A. B. Yehoshua, o escritor que definiu a identidade de Israel
Por Juan Carlos Sanz
Abraham Bulli (sobrenome de
família) Yehoshua, o escritor menos conhecido e talvez o mais inovador de um
trio excepcional de contadores de histórias hebreus com projeção internacional,
junto com David Grossman e Amos Oz (falecido em 2018), morreu no dia 14 de
junho de 2022 em Tel Aviv. Yehoshua sempre esteve na vanguarda da criação
literária. Sua obra, traduzida para três dezenas de idiomas, aproxima a língua
hebraica da revolução empreendida por grandes romancistas do século XX, como
William Faulkner e James Joyce.
Defensor do direito do povo judeu
de viver em sua ancestral pátria nacional, ele definiu fielmente os dilemas da
identidade de Israel, ao mesmo tempo em que defendeu, a partir da esquerda
trabalhista e pacifista, uma solução para o conflito palestino. Durante meio
século apoiou a fórmula dos dois Estados, embora no final de sua vida tenha se
inclinado para uma confederação com plena igualdade de direitos.
“Ele nos ofereceu uma imagem
nítida, confiável e amorosa, às vezes também dolorosa, de nós mesmos: um
mosaico de sentimentos profundos”, disse o presidente de Israel, Isaac Herzog,
em um comunicado oficial sobre a morte do escritor. Entrevistado pelo jornal El
País em 2021, Yehoshua, que sempre assinava suas obras com as iniciais dos
dois primeiros nomes, explicou que sua grave doença o impedia de ter uma
conversa presencial. Ao desejarmos-lhe uma rápida recuperação, respondeu com
uma dúvida: “Não sei. Desde que minha esposa morreu [falecida há dois anos]
nada é como antes”. Em seu último romance, O túnel (DBA, 2022), ele
mergulhou na escuridão do Alzheimer, a meio caminho entre o realismo e o
simbolismo, para tentar esclarecer a identidade do Estado judeu. Também sobre a
sua própria identidade, tentando se redimir da desolação causada pela morte de
sua companheira, a psicanalista Rivka, com quem viveu por 56 anos.
Yehoshua nasceu no interior, em
uma das mais antigas famílias sefarditas de Jerusalém. “Meu pai falava ladino
com a família, mas com minha mãe, originária do Marrocos, ele se comunicava em
francês, então eu não aprendi judaico-espanhol”, lamentava pela ausência do
legado cultural paterno. “Depois da Guerra dos Seis Dias, Jerusalém perdeu a
sanidade”, costumava dizer esse ex-paraquedista, que lutou como reservista na
ofensiva que desencadeou a ocupação dos territórios palestinos, sírios e
egípcios em 1967. Dez anos antes, ele havia participado da operação militar
franco-britânica e israelense no Canal de Suez.
Formado em Literatura e Filosofia
na Universidade Hebraica de Jerusalém, fez pós-graduação em Literatura Francesa
na Sorbonne, mas Yehoshua viveu mais da metade de sua vida em Haifa, no norte
de Israel. Era professor da universidade daquela cidade portuária, que
considerava a mais “harmoniosa” de um país assolado por conflitos. Aí ele
escreveu quase toda a sua obra, como seu primeiro romance, O Amante
(1977, ainda inédito no Brasil), coroado com sucesso entre os leitores e em
suas versões para o cinema e o teatro.
Nesse horizonte emoldurado pelo
Monte Carmelo e pela Baía de São João de Acre, completou também Viagem ao
final do milênio (Companhia das Letras, 2001), narrado a partir de uma
ideia concebida durante um passeio pela Andaluzia. Neste romance descreve as
tribulações de um mercador sefardita de Tânger que viaja através do
Mediterrâneo para a Europa na véspera apocalíptica do ano 1000. Como em quase
todas as suas obras, casamento e amor são os principais eixos narrativos.
Com Um divórcio, segue o
fio dos dilemas sentimentais. O autor relata o retorno de um israelense maduro
que mora nos Estados Unidos, onde vai ter um filho com uma nova companheira,
para processar o divórcio com sua ainda esposa em Israel. O romance investiga
as duas crises que o marcaram: a vida pessoal e familiar e a complexa
existência no Estado judeu. “Em um único movimento das asas de sua imaginação,
ele nos mostra até que ponto a realidade em que vivemos em Israel é absurda e
banal”, escreveu David Grossman, agora o único sobrevivente do trio de gigantes
da narrativa em língua hebraica, sobre a maestria de Yehoshua, citado pelo The
New York Times. Premiado com o Prêmio Israel de Literatura e o Médicis na
França, ele também foi selecionado em 2005 como finalista na primeira edição do
prestigiado Man Booker.
Ele também foi um ativista
político proeminente e fundador da ONG pacifista israelense B’Tselem. “A
política dos assentamentos [judaicos na Cisjordânia] pode levar ao apartheid”,
disse ele ao jornal Haaretz em 2008. Uma década depois, afirmava que a
solução dos dois Estados já não era mais viável — “tornou-se apenas um slogan
para a comunidade internacional”, criticava — diante da expansão das colônias,
e apontava para uma fórmula confederal , em que coexistiam judeus e palestinos.
A morte do autor israelense que
narrava com alegorias os dilemas de um cotidiano compartilhado por milhões de pessoas
ao redor do mundo deixa órfãos os leitores que o admiravam por décadas. “Fui um
escritor que abordou todas as crises e conflitos na família, mas acreditou
firmemente no casamento”, disse na entrevista para El País. “A memória é
uma questão central da identidade judaica, que não se baseia em fatos
históricos, mas em uma mitologia, como a destruição do templo [de Jerusalém no
ano 70]”, argumentava sobre a fé de uma diáspora que por quase dois milênios em
cada refeição da Páscoa tem se desejado retorno “no próximo ano a Jerusalém”. “A
memória coletiva do povo judeu agora é dividida”, advertia, “só o esquecimento
nos liberta da tirania da memória”.
* Este texto é a tradução livre
para a matéria “Muere a los 85 años A. B. Yehoshua, el escritor que definió la
identidad de Israel”, publicada aqui, no jornal El País.
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