A fratura, de Catherine Corsini

Por Solange Peirão



 
A fratura, filme da diretora francesa Catherine Corsini, lançado recentemente no Brasil, se estrutura em torno de quatro protagonistas: Rafhaëlle, ou simplesmente Raf, (Valeria Bruni Tedeschi) e sua companheira Julie (Marina Foïs), o caminhoneiro Yann (Pio Marmaï) e a enfermeira Kim (Aïssatou Diallo Sagna).
 
A interação entre eles acontece em um hospital público de Paris, em 2018, durante a fase mais dramática das manifestações dos “gilets jaunes”. Os “coletes amarelos” fazem alusão às jaquetas fluorescentes dos manifestantes e que são de uso obrigatório para os motoristas na França em caso de acidente.
 
O estopim do movimento que se alastrou pelo país, mas que teve em Paris sua visibilidade mais expressiva, era o imposto ecológico sobre os combustíveis, anunciado pelo presidente Emmanuel Macron.
 
Fraturas sociais e políticas
 
Obviamente que havia muito mais por trás dessa motivação aparente. Trabalhadores questionavam o valor do salário mínimo, os aposentados idem, já que sobre esse patamar se definem seus proventos. Enfim, rapidamente aderiram ao movimento toda gama de trabalhadores da cidade e do campo, especialmente os que trabalham na esfera do abastecimento e da distribuição de bens e serviços.
 
Talvez por isso o movimento dos “gilets jaunes”, em 2018, tenha sido avaliado como uma ação que denunciou a carestia, sob a ótica da mobilização e do deslocamento, e que utilizou, inclusive, essa mesma estratégia de bloqueio, para enfrentar as forças policiais de repressão, especialmente violentas nas últimas semanas.
 
Olhando nessa direção, alguns analistas introduziram a comparação com o movimento Passe Livre, ocorrido no Brasil em 2013. Ou seja, denunciar as dificuldades de deslocamento, com táticas que estrangulam a circulação de pessoas e, consequentemente, paralisam as atividades econômicas.
 
Em ambos os casos, há os que lembraram da auto-organização dos protestos, em que os partidos políticos só foram tardiamente definindo posição, seja por apoio, contestação, ou diálogo, em função das forças políticas dominantes em cada país, na ocasião.
 
Fato é que, no caso da França, o quadro que se esboça no filme, já prenunciava os enfrentamentos políticos que aconteceriam agora, em 2022, durante a campanha presidencial.
 
No campo da esquerda, a fratura entre Macron e Mélenchon. O primeiro, comparecendo com o ideário próprio da social-democracia, com dogmas do neoliberalismo que incluem o enfraquecimento do Estado, as privatizações e a livre negociação entre patrões e empregados. Curioso notar que Macron se apresentou, ao menos no primeiro turno, com uma proposta de aumento da faixa etária para concessão de aposentadoria, como se esse segmento social, o dos aposentados, não tivesse sido um braço sensível dos movimentos de 2018. Mélenchon e seus seguidores, por sua vez, no extremo das posições radicais, chegaram defendendo a necessidade de revisão constitucional, o fortalecimento do Estado e a melhoria dos serviços públicos.
 
Marine Le Pen, da extrema-direita, também se apresentou com pauta próxima a de Mélenchon. A diferença entre ambos é que Le Pen defende o usufruto das benesses do Estado somente para os franceses, excluindo os imigrantes. Some-se a sua postura racista e xenófoba, um recorte conservador e antifeminista.
 
Na balança das forças políticas, que colocou a ultradireita como possiblidade quase concretizada na França, voltou ao debate a discussão clássica sobre a “união das esquerdas”, como contraponto.
 
Não é esse também o debate em pauta atualmente no Brasil? Sim, há analogias, guardando-se as especificidades históricas dos dois países.
 
E, olhando para o universo hospitalar, que serviu de cenário para o filme, compreenderemos que as fraturas, agora de outra natureza, são muito similares.
 
O filme
 
A única cena de lentidão relativa, porque expõe um cotidiano familiar como outro qualquer, é a que abre o filme. No entanto, revela, de saída, a conflitante relação amorosa entre o casal Raf e Julie. E já coloca, de cara, a personalidade de ambas, por meio de uma situação típica da modernidade: a comunicação virtual.
 
As duas mulheres acordam, naquela manhã, em que se pressente a turbulência das ruas, com Raf enviando mensagens aflitas, via celular, para sua companheira Julie que, pasmem, dorme ao seu lado. Com cobranças e mais cobranças, que vão se repetir ao longo do filme, sem nunca esboçar um motivo concreto. Servem, isso sim, para revelar o caráter de ambas.
 
Raf, uma desenhista de história em quadrinhos, insegura, emotiva e divertida. Ela segura, ao longo da narrativa, as pegadas humorísticas que suavizam as tensões dominantes, durante todo o filme. Julie, diretora também de revista em quadrinhos, é a metade centrada do casal, pura razão, nenhum sorriso e muita ação.
 
Do constrangimento desse despertar “carregado”, brota um café da manhã tenso, em que Julie comunica sua decisão de separar-se, depois de longa união, ao mesmo tempo em que interpela o filho jovem, que se prepara para ir às manifestações. Aqui já brota uma primeira impressão do trio sobre o assunto do dia: a mãe, nada política, superprotetora, lança, em tom de ironia, um “cuidado, e não pense que vai ter música”; a companheira que mostra o seu lado sempre suave e relaxado em relação ao rapaz; e o filho que deixa, nas entrelinhas, uma crítica velada à alienação de ambas.
 
Fora, o dia começa com as ruas ainda tranquilas. Julie sai de casa irritada, com Raf em seu encalço, implorando perdão. Nessa correria, cai e fratura o braço. A ambulância chega para conduzi-la ao hospital.
 
A entrada no hospital inaugura uma nova fase narrativa, dessa vez marcada pela agitação, o frenesi, com movimentos intensos da câmera e diálogos curtos, rápidos. Isso para dar conta de um dia que começa comum, em um hospital público de Paris, e que expõe carências de toda ordem. Não se distanciam, portanto, das condições hospitalares que encontramos nas grandes e movimentadas cidades brasileiras.
 
Se na abertura do filme o enfoque se debruçou sobre o casal, Raf e Julie, agora, toda a sequência terá por base o quotidiano do hospital público, de certo modo excepcional, devido às manifestações.
 
Há, do ponto de vista dramático, uma outra dinâmica interessante. Raf e Julie interagem, trazendo para esse espaço sua conversa afetiva interminável, mas com a introdução de um terceiro interlocutor direto: Yann, o caminhoneiro, que chega atingido gravemente na perna por uma granada, durante a passeata. A enfermeira Kim completa o quarteto, circulando freneticamente, fazendo a costura entre os pacientes, o corpo médico do hospital, e permitindo traçar, enfim, um panorama das principais questões que a narrativa vai apresentar. Considerando as principais:
 
— A questão da imigração e do uso, por todos, indistintamente, franceses ou não, do serviço hospitalar gratuito. O que fica exposto também é que entre esses “novos” cidadãos, a marca da diversidade étnica está estampada no biótipo, na expressão verbal e, sobretudo, nos nomes dos pacientes. Talvez tenha havido um certo exagero em apresentar doentes em demasia com essas características; por outro lado, compreende-se que era preciso marcar esse novo perfil da população francesa. A cena memorável que encaminha essa questão é a reunião do corpo médico com a equipe de enfermagem, logo no início do filme, para socializar os procedimentos. A própria origem étnica da enfermeira Kim, ou a declaração quase desapercebida de um atendente, referindo-se ao dia do Ramadã, reforçam isso.
 
— Na linha da qualidade do serviço público, percebem-se as carestias por todos os lados: superlotação, escassez de funcionários sobrecarregados com horas-extras, escassez de medicamentos, alojamentos e higiene precários.
 
— As manifestações crescem e os pacientes acompanham tudo pelas TVs sintonizadas, nas salas de espera. Raf reclama desse universo que adentra de forma virtual no espaço, enquanto o manifestante Yann acompanha vivamente os acontecimentos. E a divergência vem abrir o enfrentamento político acirrado entre ambos, por meio de diálogos acalorados, nervosos. O panorama dos embates das ruas fica então traçado, com as acusações de parte a parte: ela, classificada de burguesa, eleitora de Macron, apoiadora de seus projetos liberais e que autoriza a ação policial violenta; ele, de ser engolido pela direita radical, na ânsia de querer a renúncia do presidente, denunciando a falta de disposição para o diálogo. Bonito de se ver é que, quando as dores das fraturas concretas de ambos apertam, e colocam os dois na mesma posição de vulnerabilidade, Yann e Raf se apoiam mutuamente e podem, inclusive, trocar um olhar doce de cumplicidade, que Julie é incapaz de dar.
 
— Perambulando pelo hospital, Julie vai despertando para situação geral das carências e da solidão de muitos. A culminância acontece quando a violência das ruas bate nas imediações do hospital. Não são agora só os feridos que chegam em grande quantidade. Os manifestantes, emparedados pela polícia que cerca o hospital, pedem a liberação das portas. Um médico, de biotipo “nada francês”, opta pela abertura, correndo risco de demissão. Julie está entre os que intercedem a favor dos manifestantes, e ajudando a cuidar dos pacientes, sufocados pelo gás lacrimogênio que invadiu os recintos. Com a cabeça direcionada para a TV, observa atônita o Arco do Triunfo, transformado em praça de guerra.
 
— Yann, o caminhoneiro, vive a cena que expõe a contraditória relação entre o manifestante que apanha e o policial que bate. Na tentativa de escapar de uma cirurgia, e voltar a sua cidade natal, foge do hospital, usando uma jaqueta de médico, como disfarce. Na saída, dá de cara com um policial que, ao vê-lo mancando, percebe se tratar de um manifestante ferido. Hesita, mas faz vista grossa, deixa-o prosseguir, sem detê-lo.  
 
— Kim é a enfermeira eficiente que, correndo para servir a todos, costura a narrativa, como já dissemos. Mais parece um vento suave que desliza, apesar de seu corpanzil de negra, pelo universo hospitalar. Uma figura angelical, onipresente e onisciente. Estará ou passará por todas as cenas centrais da narrativa. Um psicopata surtado, em dado momento, a toma como refém. Raf e sobretudo Yann serão seus libertadores.
 
A cena final não poderia ser outra, senão um close escancarado do rosto de Kim. Ela assiste, em sofrimento, à volta de Yann, ferido novamente, ao hospital.

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