Tradução de “Uma cena de Fausto”, de Aleksandr Púchkin
Por Joaquim Serra
Uma cena de Fausto*
À margem do mar. Fausto e
Mefistófeles.
FAUSTO
Estou entediado, Demônio.
MEFISTÓFELES
Que fazer, Fausto?
Eis você metido em seu limite,
E dele ninguém ultrapassa.
Toda criatura sã está entediada:
Uma de preguiça, outra de trabalho
Quem acredita, quem perdeu a fé.
Aquela que a fartura não alcançou,
A outra que já muito se fartou.
Cada uma boceja, e vive —
E bocejando o caixão os espera.
Boceje você também.
FAUSTO
Conversa!
Encontre-me alguma maneira
de dissipá-lo.
MEFISTÓFELES
Esteja satisfeito
Com a evidência da razão.
Anote em seu álbum:
Fastidium est quies — tédio.
O descanso da alma.
Sou psicólogo... eis a ciência!
Diga, quando não esteve entediado?
Pense, procure. Pois aqui...
Quando adormecia sobre Virgílio,
E as bétulas excitavam sua mente?
Então, com rosas você coroava
De alegria as graciosas donzelas,
Cuja conduta estridente se dedicou,
Pelo ímpeto da ressaca vespertina?
Ou então, quando mergulhou
Em sonhos generosos,
No abismo negro das ciências?
Mas — eu me lembro — quando pelo tédio,
Como Arlequim, vindo do fogo,
Você finalmente me chamou.
Eu, o demônio mesquinho, serpenteei
Esforçando-me para alegrá-lo,
Levei-o a bruxas e a espíritos,
E para quê? Por uma bagatela.
Desejava glória — alcançou,
Queria se apaixonar – se apaixonou.
Da vida sacou os melhores débitos,
Mas era feliz?
FAUSTO
Chega!
Não irrite minhas úlceras com enigmas.
Na ciência profunda não há vida.
Amaldiçoei a falsa luz do conhecimento,
A glória... seu brilho casual,
Ardiloso. A honra mundana
Sem sentido, como num sonho... mas há
Benefício direto: a combinação
Das duas almas.
MEFISTÓFELES
E há o primeiro encontro,
Não há? E seria possível saber
Se é Margarida aquela
Que prefere lembrar?
FAUSTO
Ó sol milagroso!
Ó chama pura do amor!
Lá, lá — onde a sombra, onde o farfalhar das folhas,
Onde o jato do doce som
Lá, no gracioso seio
Com a cabeça em repouso,
Eu fui feliz...
MEFISTÓFELES
Pelos céus!
Você delira, Fausto, essa é a verdade!
Com indulgente lembrança
Você se engana.
Não fui eu com meus esforços
Quem proporcionou o milagre da beleza?
E à meia-noite profunda
Eu a trouxe para você? Pois então,
Com os frutos do meu trabalho,
Divertindo-me como um mortal,
Como vocês dois — eu me lembro de tudo.
Quando sua beleza
Estava plena, em êxtase,
Você, com a alma inquieta,
Imergia em pensamentos
(E nós provamos a você,
Que pensamentos são a semente do tédio).
E saberia dizer, meu filósofo,
O que você pensava então,
Quando ninguém tinha em mente?
Devo contar?
FAUSTO
Diga. E então?
MEFISTÓFELES
Você pensava: meu cordeiro
obediente!
Com avidez ansiei por você!
Com astúcia desejei uma donzela singela
Devaneios de um coração indignado!
O amor espontâneo, sem interesse
Inocente, ela entregou...
Por que ainda meu peito está cheio
De angústia e do tédio odioso?
Em sacrifício ao meu capricho
Contemplo-a, intoxicado de prazer,
Com desgosto insuperável:
Eis do nada a imprevisível tolice,
E empenhado em um ato mau,
No bosque jaz um pobre-diabo,
O corpo abatido, esfolado —
E na beleza corrupta,
Rapidamente saciado,
A libertinagem espeita, assustada...
Depois de tudo isso
Você tirou uma conclusão.
FAUSTO
Suma, criatura dos infernos!
Para longe dos meus olhos!
MEFISTÓFELES
Acalme-se. Dê-me mais alguma tarefa:
Ocioso, você sabe, à sua volta
Atrevo-me a ficar.
Não há tempo a perder à toa.
FAUSTO
O que vem lá? Diga
MEFISTÓFELES
Um navio espanhol de três mastros,
Com destino certo à Holanda:
Trezentos rufiões a bordo,
Dois macacos, baús de ouro,
E não menos caro chocolate,
Além de uma doença dos nossos dias
Já contraída por você.
FAUSTO
Afogue tudo.
MEFISTÓFELES
Agora.
(desaparece)
* O texto original pode ser consultado aqui.
