Sinfonia Ilitch II

Por Michele Soares

Eu vos pergunto: Qual é o peso da luz?
— Clarice Lispector

Iliá Répin. Lev Tolstói em uma poltrona rosa, 1909. Tolstoy Museum.


 
Uma vez tendo em mente os movimentos gerais de A Morte de Ivan Ilitch e da Sexta Sinfonia, segundo apresentados na parte I deste ensaio, o estabelecimento dos pontos de contato entre ambas as obras se torna menos árduo e mais plausível. Se houve quem observasse e cotejasse trechos específicos da novela com a sinfonia, buscando ver em uma a transcrição exata da outra — a novela na sinfonia, no caso, já que a obra de Tolstói é anterior —, a despeito de Tchaikovsky e Tolstói terem se conhecido pessoalmente e de Tchaikovsky ter lido A Morte de Ivan Ilitch, acredito que, para os fins da nossa análise, é mais prolífico voltar o olhar sobre as constatações as quais chegaram ambos, Tolstói na literatura e Tchaikovsky na música, do que estabelecer influências e correlações exatas, no miúdo dos detalhes, entre uma e outra obra. Quando eu o fizer aqui, será para tentar pensar um ponto além da mera correlação — procurarei observar como esses artistas acenaram para uma consciência compartilhada sobre a vida e a morte humana.
 
Tolstói molda a sua narrativa de forma a eleger no meio de tantos potenciais “Ivan Ilitchs” — do pai de Ivan, que viveu a mesma vida burocrática, até o filho que já partilha da semelhança, inclusive física, com o protagonista — uma figura que só se torna singular devido à morte. É precisamente esse estado de morto que o diferencia e o afasta dos demais, todos aqueles que estão vivos na primeira seção da novela: “‘Aí está, morreu; e eu não’ — pensou e sentiu cada um”. Nenhum vestígio das linhas do sermão de John Donne, em que o poeta vaticina: “the bell doth toll for him that thinks it doth”.
 
Ninguém quer pensar, ninguém sequer concebe a ideia de que seja possível partilhar do destino de Ivan — a única pessoa que possui consciência plena da própria mortalidade em toda a novela é Guerássim, o servo da família Ilitch. Piotr, o colega funcionário, tão somente ameaça chegar a essa mesma consciência, por meio de ruídos que ficam gradativamente mais altos — quando vê Ivan morto, quando ele e Prascóvia “lutam” contra os móveis e quando Prascóvia, enfim, lhe comunica como Ivan sofreu e como esteve lúcido até o último minuto. O ruído final é mais alto, cutuca com mais força a mente de Piotr, mas nem por isso é mais efetivo, de modo que as exéquias terminam com a recusa definitiva da morte e a saída para o jogo de uíste. Diante dessa recusa em se identificar, ainda sim, ao final, desconfiamos que Ivan não é apenas Ivan e que sua morte não é só sua — no subsolo da sua singularidade jaz um “nós”, uma coletividade inaudita, que, ora silencia e oculta, ora grita e luta para, num rompante, vir à luz.
 
Diante disso, vale a pena ir mais a fundo no conteúdo da novela e verificar, adiante, que ordem de diálogo é possível estabelecer com a sinfonia. Se o começo de A Morte é marcadamente fúnebre, tão fúnebre quanto, por exemplo, a Introdução ao primeiro movimento da Patética (Adagio — Allegro non troppo), as seções subsequentes que tratam da vida pregressa de Ivan Ilitch se desenrolam sob a égide daquilo que o personagem acreditava ser uma existência “leve, agradável e decente”. A princípio, o mote francês “comme il faut” — da vida como deveria ser vivida — direciona o percurso de Ivan, ao passo que o emblema latino que carrega no paletó, “respice finem” — considera o fim —, é nada mais do que retórica vazia. O enredo, portanto, se dá nesse intervalo em que a certeza sobre o que deve ser uma vida bem vivida vai desvanecendo, enquanto a frase latina vai ficando cada vez menos retórica e cada vez mais tangível, cada vez mais certa, cada vez mais próxima. O fim, a morte, vai deixando de ser a distanciada “ela”, para ser então a “minha dor” e a “minha morte”.
 
