Um itinerário para possível leitura de Antonio Carlos Secchin (Parte 1)
Por Marcelo Moraes Caetano
Antonio Carlos Secchin é um dos
maiores poetas e críticos literários da contemporaneidade, Academia Brasileira
de Letras, sucessor de meu saudoso amigo Marcos Almir Madeira no Petit Trianon.
Ambos, Secchin e Madeira, além de outro membro da ABL, Arnaldo Niskier, tiveram
o longânimo gesto de prefaciar meu primeiro livro de poesias, Cemitério de
centauros (FIRJAN, 2007), que ganhou o prêmio da Fundação Guttemberg na
XIII Bienal Internacional do Rio de Janeiro (2007) e foi traduzido para o sueco
um ano depois. Secchin é também membro da Academia Brasileira de Filologia e do
PEN Clube internacional, onde somos confrades, além de professor emérito da
UFRJ. Esta série de artigos que passo a publicar no Blog Letras comporá livro
que estou escrevendo sobre a obra de Antonio Carlos Secchin, notadamente sobre
seu livro Todos os ventos (Nova Fronteira, 2003).
* * *
É praticamente inevitável
iniciar-se a leitura interpretativa de algum grande escritor observando-lhe os
traços de similaridade e distinção em relação aos autores e tradições de épocas
pregressas, sopesando-os. No caso de Secchin, em linhas gerais, podem-se
observar características do Modernismo — como a inserção do humor crítico às
questões de um possível projeto de Brasil, a presença de versos livres e
brancos, a coloquialidade e a presença de “pessoas e situações comuns,
cotidianas”, a falta de ordenamentos preestabelecidos, a atitude iconoclasta e
cética, a digestão de alguma epígrafe que motivou o poema para dentro do
metabolismo deste mesmo poema, para seu imo. Com esse último traço, a que
chamei “digestão da epígrafe”, a intertextualidade (no sentido de Julia
Kristeva), o dialogismo (no sentido de Mikhail Bakhtin) e o estranhamento
(no sentido de Viktor Chklovski) requerem, não raro, um leitor preparado
e/ou iniciado no conhecimento das tradições e autores anteriores, pois, sem
esse conhecimento, muitos dos poemas do autor em questão seriam (tres)lidos com
um aparato crítico-interpretativo algo falho e cediço.
Por outro lado, a sua adesão constante, mas não exclusiva, a formas fixas de
poesia ou a metros rigidamente marcados, podendo ser escandidos por uma
verdadeira vara de Armida, a rima, ainda que toante, a presença úbere de
vocábulos eruditos e invulgares, as temáticas transcendentalistas e
espiritualizadas, a ressalva do pitoresco, do efêmero, delicado e gracioso, não
obstante a possível existência de algum presídio pantanoso de paredes sujas e
desesperançosas, tudo isso leva à observação plausível de que Secchin está, por
certa perspectiva, entranhado, possuído em seu âmago, igualmente, pela verve da
poesia das eras, digamos, mais “rígidas”, ou mais formais, além de mais
escapistas e reverentes, como o Arcadismo, o Parnasianismo, o Romantismo, o
Simbolismo e até mesmo a segunda geração do Modernismo. Mas não se acabará aqui
o entrecruzamento de percepções. Tampouco é este entrecruzamento um artifício
ou subterfúgio poético, mas, em vez disso, emergem da pena de Secchin com a
naturalidade do menino que solta pipa e se encanta todos os dias com o (mesmo)
céu. Não parece premeditação, mas meditação. Não parece prenúncio, mas anúncio,
pois o antigo torna-se novo — a despeito da prática que em muitos autores soa
avessa e tortuosa — de vozes e diálogos ocorrendo ao sopé de nossa janela.
