Tolstói ou Dostoiévski, de George Steiner: a crítica literária como dívida de amor
Por Pablo Sol Mora
George Steiner. Foto: Contacto Photo |
A vocação de crítico é misteriosa.
Ninguém, como gracejava François Truffaut a respeito da crítica
cinematográfica, declara aos nove anos: “Papai, quero ser crítico.” O que nos
move a escrever sobre o que lemos? Ou melhor, por que não tentar ser um criador
ou ser, simplesmente, um leitor? Qual o sentido? Para que serve a crítica?
Serve a crítica? As perguntas são inescapáveis para quem faz dela parte
fundamental de sua atividade literária, sobretudo para quem ela representa sua
principal ou única atividade.
As confusões e mal-entendidos em
torno da crítica são variados e persistentes. Talvez o maior seja o de que a
crítica se ocupa, fundamentalmente, de censurar, no sentido de indicar defeitos
e erros, de desaprovar; que ela é ou precisa ser negativa. O crítico como o
ressentido estraga-prazeres da literatura. É claro que a crítica deve apontar
os aspectos fracos de uma obra quando de fato os encontra e argumentar a
respeito deles, mas é uma concepção demasiado pobre e mesquinha pensar que ela
se ocupa somente (ou principalmente) disso. A melhor crítica destina-se a outra
coisa, não ao elogio infundado e hiperbólico, que seria o defeito contrário do
anterior, mas sim à interpretação e ao comentário de uma obra completa, de
preferência uma grande obra, que verdadeiramente mereça o esforço crítico. Se
isto se cumpre, o mais provável é que o crítico sinta uma genuína admiração por
tal obra e deseje compartilhá-la com outros. E não só isso, mas, ao se pôr a
serviço do texto (e o melhor crítico, na minha opinião, é sempre um servidor e
um mensageiro), lançará mão de todos os recursos a seu dispor para fazer com
que ele seja melhor compreendido, para aclará-lo e iluminá-lo. O crítico é um
companheiro de leitura que, no melhor dos casos, transforma-se em maestro.
Meu conceito de crítica foi
marcado de forma definitiva pela leitura da famosa primeira linha do Tolstói
ou Dostoiévski de George Steiner, traduzido por Agustí Bartra e publicado
pela Era (México, 1968): “A crítica literária deveria surgir de uma dívida de
amor”.1 Eu a aceitei de imediato e praticamente desde então soube
que, como crítico, iria me dedicar sobretudo a escrever sobre obras e autores
que me entusiasmaram, para tentar compreendê-los melhor e para compartilhá-los
com outros, e que não perderia mais tempo lendo má literatura para depois
perder mais tempo escrevendo que é má, tarefa por certo necessária, porém
ingrata, e que de bom grado deixo a outros críticos.
O livro em questão foi comprado
por meu pai e tem seu nome escrito em diagonal num dos cantos da primeira
página: “Manuel Sol T.” Atualmente já não conta com capa nem contracapa,
restando apenas a lombada, sulcada e descolorida, e um dia desses deveria
mandar encaderná-lo. Recordo-me de que quando tentei lê-lo pela primeira vez,
aos dezessete ou dezoito anos, tive que parar nos primeiros capítulos. A razão
era muito simples: Steiner, com toda a naturalidade, citava ou aludia a dezenas
de autores e obras que eu não havia lido, sobretudo os principais romancistas e
romances do século XIX. Não eram referências casuais, mas indispensáveis para
acompanhar a argumentação. Parei e disse a mim mesmo que leria todos esses
livros ou a maioria, pelo menos, para então poder lê-lo de forma adequada. De
certa forma posso dizer que li boa parte dos grandes romances novecentistas
para poder ler Tolstói ou Dostoiévski.