Entre o tempo vivido e a morte no porvir, apenas alguns fragmentos genuínos rebrilham aqui e ali na consciência torturada de Ivan: i) o bem que Guerássim proporciona ao morimbundo, ajudando-o a aliviar as dores que sente ii) a certeza de que o período mais feliz e mais verdadeiro da sua vida foi a infância, o que permite ao velho Ivan compadecer-se de seu filho caçula na mesma medida e com a mesma sinceridade pela qual o filho se compadece do sofrimento do pai e iii) novamente a certeza, cada vez mais nítida, de que a morte virá. Este último dado, como sugerido logo acima, não é um conhecimento sólido e apriorístico, mas trata-se de uma verdade adquirida gradualmente, a custo de muita luta, de muita dúvida e de muita relutância — de uma agonia que só encontramos reproduzida musicalmente na Patética, de Tchaikovsky.
 
A despeito do aspecto torturado que apontei na parte I deste ensaio, devemos lembrar, no entanto, que a sinfonia não é grave e fúnebre do começo ao fim. Ao contrário, podemos encontrar ao menos dois temas principais, um primeiro de notas ascendentes, apaixonadas e esperançosas — vamos chamá-lo de tema “comme il faut”, intervalo 4min30sgs-5min28sgs do primeiro movimento — e outro que é, em larga medida, mais grave, de tendência decrescente e com sabor de lamento — vamos chamá-lo de tema “respice finem”, intervalo 02min28sgs-02min53sgs do quarto movimento.
 
A despeito do começo e do final evidentemente fúnebres, que servem de moldura para a sinfonia como um todo, é possível distinguir no coração narrativo da Patética uma tendência ambiciosa para aquilo que é marcadamente positivo, uma pretensão de leveza, que quer se realizar a qualquer custo, mesmo que sob o risco de incorrer no apalhaçado, como é possível verificar nos gêneros dos movimentos dois e três. O segundo movimento da sinfonia, por exemplo, seria uma valsa digna de ser encenada em um contexto romântico, o que nos faz lembrar as danças de Ivan com sua futura esposa, Prascóvia, no período da vida em que o funcionário, sempre galante, dançava com as mulheres de seu círculo social. O apalhaçado, contudo, estaria no tempo da valsa, que, em cinco marcações, não é usual.
 
Já o terceiro movimento, por sua vez, seria uma marcha-scherzo, scherzo sendo o nome italiano para piada, brincadeira, o que dá o tom do segmento como um todo. Para este movimento é possível estabelecer alguma ordem de analogia com as reminiscências que Ivan carrega da infância, quando o homem, já em vias de morrer, descobre em um passado primeiro a felicidade e o significado que não lhe fizeram companhia ao longo da vida. A sinceridade da vida passada, por sua vez, só é percebida como verdadeira, pura e simples, na mesma medida em que se mostra permanentemente irrecuperável.
 
Assim, o estabelecimento de tal analogia é legítimo se considerarmos como o primeiro e o último movimento da sinfonia, fincados em uma espécie de presente elegíaco, viriam a se contrastar com um miolo de passado, uma reminiscência positiva, quando não francamente festiva, da vida do herói da Patética, seja ele quem for. Nessa perspectiva, partes do primeiro e todo o último movimento da Sexta serviriam de moldura fúnebre ao passado vivaz, tanto quanto a primeira e a décima segunda seção da novela seriam a moldura, dentro da qual jaz o que seria a vida narrada.
 
Diante disso, apesar de falarmos aqui em uma distinção entre a morte e a vida de Ivan Ilitch, um dos elementos capazes de tornar a novela tão pungente seria, justamente, a sugestiva descoberta final de Ivan, sobre como ele vinha morrendo muito antes do que imaginava, antes mesmo de adoecer. Quando ele é capaz de olhar essa verdade nos olhos, sem piscar ou tentar se afastar, ele conquista a sua redenção na forma de uma luz. O trecho que encerra a novela merece ser reproduzido integralmente:
 
Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar da morte, havia luz.
Então é isto! — disse de repente em voz alta — Que alegria!
Tudo isso lhe aconteceu num instante, e a significação desse instante não se alterou mais. Mas, para os presentes, a sua agonia ainda durou duas horas. Algo borbulhava-lhe no peito; o seu corpo extenuado estremecia. Depois, o borbulhar e o rouquejar tornaram-se cada vez mais espaçados.
Acabou! — disse alguém por cima dele.
Ouviu essas palavras e repetiu-as em seu espírito. “A morte acabou — disse a si mesmo. — Não existe mais.”
Aspirou ar, deteve-se em meio do suspiro, inteiriçou-se e morreu.1
 
Diante disso, duas questões podem florescer: a primeira sendo qual a natureza da luz citada e a segunda, pensando nos fins de nosso exercício comparativo, se Tchaikovsky também dá a ver algo de ordem igual ou semelhante na sinfonia — qualquer coisa, portanto, que se aproxime de uma redenção.
 
