A vegetariana, de Han Kang
Por Sérgio Linard
Han Kang. Foto: Gorm Kallestad |
“Ninguém nasce para semente”. No
interior do Maranhão, terra de onde brotou este que aqui escreve, usamos esta
expressão sempre que intentamos lembrar da finitude da vida. No saber popular,
diz-se que não se nasce para semente, porque não iremos viver para sempre; um
dia, invariavelmente, nossa história por aqui chegará a um termo.
Yeonghye, protagonista de A
vegetariana, queria, ainda assim, virar semente. Ou planta.
A trama deste romance da escritora
sul-coreana, Han Kang, conta a história de uma família aparentemente comum que
tem toda a sua normalidade alterada a partir de um sonho. Pesadelos que
envolvem sangue, morte, catástrofes e situações parecidas levam Yeonghye a
anunciar “Eu tive um sonho” e, a partir disso, as situações internas e externas
a ela ganham ares e perspectivas distintas à medida que as páginas do romance avançam.
Após este sonho, ela decide tornar-se, de forma irrenunciável, vegetariana. Os
três capítulos que constroem o texto são narrados de forma distinta, em
primeira ou em terceira pessoa, destacando-se um dos familiares que tem relação
direta com a nova vegetariana da família. O romance tem como centro de
desequilíbrio, nos três capítulos, o mesmo acontecimento: uma tentativa de
suicídio por parte de Yeonghye após uma investida de seu pai para fazê-la comer
carne.
Algumas manifestações artísticas,
especialmente aquelas mais próximas do que chamamos de fantástico, chegam ao
desfecho anunciando que tudo o que se viu foi somente um sonho. Enquanto o
idílico é ponto de encerramento dos conflitos naquelas, nesta, o sonho é ponto
de partida e ele não somente gera a mudança de postura da jovem professora
horista, como reaparece, sempre de forma abrupta, no meio do texto.
Reconhecemos que se trata de um sonho pelo uso da fonte em itálico e pelos
acontecimentos vistos em tela. São sonhos sempre obscuros, com temáticas de
morte, de sangue, de exploração; aqueles sonhos que quebram a normalidade da
família também quebram a estrutura do texto, de modo igualmente rompante e
incontornável, materializando na forma aquilo que ocorre no conteúdo.
Jeong, narrador do primeiro
capítulo, é casado com Yeonghye e afirma em determinado momento ter escolhido
casar-se com ela porque aquela mulher era “a mais normal do mundo”. A partir de
quando ela decide parar de comer carne e entra em um crescente estado de mudez,
aquela normalidade que sustentava o casamento deixa de existir e o matrimônio
perde sentido para o marido. Aqui destaco a importância de percebemos o porquê de
o mesmíssimo evento aparecer nos três capítulos da obra. Mesma cena, narrada do
mesmo jeito, atingindo as mesmas pessoas, contudo, com resultados diferentes.
O marido, o primeiro familiar com
quem temos contato, olha para toda aquela situação em que ele e sua esposa
estão envolvidos e sente repulsa. Decide, então, que é chegada a hora de
acabar o casamento e opta pelo divórcio. É interessante observar, porém, que a
opressão que aquela mulher sofria dentro do casamento não fora suficiente para
movê-lo em prol de afastar-se dela. As práticas sexuais entre o casal, cada vez
mais raras, chegam a um nível em que Jeong comete nítido estupro:
“Nas noites em que voltava tarde
depois de um jantar de negócios, eu me jogava sobre ela, com a desculpa da
embriaguez. Chegava até a sentir uma inesperada excitação ao tirar a calça
dela, segurando seus braços, que resistiam. Dizia-lhe obscenidades a meia-voz;
ela resistia bravamente, mas a cada três tentativas eu conseguia penetrá-la ao
menos uma vez. Durante a penetração, ela ficava olhando para o teto, em meio ao
escuro, com uma expressão vazia, como se fosse uma escrava sexual em tempos de
guerra. Assim que eu terminava, ela se deitava de lado, me dando as costas, e
escondia o rosto com o lençol.”¹
Observe-se a utilização do
pretérito imperfeito na citação acima. Este abuso não aconteceu somente uma
vez. Ele acontecia. No entanto, ver e sentir a resistência da esposa para fazer
sexo com o marido era motivo para que continuasse tentando e não para que se afastasse.
A repulsa surge somente quando aquela mulher toma uma decisão para si,
sem consultar ninguém e sem mostrar-se frágil. Quando ela decide que parará de
comer carne e, automaticamente, de cozinhar aquele alimento para o marido, a
reação é taxativa: a vegetariana estava louca.
O cunhado, marido da irmã de
Yeonghye, observa a tentativa de suicídio daquela moça, mas os resultados que
encara são diferentes. É pena seguida de atração sexual o que ele
sente por aquela mulher, agora indefesa aos olhos dele. Inicia-se, então, um
tom mais acadêmico na escrita do texto, isso porque a personagem focalizada é
um produtor de filmes premiado, com um relativo reconhecimento na sua área.
Registre-se aqui o mérito desta troca de vozes narrativas ser bem executada,
pois, além de ser verossimilhante, contribui para o andamento do romance ao
retornar ao mesmo ponto de partida para acrescentar outras perspectivas; uma
história da mesma história com diferentes percepções, como é natural à
literatura. Novamente, Yeonghye, cada vez mais silenciosa — ou silenciada —
sofre abusos. O que se sabe dela é o que pode ser lido nos sonhos e eles são,
por sua própria natureza, confusos e obscuros.