Uma das diferenças e acréscimos de Secchin a essas “Escolas”
apontadas está, certamente, no convívio frequente entre o lado tenebroso e
o raio solar penetrante, coexistindo, lado a lado, muitas vezes, num mesmo
poema (numa mesma estrofe, num mesmo verso, numa mesma palavra, numa mesma
pontuação gráfica). Isso, entre outros fatores, que não serão ora perquiridos,
torna a leitura do texto de Secchin extremamente singular, fazendo que o leitor
precise dispor de uma perspicácia, uma acuidade e um conhecimento literários
bastante superiores aos do senso comum. Não apenas pela erudição e hipertexto
que grassam ubiquamente em sua obra, como se disse (pois para isso bastaria que
se recorresse a um dicionário ou a pesquisas de literatura comparada), mas pela
atmosfera imanente de indefinição e de contrastes constantes entre o comum,
grotesco, abjeto, concreto, enfim, e o sublime, angelical, vaporoso, diáfano,
abstrato, em resumo. Há também uma espécie de convivência entre o “bem” e o
“mal” (que será mais explicitada adiante) que obriga o espectador a uma atenção
e a um aguçamento da sensibilidade e das sensações poucas vezes necessários à
leitura de poetas e escritores em geral, de qualquer época, pois trata-se de um
convívio ora destoante e distorcido, conflitante e bélico, ora harmonioso,
pacífico e complementar.
As temáticas em Secchin não são, tampouco, cristalinas, translúcidas, e, aliás,
muitas vezes, não apenas são propositadamente (ouso dizer) opacas, necessitando
o leitor de uma lupa ou de um microscópio a desvendar-lhes o cerne ou a
caçá-las dentro de ostras — como pérolas reluzentes em meio a dejeto —, já que
saltam, num mesmo espaço poético, de um cume a outro, como as cabras de João
Cabral, de um vale a uma nuvem, em espaço de um verso, às vezes, ou até mesmo,
como foi visto, indo da “pluma ao granito”, da “ilha” à ”terra”, sem que haja,
por fim, com grande frequência, uma única temática por poema, mas, em vez
disso, um conglomerado de temas cujo fio de Ariadne muitas vezes nos é
extremamente difícil de ser achado, até porque pode simplesmente não existir.
Há um êxtase que pode passar à náusea, que pode ser a “distância entre mim e
meu destino”, a um confesso “Antônio antônimo de mim”, uma lubricidade,
cabritismo e concupiscência que podem passar a celibato e pureza, e vice-versa,
em questão de um segundo. Se a atenção piscar junto com as pálpebras e com os
olhos, algo, decerto, se terá perdido quiçá para sempre.
Ademais, a enorme importância dada por Secchin à palavra que compõe seus
escritos poderia quase fazê-lo beirar o cultismo barroco, inclusive em relação
aos paroxismos e às antíteses e paradoxos conceitistas intelectuais e retóricos
que, useira e vezeiramente, enriquecem, também, seu élan literário da mais alta
qualidade. Schlegel disse que “o princípio de toda poesia é abolir a lei e o
método da razão que procede racionalmente e, uma vez mais, dar um mergulho na
fascinante confusão da fantasia, no caos original da natureza humana”1. Essa
premissa muitas vezes esbarra exatamente em seu antípoda na obra de Antonio
Carlos Secchin, que recorre, amiúde, exatamente à razão e a um exercício
intelectual e racional profundo que, não obstante, leva ao mesmo “caos original
da natureza humana” que Schlegel, ao que parece, só entrevia na poesia
irracional e não razoável. Tratava-se, ali, na afirmação de Schlegel, talvez, da
busca pela criação de um novo cânone, baseado na “lógica da fantasia ou da
imaginação”, que, aliás, Immanuel Kant (na Crítica do Juízo) e Alexandre
Baumgarten (em Aesthetica), para citarmos dois balaústres, trataram,
também, de investigar com apreciável clareza e coerência. Mas em Secchin, o
racional e o fantasioso (e às vezes fantástico ou fantasmagórico) não se
corroem ou competem, antes se equilibram como parede e telhado.
Essa racionalidade caótica ou imaginação racional, no poema de Secchin, parece
ser oximoro proveniente de comparação que ele mesmo traça no livro cujo poema
será analisado adiante: Todos os ventos. Diz o poeta, num de seus
Aforismos2:
Em Marília de Dirceu, a ovelha tem direito de balir e não é obrigada a se
ajoelhar. A ovelha barroca reza, enquanto a neoclássica aproveita para comer a paisagem.
(p.78)
Esse aforismo de Secchin bem
poderia ser comparado aos versos que eu mesmo analisei algures do poeta
africano José Craveirinha, coincidentemente intitulado “Aforismo”. Ei-los:
Havia uma formiga
Compartilhando
comigo o isolamento
e comendo juntos. Estávamos iguais
Com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la
mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam ajoelhar-nos.