Do mesmo modo que muita tinta já se gastou para descrever o mistério em torno da sinfonia, muita tinta já se gastou para tentar definir qual a natureza da luz na novela, se divina ou se profana, se marcadamente cristã ou se profundamente intelectiva, como uma espécie de luz da consciência humana, que, como levasse a sério a máxima de Sólon para Creso nas Histórias, de Heródoto, defenderia que somente no momento em que morremos é que, enfim, estaríamos autorizados a, uma vez olhando em retrospecto, definir com propriedade como foi, o que foi e o que deixou de ser a nossa vida. Na ausência de maiores dados verbais que sustentem uma leitura cristã de A Morte de Ivan Ilitch, é possível adivinhar que tendemos para a segunda hipótese, na exata medida em que a luz, se lida até o fim como uma luz de ordem intelectiva, abre espaço para acolher no seu seio todas as interpretações subsequentes, inclusive a leitura cristã.
 
Ivan quer, com cada vez mais desespero, acreditar que viveu adequadamente, para chegar ao final aceitando que a sua vida foi, na verdade, uma morte em vida — assim, quando ele expira, “Acabou. A morte não existe mais”. Longe de ser uma expressão para se referir como Ivan atingiu alguma espécie de estado transcendente, o personagem atingiria essa luz secular para, então, morrer com alegria, sob a égide de uma significação que não se altera, embora a agonia se estenda por horas a mais. Apesar da força da descoberta, quando Piotr vê Ivan morto, ele é como todos os outros mortos — nem nesse ponto coisa alguma o distingue ou dá indícios de que ele tenha alcançado a redenção, supostamente secular, que alcançou das últimas linhas da novela.
 
A luz pode ser de ordem divina/ espiritual, caso o leitor assim deseje e reúna suficientes elementos verbais para sustentar minimamente a sua perspectiva, mas, a interpretação da luz que Ivan vislumbra como sendo uma luz secular se afirma como produtiva justamente na medida em que, sem definir se isso ou se aquilo, ou seja, permanecendo ambígua, o autor afinaria ao máximo a linha tênue entre o leitor e o próprio Ivan Ilitch, enquanto um representante de todos nós.
 
Sussurrando pelos lábios de Ivan, Tolstói dá ao leitor a oportunidade de provar uma gota dessa consciência sobre o ato de se defrontar simultâneamente com a morte e com a vida dentro dos diques bastante frágeis que, em uma livraria, alocam A Morte de Ivan Ilitch nas estantes de ficção, ao invés das de história ou de biografia. De qualquer jeito, mais ficção ou menos ficção, essa história se deu com ele, Ivan Ilitch, e não conosco — ou não conosco, ainda. São diques, frágeis, avisamos; ao final, é inevitável não pensarmos em nossa própria morte.
 
E Tchaikovsky? Pouco antes dos segundos derradeiros da sinfonia, podemos identificar um último sobressalto, um rompante dos metais e das cordas que apresentam uma variação do tema nomeado, linhas atrás, como “respice finem” (intervalo de 6min02sgs-6min43sgs do quarto movimento). Tudo isso se faz ouvir com a maior intensidade possível, com uma urgência doída, viva, embora em vias de fenecer e relutando fortemente em fazê-lo. Em uma leitura que pretenda buscar uma transcrição da novela na sinfonia, seria possível ver esse último sobressalto como produto da luta entre negação e aceitação da morte que culminariam com uma redenção luminosa, aquela mesma sofrida por Ivan, cujo significado atingido se sustentaria por mais duas horas até a morte do protagonista. Porém, se o que ouvimos é o ápice da luta entre dois extremos, dificilmente seria possível falar em qualquer dado sonoro que indique uma redenção, ainda mais uma que provoque alegria, tal como aquela que Ivan sente ao final da novela.
 
Também essa leitura faria dos segundos posteriores (intervalo 8min-9min49sgs), de esmagamento e minguar da sinfonia, a representação da morte efetiva, aquela que está para além do significado já alcançado. De forma plausível, há quem proponha ler nesses instantes finais a construção do ato de expirar por meio do diálogo entre violinos e contrabaixos, os violinos representando a respiração do herói, cada vez mais espaçada e rarefeita, e os contrabaixos mimetizando repetitivamente o pulsar do coração em vias de parar — como irá, de fato.
 
