Nove ruba’iyat de Umar-I Khayyam (Omar Khayyam)

Por Pedro Belo Clara

Omar Khayyam. Ilustração: Adelaide Hanscom/ Wikipedia.


 
 
I.
 
Coração ao alto! Passemos pelas cordas de harpa com as mãos (!)
Deixemos cair o bom nome bebendo vinho (!)
O tapete de orações vendemos por uma taça de vinho (!)
Quebremos o frasco da vergonha e da honra (!)
 
 
II.
 
Bebe vinho, somente ele dissipa aflições,
Deixando perturbada a alma do inimigo.
De que serve estar sóbrio? A sobriedade é fonte de pensamentos vãos,
Tudo neste mundo passa sem deixar rastro.
 
 
III.
 
Somos marionetas conduzidas pelo céu,
Não duvides da verdade desta estrofe.
Brincamos até nos permitir o céu,
Depois ficamos arrumados na caixinha.
 
 
IV.
 
Quando deitamos o último suspiro,
Colocarão tijolos na campa das nossas cinzas.
Das nossas cinzas moldarão tijolos
Para cobrir as campas daqueles que virão depois.
 
 
V.
 
De onde viemos? Para onde nos dirigimos? Qual é a razão de ser?
Para nós a vida é ininteligível.
Oh, tantas almas imaculadas se transformaram em cinza e pó sob a abóbada celeste!
Diz-me, onde estará o fumo?
 
 
VI.
 
Enigmas da eternidade não sabes, nem tu nem eu,
Não conseguimos lê-los, nem tu nem eu.
Discutimos perante uma cortina desconhecida,
Quando chegar a hora de descer, não ficarás nem tu nem eu.
 
 
VII.
 
Liberta-te por momentos dos anseios,
Respira, larga os grilhões de tristeza.
Se fosse constância a essência do mundo,
Não chegaria a tua vez de nascer.
 
 
VIII.
 
A vida passa como um momento,
Valoriza-a, busca nela o prazer.
Da maneira como viveres a vida assim passará.
Não esqueças! Ela é a tua criação.
 
 
IX.
 
A sabedoria não me era alheia,
Poucos enigmas restaram por explicar.
Lançando o olhar para a minha vida que passou,
O que sei eu? Não sei nada.
 
 
______
 
Omar Khayyam foi um conceituado matemático, astrónomo, historiador, poeta e filósofo persa, nascido em Nishapur, no actual Irão, em 1048.
 
Desde cedo lhe detectaram talentos invulgares. Não tendo nascido em berço de ouro, os seus primeiros tutores recomendaram-lhe a um famoso Imã, professor de grande renome da época, que somente tutoreava crianças pertencentes à alta nobreza. Notando as capacidades do jovem Omar, aceitou-o como discípulo. Com o decorrer dos anos, Omar desenvolveria uma amizade notável (e recíproca) com este professor.
 
Após a sua formação inicial, começa a deambular por diversos territórios com vontade de desenvolver os seus conhecimentos nas mais diversas áreas. Graças aos bons desempenhos, Omar impressiona ao ponto de chamar a si a atenção dos indivíduos dotados de poder político. Começa assim por traçar o seu trabalho na área da matemática, aquela onde talvez mais se tenha destacado, sob o seu apoio e protecção, construindo um legado que seria de importância extrema para futuros desenvolvimentos da disciplina. Nos anos seguintes continuará a viver sob esse regime de mecenato, desfrutando dum tipo de segurança que era a sorte de muito poucos.
 
Depois do assassinado dum patrono seu, o sultão do Império Seljúcida1, por volta de 1092, Omar viu-se subitamente fora das graças da corte. Tentando apaziguar um ambiente nada favorável à sua pessoa, decide empreender uma peregrinação até Meca, a cidade sagrada do Islão. Porém, certos historiadores alegam que a queda do seu prestígio deveu-se não tanto ao acto criminoso em si, mas principalmente às suas manifestações públicas, cada vez mais frequentes, de cepticismo contra certos parâmetros da religião islâmica. Sendo conhecida a sua descendência de crentes do Zoroastrismo2, facilmente assentou sobre a sua postura crítica o rótulo de herege.
 
Contudo, não tardou que o novo sultão o convocasse à corte, oferecendo-lhe o posto de astrólogo. Omar aí permaneceu nos anos seguintes, até por fim se ver forçado a regressar à terra natal por motivos de saúde. Terá vivido os seus últimos anos em regime de reclusão. 
 
É óbvio que estamos perante um homem de intelecto brilhante, que deixou várias contribuições para a sociedade da época, algo que os Homens de hoje ainda usufruem: tanto o calendário persa, cujas bases Omar lançou, como o cálculo da duração em dias de um ano, precisamente o mesmo valor de que actualmente nos valemos: 365 dias, resultado esse extraordinariamente acurado para as ferramentas de cálculo do século XI (obteve um desvio inferior a um microssegundo!)
               