Quero com isso dizer que o sujeito
poético de Secchin não se ajoelha, ainda que posto de rastos ante o peso das
tradições e heranças literárias que sua vastíssima erudição lhe impingem, mas
antes, tanto no seu aforismo quanto no de Craveirinha, aproveita para comer,
digerir, a seu modo, o que lhe é específico e peculiar. Muito embora o
sacrifício pascal, da ovelha barroca, e a formiga pisada “por descuido” também
sejam convocados ao âmago da poesia de Secchin, inclusive no poema ora
perquirido, como se verá.
Caminhando ao lado de tais tendências, que foram, grosso modo, apontadas, há,
ademais, presença de poesia “experimentalista”, vez por outra concretista ou
neoconcretista (por exemplo no poema “Itinerário de Maria”, p. 150) ,
“verbivocovisual”, onde há “O rei menos o reino”, a palavra menos o
significado, ou o significado menos a palavra. Todos os cinco sentidos humanos
precisando contribuir para uma interpretação plurissêmica que vai muito além do
papel com suas linhas escritas e espaços em branco comunicativos. No autor, é
preciso racionalidade interpretativa e conhecimento literário a fim de uma
leitura mais “completa”, mas é preciso, também, sensibilidade, sensações,
sentidos. Como disse Marx algures, a história da humanidade se resume à
história dos cinco sentidos.
Em Secchin, percebe-se, também, parcimônia contínua em termos de pontuação
gráfica. O poeta em seu ofício praticamente só lança mão do ponto final, da
vírgula, do (raro) ponto e vírgula, do (muito raro) ponto de interrogação. Os
dois pontos, o travessão, os parênteses, as reticências, o ponto de exclamação
são raríssimos, e, mesmo quando aparecem, geralmente vêm como fator de explicação
subsidiária (sutilíssima, é claro) sobre os andaimes do poema, e não sobre sua
temática em si; ou seja, são sinais gráficos para uma análise metapoética,
muito mais do que poética. É com essas raríssimas pontuações gráficas que o
poeta melhor nos abre a porta de seu escritório e nos deixa vê-lo trabalhar
debruçado sobre sua escrivaninha.
Em suma, trata-se de um poeta para cuja obra seria necessário recorrer-se a
chaves distintas (razão e sensibilidade, como no famoso título do romance de
Jane Austen) a fim de se perquirirem quais os mistérios, as tradições e
rupturas encontradas em cada texto ou conjunto de textos concretamente, além de
chaves que ao menos tentassem percorrer, em parelha com o eu lírico, as veredas
varridas e sentidas e os temas alados e pousados. Falar em Secchin de forma
genérica ou generalizante, açambarcá-lo num rótulo confortável e impreciso é,
no mínimo, vasta e vagarosa miopia, e só se poderia aceitar, no poeta, uma
análise desse teor se se estivesse num estado de investigação bastante
perfunctório e tirante à vertigem de algum sonâmbulo inquieto.
Cabe, aqui, uma ressalva de ordem
epistemológica, no campo das artes, bastante severa, a meu ver. O fato é que
não se pode nem se deve dizer que Antonio Carlos Secchin tenha sido seguidor ou
continuador de quem quer que seja, a não ser dele mesmo. Os grandes artistas,
em quaisquer das artes, não possuem “seguidores” ou “continuadores”. Isso é
infenso à natureza intrínseca da arte. Como conclusão, chega-se ao aforismo de
que os grandes artistas não “seguem” nem “continuam” a quem quer que seja.
Há uma diferença (entre tantas outras) entre a ciência e a arte. O que torna um
homem um cientista é o fato de ele seguir uma metodologia preestabelecida
rígida e universal, e a circunstância de que ele precisa se comprometer a
comprovar e reproduzir tudo o que diz e faz em qualquer momento e lugar. Além
disso, evidentemente, ele precisará seguir os quatro cânones de ouro de
Descartes: 1) Nunca acreditar como verdade em nada que não se tenha comprovado
e possa ser reproduzido (o tubito ou o cogito cartesiano, a dúvida, enfim, como
apanágio da ciência); 2) Dividir uma dificuldade e impasse nas mínimas partes
possíveis; 3) Partir do mais simples ao mais complexo, no método
primordialmente indutivo; 4) Empreender constantes revisões à luz de
conhecimentos novos que tenham chegado, para não se omitir a verdade de uma
premissa que pode se tornar incompleta ou mesmo errônea (a chamada “modéstia
científica”, necessária pois, em questão de um nátimo, algo consagrado pode
ruir feito castelo de areia).