Do comme il faut do primeiro movimento ao respice finem do quarto movimento, o que aconteceu? Algo grave o suficiente para subverter aquilo que era uma promessa de alegria, feita após a Introdução. As hipóteses são variadas: o destino, a morte, o fim de um relacionamento, o suicídio. Sem redenção, portanto, mas a morte pura e inevitável. “Se a obra tiver sido sobre uma batalha contra o destino, o destino ganhou. Se a obra tiver sido sobre a morte, a morte chegou. Se a obra tiver sido sobre a impossibilidade do amor, o amor desapareceu. Se a obra tiver sido sobre a vida, a vida se foi”, como já bem escreveu David Schroeder, em certa ocasião. A conclusão final parece amarga e frustrante, como o ato de montar um grande quebra-cabeças, só para descobrir que a última peça foi perdida.
 
Assim, Tchaikovsky e Ivan partilhariam mais do que o patronímico absolutamente comum na Rússia — Ilich, filho de Iliá, o nosso Elias —; eles compartilhariam uma consciência profunda do que (talvez não) é a vida e do que é morrer, sem ter morrido ainda. Isso não anula qualquer noção de credo que os artistas pudessem ter, uma vez sendo a morte e o pós-morte um terreno fértil para o triunfo da religião, as respostas variando com as convicções de cada um.
 
Tolstói era fatalmente cristão, exercendo um cristianismo que sequer se deixava aprisionar pelos limites do dogma, como prova a sua excomungação da Igreja Ortodoxa, em 1901. Na mesma linha, Tchaikovsky se afirmava cristão em seus diários e cartas — ao menos era isso o que ele queria, até com certo desespero, se considerarmos o desafio de se afirmar um cristão devoto, quando filho de um século majoritariamente racional e secularizado. Para achar uma saída, ele teria tido que acreditar em Cristo, antes do que em Deus — em uma figura mais humana, próxima e digna de amor, do que divina, distante e digna de medo, na sua concepção.
 
Deste modo, se o herói da Patética não for Ivan, mas o próprio Cristo, e o programa, o episódio da Paixão, tal como sugere Ritzarev em um rico estudo sobre a sinfonia — Tchaikovsky's Pathétique and the Russian Culture —, esse arco só significaria para nós, audiência, e possuiria o alcance que tem, por meio do suposto ato de não elevar Cristo a uma ascensão prodigiosa aos céus, mas fazê-lo acabar aqui, na terra, assinalando a sua contraparte humana, que também é a nossa. Antes de ascendermos — o que depende do credo religioso de cada um, ou seja, de um dado que pode nos distanciar uns dos outros, ao sabor das nossas convicções —, precisamos acabar e, tanto Tolstói, quanto Tchaikovsky se mostraram virtuosos demais nas suas respectivas artes para infundir declaradamente o dogma nas suas obras, sob o risco de restringir o alcance e a identificação.
 
Talvez possamos, por fim, voltar em espírito ou em releitura à crônica de Clarice, citada na primeira parte do ensaio, encarando com o máximo de seriedade cada uma das palavras escritas pela autora. Tal qual o “Ir para” clariceano, como este ensaio procurou sugerir, Tchaikovsky e Tolstói teriam ocultado os objetos das suas frases literárias/ musicais sobre a morte, não explicitando para onde cada um vai.
 
Ao contrário, uma vez chegando ambos à mesma conclusão — a de que, antes de qualquer possibilidade de transcendência e da descoberta de qualquer Além, devemos ficar em alguma medida aqui, ao rés-do-chão —, os artistas teriam armado e dramatizado a ida, na forma de uma estrada ampla o suficiente para, a partir dos seus exemplos individuais, permitir a máxima identificação do leitor/ espectador. De forma semelhante, o movimento também permitiria o preenchimento do destino da ida com o que quer que esteja no horizonte das nossas crenças individuais. É esta ordem mínima de inacabamento que garantiria, entre outros dados, a projeção e a reverberação das duas mortes narradas, tanto no presente, quanto no futuro.
 
Ida para qualquer lugar. Ida para nenhum lugar, como quiser o leitor. Por estrada, por atalhado, por trilha ou pela avenida, como preferia Elza. A verdade é que vamos, a verdade é que iremos todos, a verdade é que já estamos indo, de algum modo — “na avenida, dura até o fim.”

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Notas:
 
1 A tradução citada é a de Boris Schneiderman (Editora 34, 2006).
 

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