A Palavra, de Carl Theodor Dreyer
Por Solange Peirão
Para quem assiste ao filme do
dinamarquês Carl Theodor Dreyer, e tem alguma aproximação, seja por interesse
intelectual ou por opção religiosa, com o Evangelho Segundo São João, lembra de
imediato dos termos de abertura: “no princípio era o Verbo e o Verbo estava em
Deus e o Verbo era Deus”. Verbo ou
Palavra, expressões que remetem, ao mesmo tempo, à potência criadora de Deus e
à divindade de Cristo, o Verbo encarnado.
Particularmente, acredito que esse
partido estava mais presente para o cineasta, ao intitular esse belo A
Palavra, do que uma possível referência ao que é discursivo. À potência
criadora do discurso, sim, mas na perspectiva teológica que o evangelista
anuncia. Basta nos debruçarmos sobre o filme para confirmar essa suspeita.
Trata-se, aqui, de uma comunidade,
em reflexão e questionamento ferrenhos sobre a doutrina cristã e a instituição
que lhe dá suporte.
A família que centraliza a ação é
a do fazendeiro, o velho patriarca Morten Borgen. Seus três filhos expressam
bem o enfrentamento religioso: o mais velho, Mikkel Borgen, abdicou da crença,
é ateu, ou, no mínimo, um agnóstico; o do meio, Johannes Borgen, aparentemente
enlouqueceu, de tanto estudar o filósofo Kierkegaard, muito para responder às expectativas
paternas de se tornar um pastor; e o mais novo, Anders, ainda imaturo, nada
questiona.
Na outra ponta, o alfaiate Peter
Petersen transita na esfera da comunidade, fora do núcleo da fazenda, e é seu
líder religioso.
A aproximação entre ambas as
famílias se fará na medida em que o jovem Anders se apaixona por Anne, a filha
do alfaiate. E a pretendida união dos enamorados é o fio que dá andamento à narrativa
e expõe as fraturas religiosas que o roteiro aborda.
Kierkegaard e o surto psíquico
de Johannes
Johannes, em seus devaneios,
apresenta-se como a encarnação de Jesus Cristo; perambula pela casa, recitando
fragmentos do Evangelho, e fazendo premonições a respeito das situações
concretas que as famílias estão vivendo. Uma delas, as tratativas entre os
Borgen e os Petersen sobre a união do casal Angers e Anne; a outra, o parto do
terceiro filho de Mikkel e Inger, sua esposa, que se aproxima.
Os diálogos mais expressivos,
sobre o impedimento do casamento dos jovens, acontecem na casa do alfaiate,
entre ele, um religioso de cunho fundamentalista, e Morten, em cujo seio
familiar houve espaço para que as dissidências religiosas brotassem.
Nessa conversa é que um dos pontos
centrais da filosofia de Kierkegaard aparece: a fé. A fé como um longo caminho
de comunhão entre Deus e o homem. A fé como construção da confiança, mesmo
quando não se pode ver e prever. A fé como graça e não merecimento. A fé limitada
ao plano da transcendência ou voltada para a realidade, que alimenta o “seguir
adiante”. Enfim, aquele incompreensível que estabelece limites para a ação racional.
Nos diálogos entre Peter e Morten ela
se concretiza nas visões de cristianismo que eles expressam e se contrapõem: obstinação
e autoflagelo ou plenitude e vida; fé para todos os dias e para a alegria de
viver ou fé para o desejo e frio da morte.
Interessante é que a cena na casa
de Peter encerra-se com o telefonema da família Borgen, avisando que o parto de
Inger começou e corre riscos. Peter inadequadamente emenda, falando em provação
e morte que os Borgen estão prestes a viver. Morten revida, magoado, para reforçar
o caráter pessimista da fé de Peter e as desavenças entre eles.