George Steiner sempre me pareceu
um modelo de crítica. Pertenceu, receio, a uma espécie em vias de extinção, e
agora que morreu o mundo da leitura se tornou mais triste. Nascido em Paris em
1929 no seio de uma família judaico-vienense, Steiner teve uma educação
poliglota em francês, alemão e inglês, línguas a que logo acrescentaria o
italiano (e o grego e latim clássicos, que estudaria na escola e na
universidade). Essa, sem dúvida, é a chave que lhe permitiu o domínio de
praticamente toda a grande literatura ocidental (a única das principais línguas
europeias que desconhecia era, de fato, o espanhol). Foi aluno e depois
professor nas principais universidades norte-americanas e europeias — Harvard,
Chicago, Princeton, Oxford, Cambridge — para logo estabelecer-se na
Universidade de Genebra, onde lecionou literatura comparada. Esta é outra das
facetas que me cativa em Steiner, a de professor, não menos importante que a de
crítico. Poucos como ele refletiram tão lucidamente sobre o que significa dar
aulas, em especial aulas de literatura, como se vê em Lições dos mestres,2
livro no qual reúne as conferências Norton que deu na Universidade de Harvard
sobre o ato de ensinar. Entre suas outras obras, destacaria A morte da
tragédia,3 ensaio sobre por que a tragédia enquanto gênero
parece impossível em nossa época; Antígonas, um compêndio do mito desde
de Sófocles até nossos dias; Presencias reales, que postula que apenas a
partir do reconhecimento do transcendente se pode alcançar certas alturas
artísticas; Nenhuma paixão desperdiçada,4 compilação de
ensaios; Errata, sua autobiografia, e seus livros de entrevistas, em
especial suas conversas com Ramin Jahanbegloo (a sabedoria e o caráter de
Steiner encontram na conversa um meio ideal de manifestar-se).5
Tolstói ou Dostoiévski foi o
primeiro livro de Steiner, escrito antes de completar trinta anos, o que causa
certo calafrio se consideramos por um momento não a agudeza crítica que revela,
mas somente a abundância de leituras. As primeiras páginas são uma declaração
de princípios, quase um manifesto crítico. Além de defender o entusiasmo e a
admiração como pontos de partida da crítica, adverte sobre um fenômeno que
apenas começava quando o livro foi publicado e que só se intensificou: a
relativização dos valores estéticos e literários, a contestação da existência
efetiva de grandes autores e grandes obras, a rebelião contra
toda ideia de hierarquia literária, a tentação populista e politicamente
correta de fingir que todas as obras e todos os autores são igualmente dignos
de atenção e estudo. Atualmente, em certos meios acadêmicos (sobretudo
norte-americanos, cuja influência se faz sentir nos demais), o jovem que quer
se dedicar a Shakespeare, Dante ou Cervantes quase precisa pedir desculpas.
Steiner reivindica o que chama de antiga crítica, a que nasce da
admiração, a que se rege por critérios estéticos, a que sempre considera a
literatura em contexto histórico, a que possui alcance filosófico.
A tese principal do livro é que
Tolstói e Dostoiévski, em última instância, representam visões contrastantes do
mundo — sobretudo, duas aproximações radicalmente opostas ao divino — e que, ainda
que seja possível admirar os dois, não é possível estar com ambos por igual.
Tratar-se-ia de um desses dilemas kierkegaardianos: ou um ou outro. De um lado
o poeta épico, o racionalista, o homem de saúde olímpica; de outro, o poeta
trágico, o visionário, o doente atormentado. O contraste é legítimo porque sua
estatura artística é equiparável.
Contudo, o que se propõe como um
estudo de dois autores é na verdade um estudo completo do romance realista do
século XIX e, além disso, da tradição literária ocidental desde Homero e os
trágicos gregos até seus herdeiros russos. Isso é possível graças à vasta
cultura literária de Steiner, mas, acima de tudo, à sua inteligência crítica, à
sua capacidade de estabelecer relações, de observar afinidades e diferenças, e
de ler escrupulosamente um texto. Não é preciso, para analisar uma obra
literária, de uma “teoria” que “aplicar”, triste confusão que tem feito
estragos na crítica literária acadêmica, e o que daí resulta, com frequência, é
a incapacidade de pensar por conta própria e dizer algo relevante sobre a obra
em questão, algo que verdadeiramente nos faça melhor compreendê-la. Steiner
estuda a literatura a partir da literatura e, de fato, graças a seu esmerado
cultivo da prosa, consegue que a crítica se torne parte dela, ainda que de
forma ancilar.
Quando se completa esse tour de
force que é a leitura de Tolstói ou Dostoiévski, o leitor fica com a
impressão — que deveria ser a pedra de toque de todo texto crítico — de ter
ampliado sua compreensão das obras, de ter enriquecido seu entendimento, de que
elas se revelaram ainda mais complexas e profundas do que se pensava. A grande
obra crítica é aquela que nos mostra coisas que não havíamos visto, verdades
que não havíamos pensado, e que potencializa o significado de uma obra
literária.
Tolstói ou Dostoiévski foi uma das
obras que definiu minha vocação de crítico. Desde então, praticamente cada
texto que escrevo almeja pagar uma dívida de amor e admiração.
Notas da tradução:
1 Edição brasileira: STEINER,
George. Tolstói ou Dostoiévski. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
2 Edição brasileira: STEINER,
George. Lições dos mestres. Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de
Janeiro; São Paulo: Record, 2018.
3 Edição brasileira: STEINER, George.
A morte da tragédia. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo: perspectiva,
2006.
4 Edição brasileira: STEINER,
George. Nenhuma paixão desperdiçada. Tradução de Maria Alice Máximo. Rio
de Janeiro; São Paulo: Record, 2018.
5 Edição brasileira: JAHANBEGLOO,
Ramin. George Steiner: à luz de si mesmo. Tradução de Fany Kon e J.
Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “Tolstoi o Dostoyevski, de George Steiner: la crítica literaria
como deuda de amor”, publicado aqui, em Letras Libres em 23 mar. 2022:
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