Pérez Galdós não foi o gigante moderno
Por Domingo Rodenas de Moya
Benito Pérez Galdós, Areneros (ca.1905) |
Há um valor agregado na crítica
que um escritor faz a outro. Não me refiro àquela que se limita à escassa
revisão de novidades, mas à que se desdobra em um ensaio de interpretação. Não
são muitos os grandes autores que dedicaram parte de seu tempo à elucidação de
um universo literário alheio, e entre eles destaca-se com relevância Mario
Vargas Llosa. Seus estudos sobre Gabriel García Márquez, Victor Hugo ou Juan
Carlos Onetti são excelentes em suas diferentes abordagens, desde a mais
acadêmica História de um deicídio (1971) e o quase programático A
orgia pérpetua (1975), sobre Flaubert, até A velha utopia (1996) ou A
viagem pela ficção (2008) sobre José María Arguedas e Onetti,
respectivamente. Em todas essas aproximações brilha o intérprete penetrante que
oferece o espetáculo de uma leitura travada corpo a corpo. Vargas Llosa
trabalha com obras que por algum motivo o desafiaram, sejam monumentos
romanescos como Madame Bovary ou Os miseráveis, ou trabalhos
completos como os de García Márquez ou Onetti. É o caso de La mirada quieta
(O olhar imóvel, em tradução livre para o português), livro no qual empreende a
leitura de toda a obra, narrativa e teatral, de Benito Pérez Galdós.
O trabalho é generoso e
impressionante. Para os leitores de Galdós, e do próprio Vargas Llosa, o livro
é rico, pois, como era de se esperar, nele fala tanto sobre escritor canário
quanto de si mesmo, ou seja, de sua concepção de literatura e, especificamente,
das demandas do romance moderno. Entrelaçada, então, ao escrutínio da
trajetória galdosiana, há uma poética que muitas vezes se expressa em termos professorais:
o que é certo e o que é errado, o melhor e o pior. E como em todos os casos do
tipo, o leitor pode concordar ou discordar. É uma percepção composta essencialmente
por avisos e alertas ou, por outras palavras, pelas deficiências e falhas que
diminuem a estatura de Galdós. Os acertos e sucessos também são sublinhados,
muitos, mas o elogio é feito sem alarde ou hipérbole, com as quedas e
insuficiências à vista, partindo do pressuposto de que Galdós não pode ser
comparado aos grandes revolucionários do romance oitocentista como Balzac, Dickens,
Dostoiévski ou, sobretudo, Flaubert, cuja hiperconsciência técnica constitui um
divisor de águas entre o romance antigo e o moderno. Para Vargas Llosa, Galdós,
mesmo sendo um grande escritor, ficou do outro lado.
As razões de sua pré-modernidade
são desdobradas no ensaio romance a romance, em ordem cronológica, de A
sombra (1870) ao “simpático nonsense” de O cavaleiro encantado
(1909). A principal dessas razões é não ter entendido a lição flaubertiana de
que o primeiro e mais decisivo personagem da narrativa é o narrador, sua
posição e distância da história que está sendo contada. Contra o princípio de
abstenção de Flaubert, Galdós interfere, julga suas criaturas e zomba delas
como um marionetista astuto. Essa falha é acompanhada pela prolixidade que
dilata as descrições e certos diálogos a ponto de obscurecer a compreensão, a
má organização da matéria narrativa, a dispersão de temas que prejudica o
efeito unificador da ação principal e, por fim, a linguagem utilizada, sempre à
cata das “grandes palavras”. Trata-se, para Vargas Llosa, de pura retórica,
verborragia oca, com profusão de adjetivos, que buscam elevar o tom poético ou
o prestígio intelectual da frase e acabam por arruiná-la, tão abundante, por
exemplo, em Miau (1888). Alguns desses defeitos poderiam ter sido
resolvidos com uma reescrita, mas Galdós tendia a aceitar a primeira versão
como válida depois de corrigi-la longamente, ainda que pudesse retornar ao
texto anos depois.
São muitos, porém, os romances em
que esses traços pré-modernos se desvanecem ou desaparecem, embora neles
persista o olhar imobilizador e estático que Vargas Llosa atribui a Galdós.
Assim, o escritor peruano elogia duas obras-primas: Fortunata e Jacinta (1887)
e Torquemada no purgatório (1894), e muito perto delas A deserdada
(1881), Tristana (1892) e Misericórdia (1897). Ele também aprecia
as qualidades de Tormento (1884) e especialmente do díptico experimental
A incógnita e Realidade (ambos de 1889), além de salvar, com
ressalvas, O amigo Manso (1882). Este cânone galdosiano deve ser
completado com alguns Episódios nacionais, aos quais é dedicado um
capítulo conjunto a textos como Trafalgar, Juan Martín o obstinado
ou O terror de 1824, e alguma peça teatral, como Electra, a joia
humorística Pedro Minio (1908), a esquisitice mitológica Alcestes
(1914) e até mesmo o divertido O tacanho Salomão (Sperate miseri) (1916).
Este passeio sem preconceitos por
toda vasta obra Galdós (o trabalho jornalístico e alguns ensaios ficam de fora)
pode servir como um guia prático de leitura e alimentar a inesgotável
controvérsia sobre a modernidade e universalidade do escritor canário, cuja primeira
parte do seu monumento foi demolida há alguns anos pelas espadas de Antonio
Muñoz Molina e Javier Cercas. Vargas Llosa poderia ser censurado, em vão, por
sua leitura ser tendenciosa ou, mais significativamente, por negligenciar
virtudes positivas de que, sim, são modernos, mesmo que alguns problemas (o uso
de pronomes enclíticos) não esteja em questão, mas suas opiniões são baseadas
em argumentos tão precisos quanto irrefutáveis, como a ideia de que Galdós
estava sobrecarregado de uma preocupação militante com os problemas da Espanha
de seu tempo e talvez tendo que viver profissionalmente de sua escrita. O
Galdós que resulta deste ensaio é um gigante literário um tanto desajeitado que
produziu alguns romances extraordinários em meio a uma vasta quantidade de
prosa narrativa já agora desgastada pelo tempo.
* Este texto é a tradução de “Para
Vargas Llosa, Pérez Galdós no fue el gigante moderno que nos cuentan”, publicado
aqui, em El país.
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