A tragédia necromântica do doutor Fausto
Por Raúl Rojas
O primeiro encontro entre Mefistófeles e Fausto. Ilustração: Eugène Delacroix |
Certamente poucos crentes podem
conceber Deus o Criador em altas apostas com o diabo. Mas é o que acontece na
incomparável tragédia Fausto de Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832).
No “Prólogo no céu”, no início do longo poema, Mefistófeles, um dos anjos decaídos, agradece a Deus por lhe perguntar “como vai tudo” na terra. O Senhor o
repreende por não ver nada de bom na humanidade e mostra Fausto, “meu servo”, como
exemplo. É aí que Mefistófeles aposta que pode levar o sábio Fausto à perdição,
desafio que Deus aceita de imediato, acrescentando laconicamente: “o homem erra
enquanto deseja”. Apenas outro texto na literatura mundial começa com uma
aposta tão extravagante e herética: o Livro de Jó, que faz parte da
Bíblia. Ali Lúcifer questiona a fé do piedoso Jó, que ele insinua que só se
deve ao fato de Deus o ter agraciado com múltiplos bens e riquezas. O
Todo-Poderoso aposta com Lúcifer que Jó permanecerá fiel mesmo privado de sua
riqueza. Para provar isso, Deus faz com que Jó perca todos os seus bens materiais
e seus filhos pereçam num desastre. Mas enquanto o Jó bíblico sofre
indizivelmente, no poema de Goethe, Fausto se diverte. Ele viajará no espaço e
no tempo, aproveitando tudo o que abandonou durante seus anos de estudo.
Fausto, escrito em verso, é a obra
mais conhecida do poeta alemão. É uma tragédia publicada em duas partes e na
qual Goethe trabalhou por quase seis décadas. Diz-se que é o livro mais citado na
língua alemã. Pelo menos, muitas de suas frases aladas tornaram-se provérbios
bem conhecidos. Curiosamente, o material da história (ou o Stoff, como
se diria em alemão) foi tomado de empréstimo por Goethe, algo válido numa
época ainda carente de direitos autorais. Quando Goethe escreve sobre a lenda do Dr.
Fausto, ela já constituía uma longa tradição na região cultural alemã. Não se sabe
ao certo se a saga é baseada num personagem histórico, mas o fato é
que o Fausto da fábula decide se dedicar à magia negra, necromancia, para
adquirir poder absoluto sobre o mundo. A história adquiriu ampla circulação a
partir do século XIV, antes da introdução da imprensa. Em 1587, o impressor Johann
Spies publicou a História do Dr. Johann Fausten, onde Fausto já é
descrito como um médico e teólogo que faz um pacto com o diabo. Alguns anos
depois, o dramaturgo inglês Christopher Marlowe reformulou o material e
produziu The Tragical Story of the Life and Death Dr. Faustus para o palco. No texto de
Marlowe, Fausto também vende sua alma ao diabo em troca de 24 anos de ilimitados poderes.
Qual é basicamente o tema de ambas
as apostas, a de Jó e a de Fausto? O grande problema subjacente é a
possibilidade da existência do mal num mundo criado por um ser benfeitor. É o
que Leibniz chamou de problema da teodiceia, a evidente contradição entre um
Deus onipotente e bom, que, no entanto, cria um universo onde o mal pode ocupar
seu próprio espaço. Desde os tempos antigos, filósofo após filósofo tentou
resolver essa contradição — sem muito sucesso. Se a filosofia não pode fornecer
respostas, resta a via literária: colocar Mefistófeles, o mal, placidamente
conversando na corte celestial em que Deus tem um lugar designado para ele. Mas, enquanto o Fausto da lenda e o de Marlowe descem aos infernos, tendo vendido sua
alma, o de Goethe se salva no último momento, o que apenas sublinha que,
enquanto o mal existe, também coexiste a graça de Deus. Martinho Lutero teria
concordado: para o monge protestante, a salvação humana estaria sujeita e a depender apenas da misericórdia de Deus.
