Ano da fome, de Aki Ollikainen
Por Sérgio Linard
A pandemia de Covid-19, que ainda
não acabou, ceifou, só no Brasil, mais de seiscentas mil vidas. Além dos
números, pessoas com histórias, famílias, amores, subjetividades. Pessoas que
amaram e que foram amadas perderam suas vidas por diversas circunstâncias,
muitas delas geradas pela inaptidão daqueles que em anos posteriores foram
escolhidos como representantes da vontade do povo. Uma lástima.
Esta, como bem sabemos, não foi a
primeira e nem terá sido, infelizmente, a última situação pandêmica vivida
pelas sociedades humanas. Não me interessa aqui, neste texto, trazer à memória
ou fazer um levantamento de todas elas; não é esta a intenção. Mas importa
verdadeiramente lembrar que situações como essa que poderiam promover algum
tipo de aprendizagem — ainda que pelo menos para melhor lidarmos com algo
parecido — simplesmente não deixam nada além de dor como saldo. Olhamos para a
história e vemos tudo se repetindo.
É neste contexto de tragédia,
baseada em acontecimentos reais, que se situa a narrativa de Ano da fome,
do autor finlandês Aki Ollikainen. Contam-nos os livros de história que os anos
entre 1866 e 1868 foram marcados por um verão bastante chuvoso a ponto de a
colheita e a subsistência do país ser fortemente prejudicada, conduzindo duzentas
e cinquenta mil pessoas à morte, o que equivaleria, apontam os dados, a 15% da
população daquele país, à época um grão-ducado. Um extermínio de pessoas
causado por irresponsabilidades governamentais mediante intempéries da natureza
que iniciaram em 1866 e que chegou em situações extremas no ano de 1867, período
temporal do texto em questão.
Ano da fome chama atenção desde a
orelha do livro justamente por tratar de um tema, como exposto acima, que
impacta até mesmo os mais alheios a temáticas como esta. Aqui em nossos
trópicos, temos alguns textos já consagrados que tratam da temática da fome,
ambientados em sua maioria na região Nordeste do país. Famílias em migração na
busca por alimentos, acompanhadas de crianças pequenas, com pouquíssimas forças
físicas para a jornada poderia ser muito bem uma brevíssima apresentação
de Vidas secas, mas serve também como uma introdução de primeiro
contato a Ano da fome. Há de se ressalvar, porém, as devidas
mudanças culturais, geográficas e físicas.
Aqui no Brasil são poucas as
oportunidades de contato que temos com livros que fogem do centro da
ocidentalidade; seja por recortes acadêmicos seja por questões comerciais, é
fato que ter a oportunidade de ler obras produzidas em eixos menos “badalados”
pelos grandes prêmios internacionais são escassas e devem ser aproveitadas
sempre que possível. A título de ilustração, pode-se destacar, como bem lembra
o Boletim número 467 deste Blog,
que o livro aqui apresentado faz referência ao clássico, Fome, de Knut
Hamsun, esgotado no país desde 2004.
Ano da fome não é publicado por uma grande
editora, não aparece em listas de livros a serem conhecidos e a Finlândia não é
vista, em nosso território, como uma incontornável fonte de literatura. É um
livro que acaba chegando ao leitor de modo despretensioso e que levanta a
curiosidade justamente por abordar uma temática pouco esperada para um país,
visto de cá e de agora, como muito avançando.
Os capítulos da narrativa se
dividem em circunstâncias-recortes de uma realidade maior em que se encontra a
sustentação integral do texto: uma família que tenta chegar a São Petersburgo
(Rússia) para escapar da fome devastadora que atingiu sua terra natal. Neste
ínterim, encontram e vivem situações de exploração, de convívio com a morte,
com o frio, mas também com os desejos seus e de outrem. Essa é uma forma de
apresentação já consolidada na tradição e explorada com certa frequência na
contemporaneidade. Não obstante, tramas políticas são urdidas ou reveladas,
apresentando como governantes tiveram papel crucial para a derrocada da
situação de segurança alimentar daquele povo.
Cenas escatológicas de pessoas se
alimentando de cachorros mortos, mulheres e crianças estupradas e assassinatos
na disputa por um pedaço de pão são relatadas na clareza de um dia luminoso de
inverno, envolto pela branquitude da neve (interessante o fato de que a versão
deste livro em francês recebeu o título “Le faim blanche” — A fome branca,
em livre tradução) que assola toda a ambientação da narrativa. Para o livro,
porém, vê-se a falta de fôlego.
A técnica de interromper uma
história em seu ápice já é muito utilizada, especialmente quando pensamos em
narrativas curtas. Geralmente, é uma técnica bem-vinda que motiva
questionamentos no leitor, instiga a reflexão e adentra o texto no cenário da
dúvida, justamente porque não se ocupa em traçar uma resposta definitiva.