Na casa dos Borgen, a agitação do parto
arriscado é marcada pela movimentação sonambular de Johannes que pressente a
morte de Inger e do filho. Profetiza sobre a falta de fé e sobre outro tema delicado
das Escrituras: o milagre.
Bonita a cena em que o discurso de
Johannes, tal qual uma cantilena, acusa a descrença, ao mesmo tempo em que
introduz os sinais que prenunciam a morte: um homem com foice a circular pelo
ambiente. A família tensa se irrita, e Mikkel será, mais tarde, responsável
pela ação que revela a morte em plenitude: parar o relógio que preenche o
silêncio da sala com seu tique e taque.
Outro contraponto expressivo, nesse
ambiente, são os diálogos entre o médico e o reverendo, a respeito do milagre. Parto
finalizado. Nos momentos iniciais, a impressão é a de que Inger está salva,
sobreviveu. Mikkel aciona o relógio. O médico, por sua vez, reitera que o seu
tratamento salvou a paciente. Ou teria sido um milagre? Aproveita, então, para
inquerir desafiadoramente o reverendo: acredita em milagres? E a resposta que
ouve é: antigamente, sobre certas circunstâncias, os milagres existiram, mas
hoje Deus não iria contrariar as leis da própria natureza que ele mesmo criou.
Ou seja, acredita, com restrições.
E, assim, se desnuda, mais uma
vez, um dos pontos que Kierkegaard duramente criticou nas igrejas, enquanto
instituição: distanciaram-se da verdade, da essência das Escrituras. A retórica
impertinente que, atualmente, o Papa Francisco denuncia, sob a ótica do
clericalismo.
A morte de Inger chega, porém, de
forma inesperada. E duas situações se colocam. Peter cai em si, recordando as
passagens bíblicas sobre o amor, o perdão e a reconciliação. Corre para junto dos
Borgen, para velar Inger, e permitir a união dos jovens enamorados.
A outra cena forte, e que conterá
o clímax da narrativa, é o retorno de Johannes à casa, de onde sumia, vez por
outra. Antes da fuga, escrevera um bilhete. Percebe-se, em sua postura, que
voltou a si; recuperou-se da aparente loucura, como previra o médico, certa
feita, no clima das discussões que contrapunham milagre e ciência: basta um
“choque no subconsciente” para trazê-lo à normalidade. As palavras do bilhete referem-se
a uma passagem central de Cristo com seus discípulos, quando insistem em
acompanhá-lo. Assim registrou-a João, em seu Evangelho: “Ainda estou um pouco
com vocês. Vocês me procurarão. Para onde eu vou, vocês não podem ir.
(Johannes, XIII, 33)”. Uma referência clara às oposições, morte e vida, morte e
ressureição, milagre, enfim?
Antes da fuga também, Johannes encontra
com a criança, filha de Inger e Mikkel, que é a única a levar a sério os
devaneios do tio. Em sua pureza infantil conversa com esse “Cristo familiar”,
sobre a provável morte da mãe. É um diálogo interessante sobre o que, de fato, mais
importaria: ter uma mãe viva, cuidando dos seus, e sofrendo os penares
terrenos, ou morta, intercedendo por eles, no céu? E aqui, volta à reflexão
algumas colocações que percorrem o pensamento de Kierkegaard: o milagre pode
existir sempre e não é próprio de circunstâncias passadas, como colocou o
reverendo; o constructo da fé é no quotidiano, e em caminho, e não com vistas à
eternidade.
Quando Johannes volta à casa, e o
velório de Inger está prestes a finalizar, as personagens centrais dessa longa reflexão,
filosófica e teológica, que é A Palavra, estão reunidas: as duas famílias, o
reverendo e o médico. Johannes, não mais travestido de Cristo (será?), agora
são, entra no recinto, para viverem o clímax.
São esses os diálogos que se
seguem. Reproduzo alguns trechos, mais pela força que apresentam, e para sintetizar,
convenientemente, o que essa complexa narrativa procurou explicitar:
Pai: Você recobrou o juízo?