A história de Fausto é bem
conhecida: em seu laboratório ele começa a ter dúvidas e a experimentar magia
negra. Em meio a isso recebe a visita de Mefistófeles, que o exorta a fechar um pacto
sinistro que lhe dará poder e juventude em troca de sua alma. Fausto aceita,
mas ele mesmo escolhe o momento de sua morte. Isso só acontecerá quando se
sentir tão feliz ao ponto de pedir para o tempo parar: “Se disser ao instante,
fique aqui, és tão bonito, então pode me buscar, já quero cair”.¹
O que se segue, na primeira parte
de Fausto, é uma cadeia de aventuras e crimes. Desde o episódio nas
Cavernas de Auerbach, um lugar em Leipzig que ainda existe, Mefistófeles
intervém com sua magia sempre que a situação se torna ameaçadora para Fausto. A
dupla singular vai com as bruxas, que dão a Fausto uma poção para fazê-lo rejuvenescer.
Ali mesmo, em um espelho, Fausto se apaixona pela imagem de Margarida, ou
Gretchen, uma jovem que desempenha um papel central em toda a primeira parte da
tragédia. Fausto diz: “O que eu vejo? Que imagem celestial... Amor, dá-me a
mais rápida das tuas asas e conduz-me até ela”. Mas é Mefistófeles que torna
isso possível e, assim, Fausto pode encontrar-se com Margarida, que inicialmente
o rejeita. Com vários subterfúgios, ele finalmente consegue que a virtuosa
donzela se renda aos seus encantos numa noite em que adormecem a mãe da jovem com a ajuda de uma
poção oferecida por Mefistófeles. No dia seguinte, Margarida caiu em desgraça, sua mãe está
morta e Fausto desapareceu.
Margarida engravida e tem que
suportar as insinuações sobre o destino infeliz de qualquer outra jovem nas mesmas
condições. Sem ficar muito claro na tragédia como a notícia de sua desgraça se
espalhou, seu irmão Valentim volta à casa de sua mãe e descobre Fausto e
Mefistófeles, que se aproximam da porta. Os três travam um duelo e Valentim
morre após uma investida de Fausto. O protagonista foge com Mefistófeles e as cenas
seguintes acontecem em Harz, o lugar onde as bruxas se reúnem todos os anos na
noite de Walpurgis, uma orgia anual do mal, a “esfera dos sonhos e da magia”.
O fim está próximo. Oprimida pelo
remorso e pela solidão, Margarida deu à luz um bebê que ela afoga no rio, depois de cair louca. Ela é pega e presa numa cela para a qual Mefistófeles leva Fausto
com a ajuda de cavalos encantados. Mas Margarida não permite que Fausto a
salve, reconhecendo Mefistófeles como o demônio que ele é. A jovem decide se
entregar ao seu destino exclamando: “Sumo Bem, Pai meu, que estás nos céus,
salva-me, que eu sou tua Santos Anjos de Deus, levai-me à vista sua! Henrique,
horror a ti minha alma purifique!”, e enquanto Mefistófeles exclama: “Condenada!”,
os anjos o contradizem: “Ela está salva!”
Até agora a primeira parte da
tragédia, publicada em 1808. Levaria mais 24 anos até o aparecimento da segunda
parte, que foi menos lida e conhecida que a primeira. Mas se a primeira parte
termina com a morte de Margarida, a segunda termina com a de Fausto; são dois
destinos paralelos. E apesar de toda a culpa acumulada por Fausto, quando
finalmente se rende ao seu destino e pede para morrer, um coro de anjos o
salva, como já havia acontecido com Margarida. O coro final, do qual participa
a própria Margarida, proclama em seus últimos versos: “O indescritível aqui
aconteceu, o eterno feminino nos ergue atrás dele”.