Já o que torna uma pessoa um artista é o fato de que ela se compromete em criar
e recriar constantemente, sem necessidade de “comprovação” ou de “reprodução”
(pois cada vez que a obra se manifesta, e para cada espectador, ela é, no
fundo, uma obra nova, ainda que se trate “da mesma”), mas recorre, em vez disso,
a expedientes outros, que inclusive mudam de perspectivas e parâmetros com o
tempo, como a questões ligadas à ética, à estética, à cultura, à antropologia,
à poética, à retórica, à representação, à mimese, à política, à sociologia, à
indústria cultural, ao “segurar o espelho para a natureza”, nas palavras de
Shakespeare, à reapropriação e reinterpretação dessa própria natureza etc. Isso
tudo — e outros fatores bem distintos daqueles que envergam a túnica da ciência
num homem — elevam um ser humano ao Parthenon das Artes, num dado momento e
lugar, que não raro o expandem ao mundo inteiro e aos séculos dos séculos. É
como costumo dizer: o cientista olha mais longe para ampliar as fronteiras; o
artista amplia as fronteiras para olhar mais longe.
O grande artista é, de certa forma, como o alfinete do famoso conto de Machado
de Assis “Um apólogo”: depois que ele fura e passa pela trama têxtil, fecha o
que há atrás dele, e, naquele caminho, naquele local exato, nenhum outro
alfinete penetrará. A via foi preenchida. É a sua criação. O homem da ciência,
no mesmo conto, seria a agulha que leva a linha atrás de si (aliás é essa a sua
missão), e não apenas permite a passagem de outras agulhas e alfinetes, pois
não veda o caminho atrás de si, como altruisticamente, conduz um fio, e só esse
fio aparece. A agulha some, depois de findo o trabalho. Ou seja, o cientista
passa o fio do conhecimento adiante e, com isso, costura a coesão e a
continuidade necessárias à ciência, desaparecendo, ele próprio, já que é o
conhecimento-fio que o motiva a seguir adiante cosendo. Logicamente estou
falando de forma idealizada, descartando questões de ego e emulação; mas, mesmo
em havendo esses casos, o conhecimento científico acaba sempre sendo mais
aparente, por maior que seja o seu gênio descobridor, do que o próprio homem ou
mulher que o engendraram.
Já o homem da arte faz o seu caminho e, quer queira ou não queira, o fecha. É
inevitável. Não se trata de “egoísmo”, mas de inexorabilidade. Naquele exato
mesmo local, mesmo em momentos diferentes, nenhum outro alfinete ou homem
poderá preencher a via preenchida, pois o que motiva o artista não é a
sequência, o acúmulo, o “aprimoramento”, mas o que ele pode fazer com a própria
trama têxtil em si mesma, por si mesma. Ela é o seu objetivo primeiro e último.
Por isso, não há um “seguidor” de Shakespeare; não há um “seguidor” de Chopin;
não há um “seguidor” de Velásquez; não há um “seguidor” de João Cabral; não há
um “seguidor” de Secchin; não há um “seguidor” de Yo Yo Ma ou de Arthur
Rubinstein. Eles já preencheram suas vias únicas, irrepetíveis, incomprováveis,
irrefutáveis, universais e atemporais.
Ser influenciado é natural nas artes e, no fundo, isso ocorre a qualquer grande
artista, em todas as fases de sua criação, principalmente na inicial. Mas
tornar-se “seguidor” de outro artista retira completamente daquele suposto
aspirante a possibilidade de ele vir a ser, por conta própria, um artista. Ele
será, no máximo, uma sombra, uma penumbra, espelho de aço fosco, volúpia da
razão.