Johannes: Sim, eu recobrei meu
juízo. Nenhum de vocês teve a ideia de pedir Inger de volta para Deus?
Pai: Johannes, agora você está
blasfemando contra Deus.
Johannes: Não, todos vocês
blasfemam, com sua fé indiferente. Se tivessem rezado para Deus, ele teria
ouvido suas preces.
Johannes para Mikkel: Meu querido
irmão, não há ninguém, entre esses crentes, que creia.
A criança: Depressa, tio!
Johannes: A criança... a melhor no
reino dos céus. Você acredita que posso fazer isso?
A criança: Sim, tio.
Johannes: Sua fé é grande. Sua
vontade deverá ser realizada. Olhe para sua mãe. Quando eu disser o nome de
Jesus, ela irá se levantar. Ouça-me, tu que estás morto...
Reverendo: Ele está louco!
Johannes: É loucura querer
recuperar a vida?
Johannes: Jesus Cristo, se é
possível, então, dê-lhe permissão para voltar à vida. Dê-me a Palavra. A Palavra
que pode fazer os mortos voltarem à vida.
A estética do filme
Se o tema possa ser indiferente a
muitos, o filme, por suas qualidades estéticas, certamente não será.
Antes de mais nada, trata-se da adaptação
de Dreyer para uma peça do teatrólogo e pastor luterano Kay Munk. O filme, de
1955, angariou vários prêmios: Leão de Ouro no Festival de Veneza e Globo de
Ouro.
É uma película em preto-e-branco,
de uma tonalidade de contrastes deslumbrantes.
Nas cenas iniciais, acontece a
primeira fuga de Johannes e a corrida dos familiares para encontrá-lo. Sobem uma
escada rodeada por trigais e por varais de roupa, nas laterais. Os varais,
quase imperceptíveis, passam a sensação de que uma carreira de roupas balança, solta,
ao vento. Essa imagem, que irá se repetir sempre nas fugas de Johannes, é de
beleza ímpar.
As fugas são sempre marcadas pela
busca dos familiares, percorrendo os campos de trigo. Na última, porém, em que Johannes
partiu com a saúde mental recuperada, é que toda a comunidade se junta, na procura.
Lembremos que essa fuga acontece depois do bilhete final, com as palavras joaninas
(buscarão e não me encontrarão; para onde vou, vocês não podem ir...), que claramente
transcendem um grupo familiar. Aqui, a indicação da busca ampliada se faz por imagens
que se sobrepõem de maneira delicada.
Talvez, devido ao fato de se
tratar de uma adaptação de peça teatral, o filme tenha seguido nessa direção.
São tomadas de alguns poucos recintos, por onde circulam e dialogam as
personagens. Daí a importância das janelas e portas que vão dar abertura para
os demais ambientes das casas, ou para o mundo exterior. As tomadas são quase
sempre frontais, privilegiando os atores que contracenam, com seus rostos
voltados, ora para a câmera, ora para os interlocutores entre si.
Há cenas memoráveis: a do culto na
casa do pastor Peter e a do velório na casa de Morten. O passeio da câmera dá a
impressão que estamos a olhar os pintores maneiristas ou barrocos, com as
figuras de traços fortes, colocadas em posição rigorosamente estudada, com o
belo efeito de sombras que esse preto-e-branco permitiu.
E por falar em contrastes, é marcante
a luz que ilumina a sala, no momento do discurso do reverendo, na cena do
velório.
Esses, são alguns dos aspectos
estéticos que valem a pena. O filme todo é de uma fotografia poderosa. Cinema,
enfim, que alimenta a alma e enche os olhos.
O filme está atualmente disponível
na plataforma de streaming do CineSesc-Cinemaemcasa. Trata-se de uma cópia digital,
produto da recente restauração do Instituto Dinamarquês de Cinema.
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