Nas escolas alemãs é obrigatória a
leitura do primeiro volume de Fausto. Conta-se que Goethe começou a
trabalhar sobre o assunto já em 1772, quando leu sobre o julgamento de uma mãe
que havia assassinado o filho. O primeiro manuscrito, de 1775, chama-se Urfaust (Fausto Zero)
e já contém a história de Margarida, embora a tragédia ainda não comece com o “Prólogo
no céu”. Treze anos depois, em 1788, Goethe havia ampliado o manuscrito com
diálogos adicionais entre Fausto e Mefistófeles. Publicou-o em 1790, sob o
título Fausto, um fragmento. É em 1797 que o escritor volta a trabalhar no
manuscrito, acrescentando as cenas no céu e durante a Noite de Walpurgis até
que, finalmente, a primeira parte de poema aparece completa em 1808. Trinta e seis anos se passaram desde o início do projeto! A segunda parte foi escrita até praticamente o ano de sua morte, mais 24 anos, como dissemos.
A segunda parte de Fausto
foi chamada de um “caleidoscópio” de cenas. Goethe retoma alguns dos motivos de
romances anteriores sobre o Dr. Fausto, por exemplo, o tema da lendária Helena
de Tróia. Nesta parte, o poeta mostra todo o seu virtuosismo e liga Fausto à
antiguidade clássica e à história europeia. Agora Fausto se move livremente no
espaço e no tempo, visitando a corte de Menelau em Esparta e seduzindo Helena,
com quem tem um filho, além de voar da Arcádia até o topo das montanhas onde
encontra Mefistófeles. No final de sua vida, depois de muitas e diversas
aventuras, o protagonista é um homem velho novamente, cheio de remorsos, e escolhe morrer.
Os anjos o resgatam antes que Mefistófeles possa reivindicá-lo como seu.
Foi dito que um dos motivos
centrais de Fausto são as aspirações ilimitadas dos homens. O filósofo Oswald
Spengler cunhou o termo “pacto fáustico”, referindo-se ao esforço humano para
controlar completamente a natureza, independentemente das consequências. Nesse
sentido, por exemplo, os físicos que estudaram os átomos e a fissão nuclear no
século XX entraram em um pacto fáustico, pois dele derivariam bombas
nucleares. Assim, Fausto é, desde o início, uma figura trágica, pois se esforça
para desvendar os últimos segredos da natureza, independentemente dos desastres
que possa causar. Margarida, por sua vez, poderia figurar como a personificação
da inocência da natureza, violada por Fausto.
Depois do Fausto de Goethe,
a história continuou a ser reelaborada de várias maneiras. Thomas Mann
publicou, em 1947, seu romance Doutor Fausto, no qual o pacto fáustico é
fechado por um compositor, que vende sua alma em troca de 24 anos de
criatividade, enquanto em torno dele a Alemanha desce ao inferno do fascismo.
Outra versão sui generis da tragédia é o livro Professor Unrat,
de Heinrich Mann, irmão de Thomas Mann. Neste livro, um velho e severo
professor do ensino médio se apaixona por uma jovem dançarina que o seduz e o
torna seu criado. A história foi trazida para a grande tela por Fritz Lang no filme
com o título Der Blauer Engel (O anjo azul), o primeiro filme sonoro na
Alemanha. Marlene Dietrich interpreta a cantora e artista de cabaré, a bela
Lola, uma moderna e astuta Mefistófeles feminina, que faz o professor Unrat
cair no abismo do vício. No final, o professor é salvo ao rejeitar Lola e
morre, reconciliado com o mundo, agarrado ao pódio de onde lecionava.
Essa é a essência imortal e ao
mesmo tempo a modernidade de Fausto. O mundo cotidiano nos revela a
profundidade do pacto fáustico em que incorremos, com epidemias, mudanças
climáticas e conflitos intermináveis, que também mostram o quão longe estamos,
e talvez sempre estaremos, de dominar a natureza e poder controlar os danos
colaterais de todas as nossas ações.
Notas da tradução:
1 Esta e todas as demais citações do texto literário são feitas a partir do texto em espanhol. O Fausto está traduzido no Brasil por, entre outros, Jenny Klabin Segall (publicada pela Editora 34, reimpressa em 2021 com as ilustrações de Eugène Delacroix - Você pode comprar os livros aqui).
* Este texto é a tradução livre de “La
tragedia nigromante del doctor Fausto”, publicado aqui, em Confabulario.
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