Elena Poniatowska ou a arte de escutar

Por Vicente Alfonso

Elena Poniatowska. Foto: Eunice Adorno



Em maio de 1953, Elena Poniatowska tinha vinte e poucos anos e costumava ler os jornais na casa de sua mãe. Certa tarde, acompanhou a mãe a um coquetel em homenagem a Francis White, o recém-nomeado embaixador dos Estados Unidos no México. Na hora das apresentações, a moça solicitou uma conversa com o diplomata. O encontro aconteceu no dia seguinte e foi, nas palavras da autora, “uma entrevista muito tola”. Não deve ter sido tanto assim, porque ela foi imediatamente contratada como jornalista no Excelsior. Ela se lembrou com estas palavras em setembro de 2015, quando a entrevistei para este mesmo suplemento durante o Encontro Internacional de Jornalismo organizado pelo El Universal: “Como eu era mulher, eles me mandaram para as colunas sociais. Você sempre sente que refundam frequentemente as colunas sociais, uma seção que não tem tanta importância agora, mas quando eu entrei era diferente, servia para políticos e banqueiros encontrarem um marido para suas filhas casadoiras”, ironizou, e aproveitou a oportunidade para lembrar que, embora “sempre existia uma maneira de varrer as mulheres”, não são poucas as pioneiras que abriram um espaço no jornalismo e na literatura.
 
Com o novo emprego, surgiu outro problema: sua família não gostou nem um pouco do fato de seu nome e sobrenome aparecerem nos jornais. As convenções da época ditavam que uma mulher deveria aparecer na imprensa apenas três vezes ao longo de sua vida: no nascimento, no casamento e na morte. Tanto que, quando a jovem repórter pediu uma entrevista à tia-avó Hélène Subervielle, ela respondeu atordoada: “Deus me livre!” Imagino que foi então quando a jovem Elena teve a ideia de assinar com o nome de um elefante como pseudônimo. Se sua iniciativa não prosperou, foi porque na mesma seção já existia outra colunista, Ana Cecilia Treviño, que publicava suas matérias como “Bambi”, e o editor se recusou a ter todos os personagens de Walt Disney em suas páginas. Dessa forma, a novata repórter passou a assinar com seu nome e sobrenome as entrevistas e crônicas que publicava à razão de uma vez ao dia.
 
Sete décadas mais tarde, e cumprido os 90 anos, a professora Hélène Elizabeth Louise Amelie Paula Dolores Poniatowska Amor continua trabalhando como jornalista. Paralelamente a uma prolífica e brilhante carreira como romancista, publicou inúmeras crônicas, entrevistas, reportagens e artigos, além de uma dezena de livros de não-ficção, entre eles A noite de Tlatelolco, Forte é o silêncio, Nada, ninguém, A ferida de Paulina, Não deem as graças, As sete cabritas, O universo ou nada, Amanhecer Zócalo e As soldaderas, assim como os grandes compêndios de entrevistas Palavras cruzadas e Ida e volta
 
A produção de uma obra jornalística tão vasta é de especial importância se levarmos em conta que, por décadas, gêneros como a crônica, o depoimento e a entrevista foram considerados subprodutos fora do campo da literatura. Assim, diante da ideia difundida de que passar pela redação é apenas um trampolim para se tornar romancista, a trajetória de Elena Poniatowska nos lembra que o trabalho jornalístico pode ser tão ou mais importante que contar histórias, pois se traçarmos uma linha do tempo que destaca as situações registradas em seus livros, isso corresponderia aos momentos-chave da vida no México durante a segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI. Não é em vão que ela é a primeira mulher a receber o Prêmio Nacional de Jornalismo e a única mulher mexicana que, até hoje, foi distinguida com o Prêmio Cervantes de Literatura.
 
Uma característica essencial no que a mestra Elena Poniatowska escreveu é uma preferência marcada por aqueles que vivem em situações desesperadoras: presos, perseguidos politicamente, camponeses, trabalhadores, indígenas e estudantes, com especial destaque para as mulheres. Décadas antes do tsunami feminista inundar as ruas e os espaços públicos, Poniatowska já estava envolvida nessas lutas não apenas como fundadora da revista Fem, mas também como cronista e repórter: ela também publicou artigos sobre as péssimas condições em que viviam as empregadas domésticas, babás e cozinheiras (“Contrata-se jovem”, 1981), que traçou os perfis de sete pioneiras no difícil campo das artes (As sete cabritas, Era, 2000); ela própria recebeu em sua casa mães que procuravam seus filhos desaparecidos durante o período conhecido como “guerra suja” (“Os desaparecidos”, 1978), que fez um retrato minucioso de Juchitán, Oaxaca, uma sociedade onde as mulheres fazem de tudo (“Juchitán das mulheres”, 1988) e até se envolveu no caso de Paulina Ramírez, uma menina de 13 anos que engravidou após um estupro e a quem foi negada a possibilidade de fazer um aborto apesar de a lei permitir (A ferida de Paulina, Plaza e Janés, 2000).
 
