Alain Resnais: você ainda não viu nada

Por Álvaro del Amo

Alain Resnais no set de filmagens de Hiroshima, mon amour. Foto: Emmanuelle Riva.


 
“Você não viu nada em Hiroshima, nada”, diz o amante japonês à atriz francesa que foi filmar um filme pacifista. “Eu vi tudo em Hiroshima, vi o museu, o hospital, os jornais, as fotografias, a cidade devastada, vi tudo em Hiroshima, tudo”, ela responde. “Nada, você não viu nada em Hiroshima”, ele insiste.
 
O primeiro filme de Alain Resnais (Hiroshima, mon amour, 1959) anuncia e dialoga com um dos seus últimos (Vous n'avez encore rien vu, 2013). Uma advertência que, em sua ambiguidade muito genérica, proporciona uma possível chave para a obra desse cineasta tão peculiar. Anexado à Nouvelle Vague francesa, mais por coincidência em sua data de início, 1959, o ano de Acossado, de Jean-Luc Godard, do que por qualquer outra afinidade possível, esse cinéfilo que sempre fugiu da ênfase da autoria nunca fora um narrador. Ele se nutriu por textos literários que transformou em filmes através de um ponto de vista alheio às regras da história clássica.
 
Resnais (Vannes, 1922 - Paris, 2014) tratou de “grandes temas” (o tempo, a memória, o comportamento cerebral e social do homem, a relação com seus semelhantes). A banalidade, originalidade ou profundidade do tratamento dependiam das palavras fornecidas pelo escritor. O excelente texto de Marguerite Duras é um poema comovente sobre a Europa do pós-guerra, do pós bomba atômica, uma sociedade onde os vencedores também foram derrotados quando se trata de recompor uma consciência entre o esquecimento execrado e uma memória ativa, da qual a atriz francesa destaca sua “evidente necessidade”.
 
Hiroshima, mon amour merece o qualificativo de uma obra-prima e, como tal, com um lugar merecido na história do cinema. Também o seu segundo filme, O ano passado em Marienbad, de 1961, baseado num magnífico texto de Alain Robbe-Grillet. Novamente a dialética entre memória e esquecimento, através de um hipnótico e fragmentário percurso de um hotel ou balneário entre o palácio de versalhesco e o túmulo monumental. Aqui o amante (que, como o outro, não tem nome) age de maneira oposta ao japonês, tentando convencer a requintada dama de que sim, realmente, como não lembrar do encontro do ano passado em Marienbad. Aqui a memória adquire uma eficácia ativa contra os subterfúgios do esquecimento, que tende a se erguer como barreira, ou proteção, frente à realidade.
 
O cineasta francês, desde seu início prodigioso (nunca alcançado outra vez), tem insistido em tentar nos mostrar que nunca vimos nada parecido. Um compromisso cuja suposta pretensão se dilui em extrema discrição e aparente humildade na hora de assinar suas obras. O seu nome não aparece depois do habitual “dirigido por” muito menos como “um filme de”, mas ao lado de uma palavra que nem sequer lhe faz alusão: réalisation. Realização, e ao lado ou abaixo, Alain Resnais.
 
Seus filmes estão “realizados” com o desejo de se adaptar em cada caso ao que ele acredita que o texto literário é que serve de base às necessidades do filme; o que não impede o aparecimento de uma série de traços de estilo, soluções recorrentes e até tiques: edição rápida, planos detalhados que aparecem repentinamente em momentos ou objetos já vistos, certo hieratismo na direção dos atores, frequente voz em off, dentro de um planejamento bastante acadêmico com pouca predileção por enquadramentos inusitados ou enigmáticos.
 
O cinema de Alain Resnais foi muito apreciado pelos cinéfilos espanhóis, hoje maduros, que, influenciados pelo fascínio produzido pelos seus dois primeiros títulos, encararam com bom humor as obras seguintes. Hoje, Muriel (1963), baseado num texto de Jean Cayrol (defensor do que chamou de “estética da concentração”), é uma peça abstrusa, difícil de ver. La guerre est finie (1966), com roteiro de Jorge Semprún, merece ser criticamente revisto pelo tratamento perturbador do comunista no exílio.
 
Resnais tinha que demonstrar que nunca tínhamos visto o que ele estava fazendo, e ele estava certo, porque a ficção científica gelada de Je t'aime, je t'aime (1968), e o drama indecifrável com fundo bélico de Providence (1977), desembocam em Mon oncle d’Amerique (1980), onde se insistia em um exaustivo paralelismo entre comportamento humano e animal. Em L'amour à mort (1984) interrompia a ação, sem razão decifrável, com uma tela preta povoada por flocos de neve flutuantes e música de Werner Henze. Até que com Mélo (1986) se dedicou a filmar peças de teatro.
 
O teatro filmado, literalmente, como tal, a câmera diante de alguns atores que estão em um set, cuja condição como tal parece exacerbada. De Mélo, um antigo drama burguês, a Aimer, boire, chanter (2014), baseado em uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn, além de Smoking / No Smoking (1993). Uma teatralidade que é catapultada para o espectador de uma forma que quase poderia parecer agressiva, não fosse o entusiasmo, a impudência e a convicção que a réalisation do cineasta se desenrola até chegar ao vaudeville burlesque de Pas sur la bouche (2003) e a verdadeira apoteose teatral de Vous n'avez encore rien vu, onde os atores convocados são também os espectadores de uma filmagem de uma peça. Também muito teatrais são On connaît la chanson (1997) e Medos privados em lugares públicos (2006).
 
Da fúria de levar ao cinema peças de bulevar de boa bilheteria mas implacavelmente vetustas se livra Les herbes folles (2009), uma história com os maneirismos do diretor, mas com um humor raro em Resnais o emaranhado de mal-entendidos que confunde os sentimentos até a catástrofe.
 
O cineasta que dirigiu, fez e realizou seu último filme, já um nonagenário, celebrado como artista secular, coloca, além da apreciação, impaciência ou desdém que seus filmes podem causar, uma verdade melancólica: o cinema que ele representa acabou com ele.
 
* Este texto é a tradução livre de “Alain Resnais: todavía no habéis visto nada”, publicado aqui, em El Cultural. 

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