No caso de Ano da fome, a
obviedade das interrupções constitui mais um insucesso do que um êxito por
serem respostas a perguntas que ainda seriam formuladas. Não defendo, sob
hipótese alguma, que a literatura tenha um papel obrigatório de surpreender o
leitor; mas um texto que se propõe, desde sua base, a responder, sozinho, às
suas metáforas e aos seus símbolos falha. Essa falha chega à superfície do
texto de modo a clarificar a falta de fôlego narrativo, uma vez que o ponto
alto de cada um dos acontecimentos já tinha sido revelado e a interrupção
ocorre sem grandes significações em aberto ou sem grandes importâncias para o
andamento da narrativa que ali se encontra. A criança que morre nos braços da
mãe gera dor, gera choro, e depois? A narrativa é interrompida justamente no
lugar de conforto que o seu tema universal preconiza. Não é errado, mas há
outros textos que conseguem desenvolver melhor a proposta.
No plano do conteúdo, Ano da
fome tem melhor desenvoltura do que os momentos de questionáveis interrupções
acima mencionadas. No contato prévio com o título do livro, com a resenha da
editora e com os textos de apresentação, parece-me incontornável a criação de
uma expectativa de que a figura da fome será central na história, o que de fato
ocorre. Contudo, Aki Ollikainen atinge um êxito ao destacar que outras
necessidades humanas também podem existir neste contexto caótico.
Invariavelmente, quando se pensa
nas situações de seres humanos com fome, cria-se uma imagem em que suas
subjetividades somem, fazendo com que eles sejam somente bocas a serem
alimentadas. A essas pessoas não existe a possibilidade de desejos outros a não
ser o de comer; elas não querem amar, não querem pensar, não querem sorrir,
contrário a isso querem somente comer. Uma inverdade que apaga mais ainda estes
sujeitos que já sofrem com a obliteração social constante e rotineira. Os
personagens de Ano da fome, porém, sentem a vontade de gozar por meio do
sexo, intentam conversar sobre outras temáticas que não aquela situação que os
assola, conseguem agir de forma amorosa com outros, a despeito do desejo
animalesco que potencialmente os corrói. Aqui, a história tem grande mérito
por, em seu bojo, tentar explanar que aquelas pessoas famintas não se reduzem a
isso, são, também, pessoas envoltas de desejos não restritos à alimentação, ainda
que seja este último o que prevaleça. Desse modo, a narrativa merece
destaque justamente por conseguir, com uma temática delicada e que geralmente
cria figuras animalescas do homem, atualizar estes pensamentos e ajudar a
pensar sobre como aquelas pessoas que morreram de fome poderiam, também, estar
lidando com as demais necessidades humanas.
“Por um momento ela sente que
todos os mendigos do mundo formam uma família.” Além do desespero de “cada um
por si” em situações extremas como a abordada pelo livro, o texto consegue
construir personagens e incluir em seu enredo algo que foge do tradicional
drama da fome. Ao demonstrar que as maldades humanas sofridas por grupos
distintos faziam com que estes grupos se unissem, o texto revela justamente uma
face pouco esperada neste contexto: o da compaixão. Aqueles que sofrem com o
mesmo mal, por vezes, conseguem se aproximar, mesmo que sem forças para
permanecerem juntos, mas com dor suficiente para consolar aquela que passa pela
mesma agonia. Conseguir perceber e explorar essa subjetividade de forma mais
complexa, além da fome, como já venho dizendo, é um ponto importante para o
livro que consegue apontar outros dramas, sentimentos por vezes triviais, além
do já explicitado desde o título da obra.
Ao explorar, por exemplo, que a
personagem conseguiu sonhar com uma não existência de si, colocando-se em “um
sonho que não contém um sonho, apenas escuridão sem cor ou limites”, a
narrativa de Ollikainen estipula parâmetros outros para além daquele
habitualmente visto neste cenário, especialmente porque ela se ocupa de tratar
de questões básicas do ser humano, como a possibilidade de sonhar; contudo,
sempre retorna à universalidade da temática da fome e de seus naturais
desdobramentos, sem desenvolver de forma mais ampla a particularidade daquilo
que foi aventado. Toca no assunto, mas não adentra, restando uma interrupção
constante — por vezes demarcada por espaços duplos entre um parágrafo e outro —
exigindo uma parcimônia considerável do leitor. A proposta é muito boa, há
momentos cujas simbologias são bem articuladas, mas que acabam por esbarrar em
uma exploração demasiadamente curta das ideias.
O livro é direto e objetivo, não
faz muitas descrições o que não é, por si só, motivo para defeitos, pelo
contrário. O que aponto como insucesso é justamente porque nesta pretensa
objetividade encontra-se uma falta de aprofundamentos de questões importantes que
somente são suscitadas na trama. É um texto que demonstra grande potencial.
Talvez mais algumas páginas tivessem aproveitado melhor esta potência.
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Ano da fome, Aki Ollikainen
Pasi Loman e Lilia Loman (Trads.)
Editora Numa, 2017,
140 p.
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