Maria Gabriela Llansol: a escrita do corpo ou o corpo da escrita
Por Fernanda Fatureto
Maria Gabriela Llansol (1931 – 2008) é uma escritora
inclassificável. Sua escrita flerta com o inaudível e incorpora, em sua obra, o
vazio. A escritora negava dizer que seus textos eram parte da ordem do
ficcional. Para ela, escrever era abarcar o mistério da existência de todos os
viventes sob a terra — seja uma planta, um animal, pessoas… Todos eram parte de
um mesmo universo que ela transmitia em sua escritura. A escritora nascida em Lisboa não fazia
distinção entre os “viventes” (como gostava de dizer) e até mesmo autores que
admirava como Nietzsche, Fernando Pessoa, Rilke, Bach eram transpostos para
seus textos sob a forma de “figuras” e não personagens.
João Barrento, pesquisador e responsável por editar sua obra
e organizador do Espaço Llansol em Portugal, organiza desde meados de 2007 e
2008 o espólio da autora e edita os diários que Maria Gabriela Llansol escreveu
desde seu exílio na Bélgica na década de 1970. Chamado de Livro de Horas,
pode ser descrito como diários já inseridos na ficção llansoliana por abrigar o
germe fundador de sua narratividade para outras de suas obras. “A primeira imagem do Diário — escreve Llansol
no texto que ainda escolheu para o que seria a abertura do primeiro Livro de
Horas — “não é, para mim, o repouso na vida cotidiana, mas uma constelação
de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras.”
O texto fragmentário, os sonhos, as ideias sobre seus livros
e a vida podem ser encontrados nos Livro de Horas publicados em Portugal
pela editora Assírio & Alvim — ao todo setenta cadernos de escrita. “Os
cadernos e a escrita avulsa de Maria Gabriela Llansol constituem, a partir de
finais dos anos sessenta, já em Lovaina, o depósito inicial da escrita dos
livros que se seguiriam, quase sempre com esse caráter híbrido e essa marca
inconfundível do texto llansoliano, entre o brilho súbito da imagem que se
impõe e a forma acabada do pensamento e da expressão, numa escrita estrutural e
geneticamente não linear e não sequencial, mas contínua, imparável e torrencial
como um rio”, escreve João Barrento na introdução de A Palavra Imediata –
Livro de Horas IV.
Em A Palavra Imediata, Llansol escreve: “Vivo para
dentro, pra a cena, na minha maneira de ser que é possuir um palco dentro, e
uma plateia.” Sua escritura continha sobreposições de imagens e sensações que a
tornaram escritora única. Na sua escrita havia um embate entre o corpo e o
imaterial que ela chamava de corpo’a’screver; como descreve: “A palavra é um
dos meios de ação do corpo. (…) A palavra é uma escrita do corpo: espécie de
contabilidade que exprime conflitos e tensões. Desse modo se revela o código
íntimo do corpo àqueles que estão dispostos (predispostos) a isso.”
Ler Llansol com o corpo todo. Este é o caminho para todos
que abarcam o texto llansoliano. “As aparas da escrita e dos dias nos papéis
avulsos espelham, com os cadernos, o respirar diário de um ser-de-escrita para
quem o mundo e a experiência só existem quando ganham esse corpo, essa volátil
e sólida existência de papel.”, escreve João Barrento.
Maria Gabriela Llansol tinha a língua portuguesa como
destino e ofício — mesmo quando exilada na Bélgica e traduzindo autores
franceses. A língua portuguesa era sua pátria: “Neste fim de noite, subiu as
escadas até ao sótão estou só no meu idioma. (...) Abri caixa de madeira onde
trago pena e papel e primeiro, só a pensar, iniciei o meu ofício. Procurava a
minha verdadeira originalidade. Punha-se a questão da minha nacionalidade, e só
a língua e as paisagens me pareciam maternas”, escreve em A Palavra Imediata
– Livro de Horas IV.
A escritora portuguesa está o tempo todo questionando o que
é a escrita — a escritura como diz o filósofo Jacques Derrida. O ponto
nevrálgico da trama llansoliana são as cenas fulgor que emergem do seu tecido
literário. Cenas que são uma constelação de imagens sobrepostas no texto. A
palavra sempre orbitando e deslocada do sentido tradicional da narrativa. “A
língua conduzir-te-à sempre a esta casa”, escreve em A Palavra Imediata.
Llansol escrevia com o próprio corpo, atenta à transpiração
da própria escrita como menciona: “Enquanto se escreve/lê este texto, é preciso
não esquecer que uma batalha se desenrola e continua a desenrolar-se. (...)
Quem batalha, escreve?; quem batalha para alcançar a visão da escrita, talvez
tenha a possibilidade de escrever.”
Batalha corpo a corpo com a página em seus diários e livros.
“Como os nossos corpos exprimem pouco a belitude que deixamos, o mais belo
corpo é o corpo da mente.”
Linguagem poética em sua essência, a escrita llansoliana
flerta com o vazio de onde surgem imagens potentes: “_____ e a casa envolveu-se
num futuro que a arrasta, tornou-se móvel e sacrário — corpo. (...) ‘Onde vais,
extinta poesia do ser?’ À procura do futuro, de uma nova imagem que bata no
lugar falhado do coração da Poesia. (...) A Poesia é íngreme. Mas dava um nome
à Casa. Poesia, natural saber, repleto de imagens entrepostas no centro das quais
— incólume — estava o afecto que à casa dedicava. Passei pois a chamar-te — ao
futuro — Casa dos Afetos Constitutivos do Ser.”
Os afetos, os autores de que gostava e os leitores
(legentes) de sua obra, Maria Gabriela Llansol os chamavam de linhagem. Todos
envoltos pela linhagem comum de amor à escrita e ao texto. Como escreve em A
Palavra Imediata: “Onde vais, Drama Poesia? Tudo o que se escreve quer
dizer que se ama.”
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