Da praça ao tremor
 
Talvez o livro mais emblemático de Elena Poniatowska seja A noite de Tlatelolco (Era, 1971), volume que em meio século vendeu centenas de milhares de exemplares e ultrapassou as 100 edições. Publicado quando Poniatowska tinha 39 anos, é uma colagem precisa de depoimentos sobre o movimento estudantil de 1968 e a subsequente repressão do exército durante o sexênio de Gustavo Díaz Ordaz: forjado com declarações de estudantes, pais, correspondentes nacionais e estrangeiros, comerciantes, balconistas, além de documentos oficiais, poemas e até canções, a autora ensinava jornalismo ao evitar opiniões pessoais e registrando apenas as vozes diretas das testemunhas. À medida que as páginas avançam, desenrola-se claramente uma história que começa com protestos massivos, assembleias estudantis e uma marcha de silêncio, até terminar no que aconteceu na Plaza de las Tres Culturas em 2 de outubro, quando o exército atirou contra uma multidão de manifestantes. A partir de então, o livro registra casos de adolescentes presos, intimidados, espancados. Poniatowska ouviu as vozes dos que estavam no lugar naquela tarde, que viram os soldados dispararem suas armas, dos que tiveram medo dos helicópteros que sobrevoavam os manifestantes, que viram os corpos dos jovens assassinados a fio de baionetas. Àqueles que, céticos, duvidam que existiram mortes naquela tarde, deveriam ser lembrados que na época, e após uma exaustiva investigação, o jornal britânico The Guardian estimou o número de mortos mais provável em 325.
 
Outro de seus livros emblemáticos é Nada, ninguém. As vozes do tremor (Era, 1988). É, de certa forma, um exercício de escrita coletiva: em 1985, após o terremoto de magnitude 8,1 que derrubou centenas de prédios na capital, Dona Elena disse aos alunos em sua oficina literária: “Não vamos falar de literatura agora. Se você quer sair na rua comigo e fazer reportagens, e ver como vivem os mexicanos, continua a oficina, se não, ela fecha”. Seu biógrafo, Michael K. Schuessler, aponta que 18 dos participantes do curso decidiram ficar e formar uma equipe de cronistas que voluntariamente saiu às ruas por várias semanas para fazer entrevistas, reunir dados e estabelecer cronologias. A própria Poniatowska se impôs à tarefa de visitar todos os dias cenas do acontecimento, onde ficava até as três ou quatro da tarde e às cinco escrevia um artigo que a redação já recebia para publicação à boca da noite. Assim, ao ritmo de uma crônica diária, publicou ao longo de quase três meses o material que deu origem a outro de seus livros mais deslumbrantes e cativantes.
 
Mais uma vez, destaca-se o compromisso especial de Poniatowska com as mulheres: Nada, ninguém denuncia que em 1985 pelo menos 70 mil trabalhadoras informais trabalhavam em locais clandestinos no México, sem seguridade social ou benefícios de quaisquer tipos, em condições infames. Ela denuncia também que dessas trabalhadoras, pelo menos 600 ficaram presas sob os escombros quando um desses lugares clandestinos desabou. Que no momento de maior urgência havia funcionários públicos que exigiam “suborno” dos familiares dos falecidos para “agilizar a entrega dos corpos”, e que havia policiais que passavam mais tempo no roubo do que no trabalho de resgate. Entre os muitos testemunhos incluídos no livro, o mais comovente é o de uma mulher que passou mais de 60 horas sob os escombros com o filho de três anos, e a descoberta do corpo de uma menina que acabara de dar à luz no Hospital Juárez: os seios carregados de leite, a cesárea no ventre recém-suturado. Uma fonte de vida arrebatada pela morte. Além disso, dentre os textos produzidos pelos alunos da oficina, alguns foram incluídos no livro com os créditos correspondentes. Há também colaborações enviadas por jornalistas de diversas partes do país.
 