Numa outra comparação, dessa vez mítico-mitológica, também se poderia abordar o
grande artista como comparável ao mito primevo de Crono (em latim, Saturno), um
dos doze Titãs gregos, pertencentes à segunda geração teológica na religião da
Grécia ático-jônica, clássica e helenística, segundo a Teogonia de
Hesíodo, a Ilíada e Odisseia de Homero e outros relatos esparsos
recolhidos aos rapsodos e aedos da época, até mesmo em pergaminhos
remanescentes da Grande Biblioteca de Alexandre, o Grande, e também em Atenas,
Antioquia, Cairo.
Ocorre que Crono devorava os seus filhos à medida que eles iam nascendo, com
medo exatamente de um oráculo que previra que ele seria substituído no trono
supremo do Olimpo por um de seus rebentos. Apavorado, ele os digeria, um a um.
No entanto, graças ao ardil de Zeus (em latim, Júpiter ou Juno), seu último
filho a nascer, o próprio Zeus, e sua mãe, Reia, já desesperada com a atitude
do marido, Crono, prepararam uma panaceia mágica que deram ao Titã devorador,
de modo que ele vomitou, um a um, todos os filhos que havia deglutido. Com
isso, nasce a terceira e última geração dos deuses gregos, de que Zeus se torna
senhor supremo, dividindo o reino da terra com Posêidon (em latim, Netuno), a
quem deu todas as águas, e Hades (em latim, Plutão), a quem deu o submundo e os
mistérios das raízes e colheitas, além da tarefa de recolher os humanos que
morressem, bons e maus, já que seu reino tinha espaço reservado para cada tipo
de pessoa (como os Montes Elísios, o paraíso grego, reservado às pessoas
bondosas, e os círculos infernais, reservado aos maléficos, em cujo centro
Dante descreve uma agoniante esfera não de fogo, mas de gelo puro e
inextinguível).
Com a ascensão de Zeus, passam a reinar na terra as chamadas “Díke” ou “justiça
dos homens”, e “Níke”, ou “vitória”, que substituem a “Têmis”, ou “justiça
divina”. Têmis era tia de Zeus, da geração anterior dos doze Titãs, uma das
Titânidas, e teve lugar de destaque no reinado de seu sobrinho, que, aliás,
após vencer os Titãs, nãos os exterminou, mas deu-lhes, inclusive a Crono,
posições importantíssimas, dentre elas, a de criar a espécie humana, após
devorarem Baco ou Dioniso e serem forçados por Zeus a vomitá-lo.
Metafórica ou parabolicamente, esse mitema inteiro simboliza que o grande artista
se alimenta, antes do mais, de sua própria progênie, sua própria obra. Ele
rumina e regurgita a própria criação, a par das influências sofridas (de que,
de certa forma, ele precisará desvincular-se, para não sofrer mais), ele
deglute incessantemente seu próprio ato criador, tornando-o espesso,
consistente. E, ao desvelá-lo ao mundo público, aquela obra não poderia jamais
ser “seguidora” de outra qualquer, ou “seguida” por outra qualquer, pois se
trata de obra única, com o sangue daquele autor específico. É resultado de uma
autoantropofagia, é obra de alguém que mastiga a si mesmo e se oferece em
sacrifício artístico-pascal a si mesmo e à sua criação, que ele mastiga dez mil
vezes mais do que mastigaria a obra de qualquer outro criador. Então, o artista
é um Titã. Ele é Crono. Ele engole a sua gênese e a expele, mas não é jamais
copiado. Ninguém pode copiar um Titã.
Assim, não é apenas a raiz fincada nas mais longínquas tradições do pensamento
humano (empreendida como releitura à luz dos dias modernos, trazendo, pois,
ares novos e salutares, não o mofo de brechós literários) o que melhor
evidencia a poesia de Antonio Carlos Secchin. Essas raízes, se, por um lado,
servem de chancela úbere à sua obra, sendo louvadas e homenageadas, por outro,
estão presentes no poema, já foi dito, como objeto e material vez por outra
francamente risível, frequentemente patético em função do desnudamento ocorrido
mercê da constatação de uma série de expectativas vez por outra picarescas e de
utopias de autores do passado que em nada se puderam concretizar.