Nesta cena de Fausto, temos
um exemplo do empréstimo que Aleksandr Púchkin faz da literatura mundial. O
pacto selado entre Fausto e Mefisto, para o escritor russo, adquire traços do
tédio que faria um longo caminho pela literatura do século XIX. E Púchkin, que
não leu a segunda parte da tragédia de Goethe, já identifica no assunto
fáustico a destruição que vai tomar lugar principalmente em Fausto II.
Aquele fomentador, criador
visionário, que ironicamente vislumbra o mundo da igualdade quando está cego,
aqui está preocupado com a monotonia dos dias, ganhando aspectos da própria
aristocracia ao redor de Púchkin. O leitor de Púchkin sente falta nesta Cena
daquele narrador intruso, que remexe na vida e na alma de suas personagens em Eugênio
Onêguin. Esse componente essencial que enforma o modo próprio do autor em
narrar a vida russa, dá lugar aqui ao diálogo por vezes cínico entre Fausto e
Mefisto.
Para esta tradução, optamos por
uma versão mais próxima da prosa.
Fausto. Ilustração: Harry Clarke. |
Eis você metido em seu limite,
E dele ninguém ultrapassa.
Toda criatura sã está entediada:
Uma de preguiça, outra de trabalho
Quem acredita, quem perdeu a fé.
Aquela que a fartura não alcançou,
A outra que já muito se fartou.
Cada uma boceja, e vive —
E bocejando o caixão os espera.
Boceje você também.
Encontre-me alguma maneira
de dissipá-lo.
Com a evidência da razão.
Anote em seu álbum:
Fastidium est quies — tédio.
O descanso da alma.
Sou psicólogo... eis a ciência!
Diga, quando não esteve entediado?
Pense, procure. Pois aqui...
Quando adormecia sobre Virgílio,
E as bétulas excitavam sua mente?
Então, com rosas você coroava
De alegria as graciosas donzelas,
Cuja conduta estridente se dedicou,
Pelo ímpeto da ressaca vespertina?
Ou então, quando mergulhou
Em sonhos generosos,
No abismo negro das ciências?
Mas — eu me lembro — quando pelo tédio,
Como Arlequim, vindo do fogo,
Você finalmente me chamou.
Eu, o demônio mesquinho, serpenteei
Esforçando-me para alegrá-lo,
Levei-o a bruxas e a espíritos,
E para quê? Por uma bagatela.
Desejava glória — alcançou,
Queria se apaixonar – se apaixonou.
Da vida sacou os melhores débitos,
Mas era feliz?
Não irrite minhas úlceras com enigmas.
Na ciência profunda não há vida.
Amaldiçoei a falsa luz do conhecimento,
A glória... seu brilho casual,
Ardiloso. A honra mundana
Sem sentido, como num sonho... mas há
Benefício direto: a combinação
Das duas almas.
Não há? E seria possível saber
Se é Margarida aquela
Que prefere lembrar?
Ó chama pura do amor!
Lá, lá — onde a sombra, onde o farfalhar das folhas,
Onde o jato do doce som
Lá, no gracioso seio
Com a cabeça em repouso,
Eu fui feliz...
Você delira, Fausto, essa é a verdade!
Com indulgente lembrança
Você se engana.
Não fui eu com meus esforços
Quem proporcionou o milagre da beleza?
E à meia-noite profunda
Eu a trouxe para você? Pois então,
Com os frutos do meu trabalho,
Divertindo-me como um mortal,
Como vocês dois — eu me lembro de tudo.
Quando sua beleza
Estava plena, em êxtase,
Você, com a alma inquieta,
Imergia em pensamentos
(E nós provamos a você,
Que pensamentos são a semente do tédio).
E saberia dizer, meu filósofo,
O que você pensava então,
Quando ninguém tinha em mente?
Devo contar?
Com avidez ansiei por você!
Com astúcia desejei uma donzela singela
Devaneios de um coração indignado!
O amor espontâneo, sem interesse
Inocente, ela entregou...
Por que ainda meu peito está cheio
De angústia e do tédio odioso?
Em sacrifício ao meu capricho
Contemplo-a, intoxicado de prazer,
Com desgosto insuperável:
Eis do nada a imprevisível tolice,
E empenhado em um ato mau,
No bosque jaz um pobre-diabo,
O corpo abatido, esfolado —
E na beleza corrupta,
Rapidamente saciado,
A libertinagem espeita, assustada...
Depois de tudo isso
Você tirou uma conclusão.
Para longe dos meus olhos!
Ocioso, você sabe, à sua volta
Atrevo-me a ficar.
Não há tempo a perder à toa.
Com destino certo à Holanda:
Trezentos rufiões a bordo,
Dois macacos, baús de ouro,
E não menos caro chocolate,
Além de uma doença dos nossos dias
Já contraída por você.
Comentários