As polêmicas vidas de Philip Roth
Por Javier Aparicio Maydeu
Philip Roth. Fotos: Eve Arnold |
Nunca saberemos como Philip Roth
resenharia esta biografia de Philip Roth, o romancista mascarado que quis se
disfarçar de autobiográfico em Os fatos e que sempre precisava inventar
suas próprias vidas e confundi-las com as vidas dos outros que sua profissão o
levava a conceber em forma de personagens, jogando de desfigurar as fronteiras
que separam o criador de suas criaturas, emaranhando o novelo de identidades.
Na famosa entrevista para The
Paris Review, o autor de A marca humana deixou claro que “a ideia é
transformar pessoas de carne e osso em personagens fictícios e personagens
fictícios em pessoas de carne e osso. […] Um escritor é um ator. Tem que haver
algum prazer neste trabalho, e é isso, andar por aí disfarçado. Atuar como um
personagem. Fazer-se passar pelo que você não é. Fingir”.
E seus leitores sabem muito bem
que ele perverteu fragmentos de sua vida disseminando-os entre seus
personagens, heterônimos ou alter egos, a ponto de fazer muito sentido
se perguntar, como fez na entrevista para Le Nouvel Observateur: “Sou
Lonoff? Sou Zuckerman? Sou Portnoy? Sou Kepesh? No momento, não sou nada tão
nitidamente delineado quanto um personagem de livro. Continuo sendo o amorfo
Roth”, mas convenhamos que “estamos continuamente escrevendo versões ficcionais
de nossas vidas”.
É fácil presumir que Bailey, o rigoroso
biógrafo profissional que se dedicou anteriormente a lidar com John Cheever ou
Richard Yates, fez um tour de force em seu embaraçoso compromisso de
contar a vida de um escritor tão obcecado em inventar a existência quanto Roth,
dado o desafio de mapear a vida de um homem poliédrico, de personalidade
inconstante, polêmico e ao mesmo tempo irrefutável, que se alimentava da
mistificação e se debatia entre a concupiscência do corpo e a transcendência da
mente e entre o carpe diem e o memento mori.
Roth foi uma figura importante da narrativa judaica estadunidense juntamente
com os seus mestres Bernard Malamud e Isaac Bashevis Singer, seu admirado Saul
Bellow, seu nêmesis John Updike e um Norman Mailer que ele transforma em personagem
marginal em seu romance O avesso da vida, no qual desfruta largamente uma
consciência tortuosamente exacerbada, praticando a desdobramento de
personalidade e toda sorte de formas e experimentos de esquizofrenia ficcional,
da refração ambígua da personalidade e das múltiplas identidades que pendem de
um eu como os pedaços de um móbile de Calder. E é que “estava farto de
distorção de mim mesmo [...], de disfarce de mim mesmo”.
As vidas de Roth são as de um atraente,
burlesco e prolífico romancista judeu-americano que renunciou à quimera da
torre de marfim para viver a vida e que, inventando-a em intrincados artefatos
ficcionais escritos com dedicação e sacrifício, logo foi capaz de se sentir
triunfante. Acusado de ser antissemita porque, indisciplinado, declarou guerra
ao clichê do judaísmo, enfrentou, diante do próprio olhar de Franz Kafka, a
espinhosa questão da todo-poderosa política frente do indivíduo vulnerável, e
viveu, em partes iguais, como homem de letras e como Don Juan.
Blake Bailey opta pelo close up,
e por um trabalho consciencioso de coleta de dados e testemunhos, encadeando-os
em forma de relato, confirmando sem arriscar, em detrimento de uma biografia de
caráter interpretativo. Enfoca questões políticas e da condição humana e da sociologia
da literatura, deixando desfocadas aquelas mais próximas da criação artística e
dos debates literários, que o leitor encontrará nas páginas de “Entre nós: um
escritor e seus colegas falam de trabalho” e outros textos recolhidos em Por
que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013).
Enfim, quem sabe se esta foi a
verdadeira vida de Philip Roth, mas reconheçamos que a biografia que Bailey
erigiu honra a enorme figura do autor de Pastoral americana e se coloca
ao lado de trabalhos como os de: Brian Boyd, Vladimir Nabokov. The Russian
Years e Vladimir Nabokov. The American Years; de Stephen B. Oates, William Faulkner. The Man and the Artist – a Biography;
ou o de Paul Alexander Salinger. A biography.¹
Não há a menor dúvida sobre o
mérito de biografar um homem que repetiu ad nauseam e de mil maneiras
diferentes em sua obra: “Não tenho um eu, mas tenho toda uma variedade de
imitações, e não apenas de mim mesmo, mas também de uma verdadeira multidão de
intérpretes interiorizados. Eu sou um teatro e nada mais que um teatro.” (O
avesso da vida); e o fato é que seus eus ficcionais não costumam mostrar a
melhor imagem de Roth, que não se importa com isso porque, como alguém disse,
não acredita que a literatura seja um concurso de beleza moral.
E o trabalho extenuante de Bailey
acumulando os detalhes da vida pletórica e inventada de Roth explica a
conhecida literatura frenética e sofisticada de autor de romances
inquestionáveis como Complô contra a América e da decisão de 2010, tão
audaciosa quanto irrevogável, de proclamar a os quatro ventos que deixava de
escrever, que caía a cortina.
Quando Roth encomendou a Bailey esta
biografia autorizada, ele disse: “Não quero que você me reabilite. Basta fazer
com que fique interessante”, e Bailey, sem a menor intenção hagiográfica, mas
com indubitável intenção detetivesca, transformou Roth no protagonista de um genuíno
romance realista. Exaustivo e viciante, como é de Deus.²
Notas da tradução
1 Esses livros são ainda inéditos
no Brasil. Em tradução livre, leia-se, respectivamente: Vladimir Nabokov. Os
anos russos; Vladimir Nabokov. Os anos americanos; William
Faulkner. O homem e o artista – uma biografia; e Salinger. Uma biografia.
2 A biografia de Philip Roth
comentada neste texto estava prevista para publicação no Brasil pela Companhia das Letras,
mas a casa editorial suspendeu sumariamente até esta data a continuidade do
projeto depois de suspeitas de assédio sexual envolvendo o biógrafo. Nos
Estados Unidos, outra editora diferente da original assumiu a publicação do livro que já mereceu
traduções em espanhol e em português.
* Este texto é a tradução livre de
“Las polémicas vidas de Philip Roth”, publicado aqui, em El País.
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