“Destino”, de Ryunosuke Akutagawa
Por André Cupone Gatti
e Guilherme de Almeida Gesso
Nenhuma frase resume tão expressivamente a persona artística
de Ryunosuke Akutagawa quanto aquela de sua própria pena, escrita alguns meses
antes de se suicidar, em janeiro de 1927: “Não tenho consciência de qualquer
espécie, nem mesmo artística. Sensibilidade é tudo o que tenho.” Inegavelmente,
a prosa de Akutagawa nasce do sensível e jamais o perde de vista. Esse contista
japonês, considerado o maior de seu país no século XX, no entanto, acabou por
construir narrativas com possibilidades interpretativas tais, que nos soa
estranho aceitar unicamente a sensibilidade como fonte da sua criação
ficcional.
Retórica à parte, Akutagawa, para além da sua maneira “à
flor da pele” de criar, narrando o pasmo das superfícies, desenvolveu, em
grande parte dos seus contos históricos, uma curiosa e discreta tensão entre as
cores absolutas da tradição fabular e a coloração gradiente da modernidade. Foi
o conto “Rashomon”, publicado em 1915, o passo inicial de uma série de
reescrituras de crônicas do Período Heian (794 - 1185), e o primeiro impulso
para a sua fama literária.
Para investigar melhor as forças diversas que agem na
literatura de inspiração histórica de Akutagawa, elegemos o conto “Destino”, de
1916, cujo motivo o autor encontrou nos Konjaku Monogatari (1120?). Narrativa
das mais breves dentre as dezenas de contos do autor, “Destino” é construído a
partir de um tema corriqueiro, valendo-se de uma estrutura concisa que
evidencia os recursos narrativos, e lançando mão de um estilo que oscila entre
a velocidade fabular e a lentidão contemplativa.
Ceramista e samurai encontram-se no interior de uma loja. O
primeiro conta ao outro as venturas e desventuras por que passou certa mulher
ao ser materialmente beneficiada pela deusa Kannon. Findo o relato, resta-nos
refletir sobre as contradições entre riqueza espiritual e pecuniária, reflexão
a que se furta o samurai, pois que seduzido pelo brilho enganador do ouro.
Estrutura contrapontística
As duas primeiras frases do conto instauram sem demora o
contraponto mais evidente da trama: o interior da oficina e a rua, separados
por uma cortina de palha trançada. Consoantes a esse primeiro jogo de avessos,
aparecerão outras tensões que acentuarão a dupla via do conto. O contraponto
cênico leva a um contraponto narrativo à medida que, no interior da oficina,
enquanto o ceramista dilata o tempo ao contar eventos circunscritos ao
maravilhoso e mitológico, o narrador, vez e outra, nos leva a ver a rua através
da cortina, e então nos deparamos com a banalidade, com o tédio, com o tempo
empírico e com as coisas sem mitologia, coisas tão somente sensíveis. Esse
contraste entre a transmissão fabular da tradição e a força epidérmica da
realidade fugaz, amplifica e desdobra o claro-escuro cênico em divergência
espiritual e histórica, e não seria de todo insensato dizer que nessa estrutura
contrapontística agem, subcutaneamente, a vida, vazando de tudo o que é
tangível, de tudo o que é imune a interpretações; e a forma, cifra na qual
incrustam-se as respostas, as sistematizações do real, os círculos do mito e o
veredicto das tradições.
O contraponto narrativo, assim, afluindo em sutil
contraponto cultural, expande as possibilidades interpretativas do conto. A
tradição, encarnada pelo ceramista que dá sequência à transmissão das crenças,
é pontuada em negativo tanto pela melancolia que emana das delicadas descrições
que o narrador faz do mundo externo, quanto do senso prático do samurai também
cabisbaixo, que interpreta com desvios os valores tradicionais. O tédio que
aqui às vezes se faz passar por melancolia, aponta, talvez, para o iminente
giro da História, prestes a acentuar a incompatibilidade entre tradição e vida
prática. Quem sabe não esteja aí a modernidade de Akutagawa.
Poder e fracasso do mito
Se o ceramista, repositório das histórias ancestrais, é o
narrador tradicional, o samurai não é senão o representante de um mundo em que
o encanto fabular perdeu sua força, em que o senso pragmático suplantou
qualquer cosmovisão mística. O mais velho tenta transmitir ao mais jovem a
sabedoria do mito, sem que o ouvinte, entretanto, se disponha a aprender. O
fracasso do mito plasma uma mudança na chave histórica — e Akutagawa reflete
literariamente sobre essa transformação.
Em “Dragão”, por exemplo, a narrativa oral tem poder de
transfigurar a realidade, criando uma espécie de transe coletivo. À beira do
rio, vemos surgir a criatura voadora, fruto de um boato espalhado para enganar
o vilarejo; mas sendo encantado o mundo, a palavra empenhada, por mais
mirabolante, deve necessariamente se concretizar. Muito diferente é a lógica de
“Destino”. As narrativas não ultrapassam o couro do coração. Em épocas de
desencantamento e materialismo, perde-se a fé.
Luzir sensível da imagem
Para além das dimensões temáticas, o que chama a atenção na
escrita de Akutagawa é a perícia do estilo, a minúcia com que se estabelece o
cenário quase como um elemento à parte no todo da narrativa. Por um lado, é
claro que o contraponto entre interior e exterior da oficina cumpre funções
dramáticas, polariza temporalidades diversas e metaforiza, graças ao jogo de
sombras, o tópico da decadência dos valores, muito corrente na pena do
escritor. Por outro, transcende a simples funcionalidade, angariando brilho
próprio e autotélico. É que a descrição da rua fronteiriça à loja é tão
singular, tão maravilhosamente bem feita, que de imediato se nos apresenta como
nítido tableau vivant. Quase se pode tocá-lo. Imaginamos com detalhes o
ritmo dos transeuntes; a luz do sol que com o passar do tempo neles incide cada
vez mais obliquamente, de que resulta o alongamento das sombras sobre o chão;
as flores de cerejeira dispostas no solo, contribuindo para a textura cromática
do quadro; a poeira, enfim, que se levanta no terreno amarelo.
O olhar impressionista do autor, rico em ênfases visuais,
lembra-nos o artesanato imagético de um Kawabata (sobretudo o Kawabata do País
das Neves). Uma fanopeia suplementarmente notável porque prescinde da
extensão dos narradores realistas, feita na verdade por apartes curtos e
pontuais, irrupções de uma sensibilidade ímpar. Esse artesanato que para a cena
com o fito de se deleitar no cenário parece ser o que há de mais pessoal nos
textos de Akutagawa, o tipo de peculiaridade que de pronto fisga o leitor que
desbrava a obra pela primeira vez.
Como equilibrar a festa de cores e sensações com o
comentário social arguto? A arte pela arte, o gozo do paisagista, com uma
interpretação melancólica do desencantamento moderno? Tudo isso “Destino” tenta
e faz e forja com inegável talento.
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