Remorso, por fim, é o
sentimento que resume como a irmã da vegetariana se sente ao perceber que tudo o
que Yeonghye sofre foi desencadeado por um abuso psicológico do pai de ambas.
Foi quando, cabe lembrar, o pai intentou forçar a filha a comer carne que ela,
em um ato desesperado, tenta matar-se.
Aquele ponto da narrativa encontra,
então, o fechamento de seu círculo. É um ponto de partida e um ponto de
chegada. Yeonghye sofre abusos psicológicos por parte do pai desde a infância;
depois do marido, do cunhado e novamente do pai (não necessariamente nesta
ordem). O ciclo da vida se fecha e viver daquela forma, como uma parede, não
faz mais sentido para a professora, porque seus sonhos passam a revelar
justamente o quanto de exploração há em sua trajetória. Ela percebe, então, que
não precisa de mais nada além de água, porque o ideal seria virar planta, isso
porque foi a forma encontrada para que aquele rompimento do outro sobre si
cessasse.
A forma do romance, por seu turno,
divide e intitula os capítulos com base na perspectiva das personagens que
terão relação clara e direta com a Vegetariana. Assim, a história naturalmente
conduz-se como que em um flashback contínuo, posto que os novos capítulos
sempre se encaminham para o mesmo ponto. Esse aparente caos entrega um bom
fôlego para o texto porque gera, pelo menos, três análises de um mesmo
acontecimento e, como leitores, ganhamos a oportunidade de adentrarmos em
outras formas de pensar sobre as relações da trama, ampliando-se os questionamentos.
Dessa feita, a história de Yeonghye é um constante convite para o ponto de
partida, posto que nos leva para onde tudo começou e nos faz pensar novamente.
Quando alcançamos alguma certeza sobre o que lemos, especialmente acerca da
protagonista, somos encaminhados a revisitar aquela certeza e a repensá-la, sem
didatismos ou explicações desnecessárias. Simplesmente “rebobinamos a fita”
para ver a cena com outra perspectiva, e a escrita de Han Kang tem grande
mérito em conduzir este processo com muita naturalidade.
Ainda sobre Yeonghye, é pertinente
destacar que uma pessoa como ela — envolvida em constantes abusos — vê-se em
uma situação na qual a própria subjetividade vai se apagando e deixando de
existir. Neste caso, a protagonista de A vegetariana vê, como diria
Agamben², que sua situação só pode ser a de dilaceração total. Ela precisava
apagar-se completamente, virar semente e renascer como planta, porque, fora
disso, tudo o que ela era não passava de mentiras abusivas. E aqui, de forma
muito pertinente, o livro entra em suspensão.
A vegetariana é um romance
que tem uma desenvoltura e uma condução temática interessantes, especialmente
porque consegue tratar de forma objetiva e precisa a possibilidade que um mesmo
acontecimento tem de desencadear efeitos distintos. Ao destacar as
subjetividades dos demais envolvidos e permitir que conheçamos a
individualidades da protagonista somente por meio dos sonhos — sempre
repentinamente acrescentados ao texto — o livro ajuda a perceber que aquela
moça deseja virar planta apenas para consolidar externamente aquilo que ela já
é internamente. E ela não é uma “planta” porque não tem sentimentos ou porque
decide parar de comer carne; ela o é porque sê-lo foi o jeito resignado que
encontrou para superar os traumas encabeçados por todos ao seu redor. Os sonhos
materializam grandes medos ou grandes desejos, como postulou Freud e como, de
fato, ocorre no romance em questão.
Ainda que partes do enredo já
apontem para um nítido desfecho, seja do capítulo seja do romance, o leitor é
convidado é ver como aquilo vai ser dito. O que é, convenhamos, o que
interessa quando falamos de literatura: sempre será sobre o como, nunca
sobre o quê. A repulsa do marido, a pena do cunhado e o remorso
da irmã são movimentos esperados desde as primeiras páginas, mas como isso se
revela é o que vale a leitura de A vegetariana. O desfecho “em aberto” é
o que poderia incomodar alguns leitores, mas isso não revela falha no romance.
É por deixar o espaço em aberto que ele concentra e encontra mais fôlego para
discussões e revisitações, especialmente porque aqui, relembro, tem-se uma
história marcada por rompimentos constantes tanto físicos quanto psicológicos; cessar
de outra forma seria inadequado.
Assim, o que se observa é que a
simbologia da semente deixa de se aplicar somente à protagonista e faz com que
o livro atue como tal, esperando encontrar solo fértil no qual possa criar
raízes e assim manter-se em evidência. Afinal, cabe perceber que a confusão
mental da personagem não está alheia à realidade, talvez ela esteja mais
próxima do que os ditos equilibrados.
“[...] Yeonghye, [...] sem
conseguir oferecer resistência, os maus-tratos devem ter lhe atingido até o
fundo dos ossos.”
Com tantos traumas, rejeições e
abusos, aquilo que aparentemente seria um surto, talvez seja somente uma reação
de alguém que deseja ser passageiro diante da demanda de ser eternamente
explorada. Dilacerar-se daqueles ossos corrompidos pelo peso do suportar e, no
lugar deles, acrescentar raízes pareceu ser a única saída daquele ciclo de
abusos, ainda que ninguém nasça para semente.
Ver como isso se desenvolve
em uma articulação real porque confusa faz valer a leitura.
Notas
1 Todas as citações do romance foram retiradas da seguinte edição: KANG, Han. A vegetariana. Tradução de Jae Hyung Woo. São Paulo: Todavia, 2018.
2 Cf. AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Tradução de Cláudio Oliveira. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
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A vegetariana, Han Kang
Jae Hyung Woo (Trad.)
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