Naturalmente, há ainda a destacar a sua obra poética. Omar ficou conhecido por compor ruba’iyat, que significa, literalmente, “quadras”. Não é certo que se tenha dedicado afincadamente à sua elaboração, muitos até colocam a hipótese de a prática poética ser um mero escape seu, uma forma de usufruir dos momentos de lazer. No entanto, Omar, ainda em vida, começou a ser considerado um cientista e poeta. (Mais tarde, seria respeitosamente designado de “Rei dos Sábios”, tão variada era a sua paleta de interesses e versáteis as suas competências, ainda que a sua figura dividisse muito as opiniões da época.)
 
Como é usual em casos análogos, a sua obra poética somente atingiu notoriedade na outra metade do mundo muito mais tarde do que na sua região berço: em 1859, quando Edward Fitzgerald publica a primeira tradução em língua ocidental das famosas quadras. O sucesso foi imediato. Já em língua portuguesa a difusão foi muito mais tímida, datando de 1927 a primeira colectânea, elaborada por Gomes Monteiro. Ainda assim, foi a tempo de influenciar um dos maiores nomes da literatura lusófona: Fernando Pessoa — que elaborou um conjunto de poemas fortemente inspirados nas quadras de Omar, um trabalho inacabado que só muito mais tarde seria descoberto no seio do seu espólio.
 
Décadas depois das primeiras traduções ocidentais, e após estudos mais ponderados e profundos, muitos dos poemas tradicionalmente atribuídos a Omar foram classificados como tendo uma origem obscura. A lacuna registada foi de tal modo significativa que certos estudiosos adoptaram a posição extrema de a ignorar por completo, defendendo até que toda a sua obra deveria ser retirada dos anais da literatura persa, conforme no ocidente é conhecida.
               
Há um certo exagero nesta reclamação, dado ser certo que Omar escreveu poesia. Vários historiadores do seu tempo, e amigos pessoais do autor, deixaram escritas referências às quadras de Omar. Porém, não se ignora o facto de muito do seu trabalho neste campo se ter imiscuído com exercícios desenvolvidos por outras mãos — discípulos seus, provavelmente, mas não em exclusivo.
               
Apesar deste ponto ser válido, a obra, como nos foi chegando com o passar das décadas, e já com a imperial depuração dos poemas, apresenta uma solidez temática e ao nível do estilo aceitável, não sendo alvo de grande contestação sobre o modo como foi sendo organizada. Assim sendo, identificamos com facilidade referências ao livre-arbítrio e ao determinismo na vida humana, e como a mesma por eles se afecta — assuntos que Omar abordou nos ensaios filosóficos que deixou escritos, embora, uma vez mais, a atribuição da autoria não goze duma absoluta certeza.
 
Abrindo caminho por essa vida de predestinação, é natural que exponha certos preceitos de teor fatalista. De igual modo, percebemos uma tendência niilista, o que se relaciona com o cepticismo religioso que sabemos ter manifestado em vida. Não chegando propriamente a tocar as fronteiras do agnosticismo, Omar trouxe uma linha algo pessimista para a sua poesia. No entanto, aceitando sem rebeldia os limites impostos pela condição da vida material, pela imutável natureza de todas as coisas, condenadas pela sua efemeridade primordial a perecer, Omar envereda também pelos trilhos do epicurismo. Como forma de o manifestar, traz aos seus versos as virtudes dum néctar supremo: o vinho, claro está. (Talvez fosse este aspecto a razão do seu enorme sucesso junto do mundo ocidental. Não que este tivesse uma relação estreita, na sua globalidade, com tal bebida, mas pela originalidade em criar poesia em torno do louvor ao vinho e seus benéficos efeitos.)
 
A ataraxia, que muitas vezes se associa ao epicurismo, acontece em Omar precisamente graças ao consumo da velha dádiva das videiras. Não chegará, contudo, para se tornar numa espécie de Baco persa. É factual que Omar consumia vinho, vários contemporâneos seus registaram essa inclinação, mas não parece haver indícios dum uso excessivo ou de Omar apresentar-se aos seus pares frequentemente em estado embriagado. Conhecendo-lhe os efeitos, louvou-os – elevando o estado adquirido pelo consumo da bebida a um alto patamar, ao nível duma solução única para encarar a vida material e todos os seus desafios.
 
Porém, existem indícios, pequenas pistas, aqui e ali, que nos levam a perguntar se Omar poderá ser ou não incluído na categoria de poeta místico, o que, a ser verdade, nos levará a suspeitar de metáforas mais profundas na sua poesia, algo que uma leitura superficial poderá não captar. Para tal, ajudaria perceber se em vida fora visto ou tratado como um sufi, aqueles que representavam o lado mais místico e até esotérico do islamismo — a sua forma, digamos, mais depurada. Ora, graças ao seu cepticismo religioso, à sua constante crítica aos preceitos da religião vigente, sabemos que Omar até se viu envolvido em discussões acesas com sufis do seu tempo, que sobre este tinham uma imagem muito pobre. Não será, portanto, um poeta místico, visto que o seu livre-pensamento era tão mal recebido nas altas fileiras da religião. Mas será essa a única via de comprová-lo?
 