Uma entrevista por dia
 
“A arte de escrever implica primeiro dominar a arte de ouvir”, escreveu Octavio Paz em um artigo sobre Elena Poniatowska; é que nos processos de escrita da autora, as histórias dos outros assumem um peso especial. Como mencionei, a partir de sua entrada no jornal em 1953, Poniatowska foi designada para publicar uma entrevista diária durante um ano. A verdade é que, desde então, nunca deixou de entrevistar personagens dos mais diversos perfis. O resultado é uma longa lista de conversas com personagens como Gabilondo Soler Cri-cri, José Revueltas, Yolanda Montes Tongolele, David Alfaro Siqueiros, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, para citar apenas alguns. Em 1963, uma dessas entrevistas foi fundamental para a vocação literária de Poniatowska: aquela que ela conduziu com o antropólogo norte-americano Oscar Lewis, que alguns anos antes havia publicado Os filhos de Sánchez, livro que desde seu surgimento desencadeou um escândalo porque o governo mexicano considerou que afetava a imagem do país e negou permissão para filmar uma versão cinematográfica em território nacional. Nessa entrevista, Lewis disse que, em vez de tentar imaginar cenas realistas, os escritores deveriam “abordar a realidade do povo mexicano”.
 
São da época também as 78 crônicas curtas incluídas em Tudo começou no domingo (Plaza e Janés, 1997), volume que resgata as obras publicadas por Poniatowska na Revista de Novedades no final da década de 1950: acompanhadas de desenhos de Alberto Beltrán , as crônicas tratam de uma recontagem dos comícios políticos da corrida presidencial em 1958, bem como de um dia de visita à prisão de Lecumberri, as mesmas condições em que os mineiros trabalham em Chihuahua como uma luta de boxe em uma arena de bairro, o mesmo luxo e conforto na Zona Rosa da Cidade do México como a devoção da Sexta-feira Santa em Iztapalapa, entre muitos outros cenários da vida nacional.
 
Uma catrina lavando os outros
 
Talvez inspirada nas já mencionadas investigações de Oscar Lewis, Poniatowska se propôs, em 1964, a uma das mais difíceis e ambiciosas missões jornalísticas da sua carreira: não se tratava de traçar o perfil de uma personagem das altas esferas políticas ou artísticas, mas de retratar Josefina Bórquez, uma velha magrinha que andava encostada pelas parede, dobrada sobre si mesma, e que, segundo lhe contavam, tinha sido soldadera durante a Revolução. Na magnífica crónica “Vida e Morte de Jesusa”, publicada no volume Luz e lua, as luzinhas (Era, 1994), Poniatowska recorda que para ganhar a confiança de Josefina precisava ir todas as quartas-feiras durante mais de dois anos ao bairro pobre onde a mulher morava. Para colocá-la à prova, Bórquez a fazia tomar sol com as galinhas e a lavar macacões duros de tanta gordura enquanto lhe dizia: “Como se vê, você é uma fraca, uma dessas catrinas que não servem para nada!” O esforço prosperou, pois a velha se tornaria protagonista de seu primeiro romance, Até que eu te veja, Jesus meu (Era, 1969), título que se situa entre o jornalismo narrativo e o romance de não-ficção.
 
Em várias das muitas entrevistas que Gabriel García Márquez deu em 1982, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, deixou claro que havia escrito seus romances com os recursos de um jornalista. O mesmo pode ser dito de Elena Poniatowska: nenhum de seus mais de dez romances teria sido possível sem as muitas ferramentas que adquiriu nas redações. Prova disso é que em 2001 foi distinguida com o prestigioso Prémio Alfaguara por A pele do céu, romance cujo manuscrito submeteu a concurso com o mesmo pseudônimo que lhe foi negado quase meio século antes: Dumbo. Bem visto, o elefante na história infantil escrita por Helen Aberson é um símbolo poderoso: suas orelhas enormes são sua força, pois representam a vontade de ouvir. A arte de ouvir.
 
“Eu me acostumei tanto a ouvir que continuo perguntando. Quando uma amiga divaga por horas sobre si mesma, eu a escuto. Eu escuto, eu escuto, eu escuto. Agora, nem ouço minha voz de tanto ouvir os outros”, diz Elena na segunda parte de seu livro mais recente, O amante polonês (Seix Barral, 2021). Sua obra de não-ficção nos lembra que literatura e jornalismo não são óleo e água: ao colocar sua inusitada capacidade de ouvir e reproduzir a fala alheia a serviço do jornalismo, Elena Poniatowska conseguiu forjar crônicas, testemunhos, reportagens e romances tão sólidos e duradouros que já fazem parte da melhor literatura, obras que, sem dúvida, serão lidas e relidas por muitas gerações.
 
Notas da tradução
1 Todos os títulos são traduções livres a partir do original em espanhol.
 
* Este texto é a tradução livre de “Elena Poniatowska o el arte de escuchar”, publicado aqui, em Confabulario.

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