Heijmans se assegura no suspense e mesmo na zona da indecibilidade; mareados, os limites entre o acontecido e o suposto sustentam os movimentos mais interessantes da narrativa. Quando acreditávamos envolvidos na fastiosa mesmidade, logo somos arrastados por uma correnteza que nos colocará presas da ambiguidade do sonho, isto é, do pressuposto almejado por Donald logo no início do seu relato. O mar, no seu tempo da espera, fundamenta, como o deserto, elucubrações no viajante.
 
Fora os próprios volteios da consciência ou o interesse da personagem no desfronteiriço limite entre a imaginação e o acontecido, há certo convívio com o material da ficção dinamarquesa e holandesa — os dois extremos que se tocam na viagem de Donald. Além de Hans Christian Andersen, existem outros interesses literários que formam a pequena biblioteca do navegante: Jan Jacob Slauerhoff e Moby Dick, de Herman Melville. Do escritor estadunidense, ele fisga, dentre outros traços, o nome do barco, Ishmael, uma chave que esclarece seu próprio destino — “Dei o nome de Ishmael ao meu veleiro em homenagem ao personagem principal de Moby Dick. Ishmael é aquele que no final sobrevive a tudo.”
 
Do romance de Melville, o próprio Toine Heijmans incute a obsessão de sua personagem que, como observamos antes, logo se converte em sombra ameaçadora para o navegante, obrigando-o ao contato com essa dimensão inescapável de todos, o pior e o terrível de si, feita da negação e dos medos. O tópos, quando articulado com os interesses literários de J. J. Slauerhoff, funda as bases do romance ora lido. Donald, se não é movido pelo espírito dos grandes navegantes — e nem é preciso se deter em certo imaginário histórico sobre o papel dos conquistadores holandeses no século das grandes navegações —, é alguém que descobre nessa vivência alguns dos seus valores numa época quando todas as grandes descobertas geográficas estão registradas nos mapas como observa no tratamento milimétrico da cartografia que o orienta na viagem. Esse espírito com o qual a personagem de No mar entra em contato constitui a vida e a literatura de J. J. Slauerhoff.
 
Interessado na crise da cultura ocidental e na crise de personalidade europeia, Slauerhoff optou por compreendê-las a partir de sua própria vivência quando escolhe constituir profissão como médico de bordo. Dos trânsitos entre o oriente e ocidente, formou sua atenção para os simples, malditos e grandes autores dos empreendimentos marítimos; neles, encontra os traços de sua instabilidade existencial — algo redivivo no espírito de Donald. No romance O reino proibido, figura um radiotelegrafista irlandês insatisfeito com sua vida insignificante abandona-se a uma aventura pelo interior da China depois de ataque ao seu barco por piratas e neste país é tomado pelo espírito de Luís de Camões até seu resgate em Macau, onde o poeta português se refugia para a escrita de Os Lusíadas.
 
Também a poesia, que constitui extensa parte da obra literária de Slauerhoff, o tema do referido romance de alguma maneira retrabalhado por Heijmans, volta a ser mensurado entre um pessimismo e uma desilusão de alguém em busca de certa liberdade, seu consolo, o desprendimento de tudo: o tempo de espera de Donald é o dessa busca e chega a sentir seu gosto. No que chama “turno do cão”, a vigília da noite, a primeira, é iluminada por esses versos do poeta e romancista holandês: “À sombra do toldo, repuxado pelo vento / Estou feliz e liberto / O fado é incerto / Mas nada me prende à vida neste momento”.
 
Outro livro é marcado como peça de destaque na pequena biblioteca do Ishmael: O Pequeno Capitão, de Paul Biegel. Se os demais livros são motivadores, este que é considerado um clássico da literatura infantil holandesa também forma parte no desenvolvimento estrutural da narrativa. Depois de conviver com os curiosos de um porto quando seu barco encalha num banco de areia, o Pequeno Capitão tem a sorte de outra tempestade qual a primeira que o levou ao incidente mas positiva arrastá-lo de volta ao mar; agora, acompanhado pelas três crianças do lugar, a viagem se determina por encontrar a ilha de Evertaller, que, segundo a lenda, é capaz de libertá-los da condição de crianças, favorecendo a elas das obrigações impostas pelos adultos.
 
Em No mar, conforme notamos, o movimento de Donald se dá em direção contrária: quer se libertar da vida dessentida dos adultos e do seu mundo burocrático. A insatisfação, força motriz dos navegantes, é não um princípio particular inerente ao trato dessa profissão, mas universal do qual é impossível desfazê-lo. Quando adulto sonhamos com a infância, quando infantes com a vida adulta; quando no mar, em terra; quando em terra, no mar; se, por um lado, essa marca nos cinde pela angústia de ser, por outro, é a que nos permite não permanecermos os mesmos. A viagem de Donald é, portanto, busca e compreensão desse valor da insatisfação e cabe ao leitor descobrir essa aprendizagem.

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