Pelo contrário — até por misticismo em nada se relacionar com religião institucionalizada. Omar deixa-nos pistas duma visão muito mais profunda e mística sobre o divino, sim, concepção essa que, mesmo dotada de maior verdade e sentido, pela óptica religiosa até poderia ser tida como herege. Basta lembrar a primeira quadra desta nossa selecção para perceber a sua posição crítica sobre os ritos e a moralidade que os sufistas apregoavam. Assim sendo, será que devemos ser tão literais ao ponto de ver em Omar um inveterado bebedor?
 
Acrescente-se agora o seguinte: na poesia oriental da época, de pendor místico, era muito comum utilizar o estado de embriaguez como uma metáfora para o estado de comunhão com o divino. Estar ébrio era, assim, um resultado não do consumo de vinho, mesmo que houvesse referência a ele, mas de um estar em Deus, um encontro com o divino em nós, com a substância (alguns dirão consciência) que a tudo subjaz. À luz do exposto, as quadras de Omar ganham, decerto, uma nova dimensão, muito mais profunda e luminosa. Assim, o seu suposto pessimismo seria, de facto, o que aparentava ser? O hedonismo apregoado na quadra VIIIª, por exemplo, será um mote para a entrega aos prazeres ou simplesmente um conselho para desfrutar da vida presente enquanto ela existe, ao invés de desperdiçá-la, amarrando-a a incontáveis rituais em louvor do que não conhecemos? (“Discutimos perante uma cortina desconhecida” — IVª quadra) Há um carácter dual nas suas linhas que não poderá ser ignorado, principalmente por termos poemas impregnados por uma sabedoria depurada, escritos à guisa de conselho, que nos levam a suspeitar que haverá mais para além do que os olhos lêem.
 
O nosso cientista-poeta não era, já o dissemos, agnóstico. Criticava a religião, mas acreditava num ser superior sobre o qual o Homem pouco ou nada sabia. Diz quem o acompanhava que Omar faleceu enquanto lia um livro dum grande sábio que o precedeu, o médico e filósofo Avicena (980 – 1037). A dada altura mandou chamar as pessoas necessárias para a enunciação do seu testamento. Contaria já com oitenta e três anos. Não comeu nem bebeu durante todo o dia; já de noite, terá dito: “Ó Deus, tu sabes, compreendi-te o mais possível. Perdoa-me, conhecer-te é o caminho para me juntar contigo”. E de seguida faleceu.
 
Para terminar, partilhamos uma história curiosa ligada à morte de Omar Khayyam, deixada pelo seu discípulo e admirador Nizami Aruzi, que se diz testemunha do caso:
 
“Em 1113, na cidade de Balkh3, na rua de Vendedores de Escravos, em casa de emir Abu Said Jarr, foram recebidos Umar-i Khayyam e Muzaffar Isfizari, e eu juntei-me a eles para os servir. Durante a festa ouvi a Sua Testemunha da Verdade Umar-i a dizer, — A minha campa ficará num lugar onde em cada Primavera a brisa leve do vento me cobrirá com flores. Estas palavras surpreenderam-me, mas eu sabia que uma pessoa como Khayyam não diria palavras sem sentido. Quando em 1136 eu cheguei a Nishapur, tinham passado quatro anos desde o tempo em que o Grande tinha coberto a sua face com o manto da terra (…). Na sexta-feira fui curvar-me perante suas cinzas, arranjei uma pessoa para me levar até à sua campa. (…) Virei à esquerda e ao pé do muro que separava um jardim vi a campa dele. As pereiras e árvores de alperce em flor inclinavam-se do jardim, estendendo-se sobre a campa, inundando-a com flores. Lembrei-me das palavras dele, que tinha ouvido em Balkh, e chorei, porque em toda a superfície da terra (…) não encontraria lugar melhor.”
 
Notas:

* Os poemas apresentados são da tradução portuguesa de Halima Naimova in Umar-I Khayyam, Ruba’iyat (Assírio & Alvim, 2009), com apresentação de Maria Aliete Galhoz. As notas adicionais são de Pedro Belo Clara.
 
1 Antigo e vasto império árabe de origem turco-persa sunita, estendeu-se desde o Golfo Pérsico à Ásia Central. Subsistiu por quase dois séculos, entre 1037 e 1194.
 
2 Religião e filosofia fundada na antiga Pérsia pelo profeta Zoroastro (o Zaratustra que pela mão de Nietzsche adquiriu notoriedade) baseada num preceito dualista (Bem e Mal). Amplamente difundida no Oriente durante os tempos antigos, crê-se que vários dos seus conceitos, como a crença na vinda dum Messias, a existência do Paraíso, a Ressurreição e um Juízo Final tenham influenciado as maiores religiões dos nossos dias: Judaísmo, Islamismo e Cristianismo.
 
3 Balkh, ou Bactro, é uma cidade no norte do actual Afeganistão.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler