A comunidade imaginada elucidada através de “Iracema” e “O cortiço”
Por Lucas Pinheiro
Ilustração: William Santiago. |
A procura de uma literatura que caracteriza ou manifesta a
comunidade imaginada, ou identidade nacional, foi um objetivo pretendido por
diversos escritores no decurso da produção literária brasileira. Dentre os
quais destacam-se José de Alencar e Aluísio Azevedo, respectivamente os autores
de Iracema, publicado em 1865 e O cortiço, publicado em 1890. À
vista disso, este texto se propõe a observar o conceito do que é o “ser
brasileiro”, evidenciando determinadas personagens dessas obras.
Análise acerca da construção da identidade brasileira em Iracema
É em Iracema que a construção da brasilidade é
divulgada; José de Alencar consegue combinar com maestria culturas e povos
distintos: Iracema, a indígena que ama de modo incondicional e entrega-se a
angústia escravista do amor romântico e Martim, o português civilizador. Da
representação da relação entre os dois, nasceu o primeiro mestiço, criação da
brutalidade entre duas culturas neste processo.
Destarte, a originalidade caracteriza-se sem obstáculos no
manifesto de Alencar, que teve como intuito apresentar aos seus contemporâneos
uma literatura que expressasse uma determinada identidade brasileira, o
imaginado surgimento de um país mestiço desde o princípio. Entretanto, é
notável que apesar de utilizar de uma premissa romântica da representatividade
do país, o autor serve-se de um modelo europeu para sua construção literária.
Portanto, torna-se evidente que a literatura romântica se
constitui nas singularidades que já se apresentam em um arquétipo da literatura
representativa do nacional. Ainda que Alencar consiga alcançar um sentimento
íntimo, excedendo o Instinto de Nacionalidade, tema abordado por Machado de
Assis em seu ensaio homônimo publicado em 1873, em que o escritor manifesta:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura
nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferecem a sua
região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que
se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o
torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no tempo e no espaço. (ASSIS, 1873)
Neste ensaio, Machado de Assis propõe um equilíbrio entre a
perspectiva universal das obras e da região justapostas na literatura. À vista
disso, por meio do chamado “instinto de nacionalidade”, Machado visava uma
literatura de valores opostos, ambivalente, que abordasse a temática nacional
sem menosprezar a proximidade das questões universais e sem criar uma brasilidade
não condizente com a realidade.
José de Alencar, em Iracema, ainda se beneficia da
estética da época em sua tentativa de representação do nacional, a qual
origina-se de ideais propostos pelo romantismo, um reflexo da busca de uma
identidade própria ao Brasil recém independente e do anseio pela construção da
arte genuinamente brasileira.
Dessa forma, é possível afirmar que a obra é marcada por uma
perspectiva apartada da realidade e, portanto, também manifesta a absolvição da
história que compõe o passado brasileiro e, apesar de propiciar a elucidação
das singularidades do “ser brasileiro” durante sua época, ignora e abstrai um
manifesto político.
O cortiço e sua perspectiva “positivista”
O cortiço apresenta-se sendo uma marcante produção literária
naturalista, possuindo uma análise social acerca e a partir de grupos de
pessoas marginalizadas face aos lucros alcançados pela industrialização.
Nota-se o manifesto de um período social que sucede o processo de modernização,
urbanização e aumento de postos trabalhistas — aspectos atribuídos sobretudo à
capital carioca tematizada na obra.
Ainda que se trate de uma narrativa que evidencia uma
perspectiva coletiva, enfatiza-se o simbolismo de João Romão que, em suma,
demonstra a ambiciosa transformação a que o país era acometido, isto é, o que é
visto como progresso nesse período.
Portanto, nota-se que a obra de Azevedo comporta um complexo
corpus de personagens. O cortiço de João Romão é um organismo vivo, nascido de
algumas tábuas roubadas e que morreu em um incêndio. Entre este intervalo
temporal, Romão enriquece explorando quem lá morava e comprava em seu comércio,
e a negra com quem “amigou” torna-se ofuscada perante o desejo da ascensão
social de Romão, que acaba se casando com a filha de um rico português que se
tornou Barão e, a partir disso, faz-se Visconde e acaba apagando seu passado
sujo.
É óbvio que a obra não se reduz a essa trama, mas é a que
mais interessa enquanto em busca de uma perspectiva de comunidade imaginada,
visto que ao longo do romance o que está sendo debatido é a formação da nação
brasileira através da miscigenação de raças a culturas. No decorrer da
narrativa, eivada do preconceito daquele período, perfaz-se diferentes
adequações do indivíduo português ao Brasil, além da diligência dos negros e
mestiços. Desta coexistência de tipos se estabelece o romance, da mesma forma
como ia se estabelecendo a nação.
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