Todos somos “A pior pessoa do mundo”
Por Claudia Lorenzo
Precisamos parar de chamar certos
filmes de “comédias românticas”. Harry e Sally, feitos um para o outro é
uma comédia romântica. Núpcias de escândalo é uma comédia romântica. Annie
Hall é uma comédia romântica. O norueguês Joachim Trier declarou que a screwball
comedy americana serviu de inspiração para seu novo filme, A pior pessoa
do mundo, e provavelmente seus personagens ou seus arcos remetem a vagas
lembranças dos enredos dessas histórias. Mas se isso não te faz rir, ou até
mesmo estourar de gargalhadas, não é screwball, não é comédia. É apenas
romântico. E nada mais. O gênero pode ser reivindicado de fora — e mais, o
gênero deve ser reivindicado do lugar que é, porque o pobre está um tanto em
crise — sem assumir que sua história faz parte dele.
A pior pessoa do mundo,
indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Roteiro Original,
apresenta a história de Julie, uma jovem de vinte anos que, ao longo de vários
anos, se apaixona, se desapaixona e descobre que muitas vezes encontrar a si
mesmo, descobrir como amar a si mesmo está ligado a saber amar. Mas também
aprende que se apaixonar não depende de saber amar, ou seja, o primeiro não vem
como consequência do segundo. Alguém pode se apaixonar quando seus sentimentos
ainda estão desconexos, quando sua maturidade emocional está prestes a queimar,
quando sua autoestima está se arrastando no chão e sua rotina parece uma bola
de pelo de gato. É justamente sobre isso que este filme fala, o que fazemos com
todas as coisas que fervem dentro de nós quando não sabemos como controlá-las.
Talvez isso também explique por
que tantos espectadores, elogiando a intenção, enfatizaram o fato de que, como
diz o título, o filme não nos obriga a amar Julie, a gostar de nós. Ressalta-se
que não se busca nossa simpatia ou nosso afeto. O fato é que, na realidade,
além desse título, não há razão para não gostarmos de Julie. Ela não é uma
pessoa má, ela não age desonestamente — embora sua maneira de definir as traições
seja questionável — e sim, ela é imperfeita, mas não é desumana. Julie não quer
se machucar. Nenhum de nós quer isso. A maioria dos seres humanos provoca
dramas, dores e tragédias apesar de si mesmos. As pequenas coisas da vida
cotidiana, as coisas que acontecem, as pessoas cujos corações acidentalmente
quebramos, nem sempre indicam uma atitude vil por parte do provocador, mas
muito pelo contrário. Todos nós, mesmo que tentemos evitá-lo, fazemos algum mal.
O filme apresenta uma história de
amor, diferente e própria, que tenta responder, em parte, a esta pergunta: por
que nos apaixonamos — ou para quê — se há uma grande probabilidade de sairmos machucados?
O que tem aquela pessoa com quem coincidimos de repente, aquela pessoa que não
conhecíamos há algumas horas e nada aconteceu, porque gozávamos de uma vida
funcional, para virar tudo o que temos de cabeça para baixo?
Em uma cena do filme juvenil A
culpa é das estrelas, a protagonista, doente de câncer, lamenta ter nascido
e feito sua família passar pela provação de vê-la encadear tratamento após
tratamento esquivando-se da morte. Nesse momento, seu pai a leva no reservado e
esclarece que “aconteça o que acontecer, valerá a pena passar o tempo que tivermos
com você”.
Agarrar-se a essa crença, diante
da morte ou de qualquer um dos finais que a vida nos apresenta, é o que move o
amor, e não apenas o amor romântico. As paixões nunca têm garantias
permanentes, mas nos lançamos como kamikazes porque a alternativa, não sentir
nada, não viver nada, é muito mais triste.
Ao longo de doze capítulos, um
prólogo e um epílogo, o filme conta-nos que Julie vive em Oslo, que a sua
identidade é definida pela sua profissão, que, paradoxalmente, essa profissão
não é definida, e que ela é uma monogâmica apaixonada série. Um dia ele conhece
Aksel. Eles se apaixonam, vão morar juntos e planejam uma vida em comum. Eles
estão separados por uma década, e o conceito de futuro parece ser diferente
para cada um deles, mas eles se amam, cuidam um do outro, protegem um ao outro
e têm uma rara conexão mental e intelectual. Outro dia, Julie, inquieta,
confusa, sem saber o que a está incomodando, entra sorrateiramente em um
casamento e conhece Eivind. A intimidade instantânea que é gerada entre os dois
é aterrorizante e desejável. Isso levanta respostas para as perguntas de Julie?
Ela não sabe, mas quer descobrir.
A pior pessoa do mundo dói
profundamente. É um relato cru, triste e verossímil do belo e do feio dos
relacionamentos. No entanto, pouco antes do momento mais difícil, Trier
constrói uma realidade alternativa que permite que a luz invada a vida de sua
protagonista — e do espectador. Em uma cena tão retumbante quanto os
sentimentos de Julie, Oslo, mais um ator da história, coloca-se a serviço da
personagem e para, metafórica e realmente, para que ela possa realizar seu
sonho.
Embora não seja uma comédia, é uma
história romântica contada, de vez em quando, com a leveza proporcionada pelas
asas da ilusão e das expectativas ainda a serem cumpridas. Julie é Renate
Reinsve, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Solta, bela, luminosa,
expressiva, introspectiva e profundamente sincera, Reinsve é acompanhada por
Ander Danielsen Lie, que constrói um tenro e onipresente Aksel, e Herbert
Nordrum, um surpreendente e ingênuo Eivind. A química entre os casais, a
cumplicidade, a diferença na forma como se relacionam, leva a uma narração de
personagens que nem a história nem o espectador julgam. Todos nós já fomos, em
momentos diferentes, cada um deles.
Mas no final, o enredo e o
resultado pertencem a Julie. Porque a busca que se faz é pessoal e, também,
porque, no fundo, ela luta, como quase todo mundo, para não ser a pior pessoa
do mundo.
* Este texto é a tradução livre para “Todos somos ‘La peor persona
del mundo’”, publicado aqui, em Jot Down.
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