Ou seja, de fato, há o hipertexto ou arquitexto acima aludido, embrenhado como
um fantasma, muitas vezes, em cada verso e em cada palavra, quase sempre
devidamente mastigado e engolido pelo próprio poema. Mas há, também, uma
reinvenção frequentemente sutil e sucinta de todas as eras anteriores, que,
pois, adaptam-se ao olhar extemporâneo do sujeito poético, e fazem com que esse
mesmo olhar também se adapte à ucronia ontológica das poesias, de cujos dedos
entrelaçados (poeta e poesias), o passado, muitas vezes, escorrega e escoa numa
poética extremamente moderna, caótica, desordenada, racional, irracional,
parcimoniosa, contida ou incontida em muitos signos, em que, assim, os
problemas e as problemáticas dos nossos dias — contemporâneos — são tratados
com uma dialética entre a simplicidade/ tradição/ ingenuidade/ esperança/ raiz
do passado e a incredulidade/ ceticismo/ ironia/ florescimento/complexidade de novas formas no
presente.
Este, assim parece, é um pertinaz conflito permanente na obra do poeta em tela.
Não se trata simplesmente de olhar-se para o passado e derrubá-lo (como queriam
alguns modernistas) ou modificá-lo (neste último caso, como queria Eliot) com a
posição (privilegiada?) do presente, mas, sim, de olhar-se o passado e o
presente como partícipes da mesma realidade atemporal de que o sujeito poético
é uma espécie de vítima revolucionária. Ao olhar para trás, o poeta não poderia
mais ter as convicções ou esperanças de seus predecessores, e, no entanto, ele
é tentado a tê-las ou a apresentar-lhes novos paradigmas que, em vez de
destruí-las, tornam-nas redivivas ainda que numa ambiência por vezes distópica,
ríspida e com um humor muito característico da pena de Secchin, que é o humor
ébrio de quem, apesar de tudo, celebra a existência do absurdo, do inacessível,
do pêndulo pueril, da esperança manca e incansável do Quixote que nunca se
cura, da Madame Bovary que prefere morrer a abnegar a fé nos seus “moinhos”
românticos. As perguntas do passado, se não podem ser todas respondidas, muito
menos à luz daquele mesmo passado, podem, ao menos, ser redescobertas e
reinterpretadas por um espírito lírico ou antilírico, poético, apoético ou
metapoético, cindido entre a esperança e a distopia.
Essa parece ser a relação dada por Secchin entre a tradição do passado e a sua
própria tradição individual, criada, como se viu, numa série de embates e
conflitos, coalizões e alianças. É um espírito ora voraz, ora pacífico. Ora
atônito. Ora antônimo.
Se o homem de seu tempo é um desprivilegiado anão de sua própria época, já que
o peixe é o último a ver a água, como se diz popularmente, pode se tornar “um
anão sobre os ombros de gigantes, e, em sua pequenez, pode enxergar mais longe
do que os próprios gigantes além da linha do horizonte”, como disse Sir Isaac
Newton. Secchin, muito longe de ser um anão, está, sem dúvida, sobre os ombros
de gigantes, e, com isso, enxerga o neutrino na vastidão quântica. E nos
convida a embarcarmos com ele nessa visão atômica (mas não atomística e sim
orgânica, fisiológica, de engrenagens recíprocas) que não pretende responder,
nem modificar, nem mastigar o passado, mas constatar que sua existência
constrói o trilho que nos fez aqui chegar, com todas as nossas mazelas e
desmazelos, mas também belezas e grandiosidades.
O restante, na obra do poeta, é de sua própria e inteira responsabilidade. É de
sua invenção. É de sua criação. É de seu valor. Não há um compromisso de
quebrar, responder, romper, traduzir, melhorar: há um compromisso de
construir(-se). Há uma desconstrução, sim, porém mais uma desconstrução de
Duchamp, parafraseando Affonso Romano de Sant´Anna. Nenhum gesto iconoclasta
que ocorra em Secchin é frívolo, adolescente, imaturo, vago, ocasional,
imotivado, fortuito, atomístico. É obra de reflexão e reconstrução de algo que
precisava ser feito segundo sua lente de aumento espantosamente arguta e
precisa.
Notas:
1 CASSIRER, E. Filosofía de las
formas simbólicas: El pensamiento mítico. Ciudad de México, F.C.E: 1998.
2 Em nota de pé de página na
edição ora esquadrinhada, constam as seguintes palavras: “Desentranhados dos
livros Poesia e desordem e Escritos sobre poesia & alguma ficção”.
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