“Relacionar-se é administrar conflitos”. Entrevista com Adriano de Paula Rabelo
Por Marília Bertolino
Acaba de sair, publicado pela
editora Minotauro, selo do grupo Almedina, o livro A primeira pessoa: duas
histórias, do escritor mineiro Adriano de Paula Rabelo. Como indica o
título, a obra é composta por duas narrativas concisas, situadas entre o conto
e a novela. No entanto, ou por isso mesmo, essas histórias, contadas em
primeira pessoa por protagonistas homens a caminho dos quarenta anos, são
bastante concentradas e carregadas de tensão a partir do momento em que ocorre
um desarranjo da situação de “normalidade” inicial. Conversamos com o autor
sobre esse livro e as escolhas que ele vem fazendo na escritura de seus
trabalhos.
No ano passado, você lançou O
amor é um abismo furtivo, que reúne uma série de contos retratando o final
da relação amorosa. Agora você retorna ao tema da separação dos amantes. Por
que esse assunto tem estado tão presente neste momento de sua produção?
Esse assunto tem estado muito
presente na produção de quase todos os escritores, em quase todos os momentos
de sua produção, pois é um desses temas universais e eternos, fazendo parte da
vida de todos nós em diversas etapas de nosso percurso e sendo sempre renovado
pela criação artística de todas as épocas. Quanto à questão da separação dos
amantes, é verdade que, em meu livro anterior, a maioria das histórias focalizava
esse aspecto. Mas nem todas elas. Algumas tinham outras resoluções. De todo
modo, se na maioria dos contos do ano passado os amantes se separavam como uma
decorrência quase que natural do fim do ciclo amoroso, após desgastes diversos,
nas duas histórias agora publicadas a separação acontece em decorrência de
eventos traumáticos: numa delas há o envolvimento de um professor de
meia-idade, casado, com uma aluna de vinte anos que engravida e sofre um aborto
espontâneo; na outra, o desastre envolve dependência de drogas, depressão e
suicídio. Em A primeira pessoa está presente o lado mais trágico e
imprevisível da existência. As histórias de amor ali contadas praticamente
ficam sem uma resolução. Tanto que ambos os narradores terminam manifestando
seu despreparo para se engajar em outros amores, embora sintam que já começam a
ser resgatados pela própria movimentação transformadora do mundo.
As duas histórias retratam
grandes sofrimentos e passam longe de um final feliz. O que você diria para
quem afirma que “de triste já basta a vida” ou que a literatura deveria ser uma
espécie de “sorriso da sociedade”?
Embora de vez em quando ainda
ouçamos platitudes desse tipo por aí, essa é uma questão já superada há muito
tempo nos estudos literários. A literatura, assim como a arte em geral, pode
tratar de qualquer assunto, da forma como o criador achar necessário para
alcançar seus objetivos estéticos. Ela não nos oferece um consolo superficial e
fugaz, nem valida nossas esperanças comezinhas. Ao contrário, nos perturba,
questiona nossos valores, expõe elementos simbólicos, desejos inconscientes,
pulsões obscuras ou miasmas sociais que por conveniência escamoteamos na vida
real e cotidiana, coisas que costumam vir à toma somente em momentos
traumáticos, de crise existencial, ou por ocasião de conflitos exacerbados com
nossos semelhantes. Essas costumam ser as experiências humanas mais
significativas e vitais. Por isso a literatura se ocupa tanto delas. Quando
ouço alguém dizer que minhas histórias são tristes, me dá vontade de perguntar
se o militante contra a tristeza já leu Dostoiévski, ou Machado de Assis, ou
Proust, ou Kafka, ou Clarice Lispector... e tantos outros. Por outro lado, para
atender a esses leitores frívolos e pouco exigentes, há séculos está disponível
uma imensa literatura de entretenimento que se propõe como uma produção
edificante, um catecismo de virtudes convencionais, um simples digestivo ou
facilitador do sono. São obras que se esgotam de imediato na primeira leitura.
Ou na primeira assistência, pois a literatura folhetinesca de base
melodramática, transformada em filmes hollywoodianos, seriados e novelas de
televisão, encontra hoje grande audiência. Cada um tem a cultura que sua formação
tornou possível.
Na primeira de suas histórias,
“Absolvição”, um professor universitário, depois de envolver-se amorosamente
com uma aluna, sofre um processo de linchamento moral promovido por
influenciadores digitais, programas policiais de tv e gazetas sensacionalistas.
Aonde vamos chegar com essa cultura do cancelamento, do bullying
digital, do stalking e outras formas de perseguição, insulto e invasão
da privacidade de alguém?
Eu diria que já chegamos a um
lugar insuportável, tendo retrocedido ao que poderíamos chamar de uma nova
inquisição. Trata-se, porém, de uma inquisição ainda pior que aquela da Igreja,
que cometeu tantas atrocidades e que hoje é um símbolo do pior obscurantismo.
Da nova inquisição ninguém está a salvo. Basta dizer ou fazer qualquer coisa
que desagrade aos paladinos do moralismo dispersos em suas casas, diante de
suas telas. Isso sem mencionar os robôs programados para insultar pessoas no
ambiente virtual, diante dos quais a imprensa sem escrúpulos (que sempre
existiu, desde o começo do jornalismo) é até relativamente amena. O pior dos
linchamentos virtuais é que as mentiras, a vulgaridade e a grosseria dos milicianos
da moralidade ficam registradas nas redes para sempre. É preciso refundar
globalmente a internet, regulando-a de maneira estrita. Em especial, é urgente
acabar com o anonimato de quem nela se conecta. Talvez se possa pensar no uso
de biometria para todos os que a acessarem. Assim, será fácil encontrá-los para
que respondam por seus atos no sistema judiciário do Estado, o único que possui
legitimidade para julgar e punir quem quer que tenha cometido crimes.
Na outra história, “Quase tudo,
quase nada”, o narrador conta sobre seu relacionamento com uma moça que se
envolveu com drogas e mergulhou num processo depressivo muito intenso. O que
explica essa perdição nas drogas e na depressão por parte de tanta gente hoje
em dia?
Essa pergunta demanda uma longa
resposta, pois o problema é muito complexo, com diversas facetas. Eu mesmo, que
nunca usei drogas ilícitas e tenho horror a elas devido à catástrofe que vemos
para todo lado no Brasil, não me sinto muito qualificado para respondê-la. De
todo modo, não acredito que o problema esteja nas drogas em si mesmas. Em
sociedades ditas primitivas, drogas são utilizadas para atingir estados de
consciência superiores, acessar espíritos de antepassados e encontrar soluções para
problemas da comunidade. E ninguém é destruído por elas, nem entra em estado
depressivo por causa de seus efeitos. Nas sociedades modernas e capitalistas, no
entanto, elas muitas vezes arruínam as pessoas como tantas outras coisas o
fazem dentro da lógica acumulativa do capitalismo: pelo excesso. E ainda há
essa política abominável de guerra às drogas no Brasil, que é um nome
disfarçado para o genocídio de pobres e negros. Quanto à depressão, problema
que vai muito além de uma decorrência do uso de drogas, quem é que, hoje em
dia, nunca passou ao menos brevemente por um estado depressivo? Desumanizados
que estamos pela burocracia, a mercantilização, o trabalho usurpador, a
fragmentação de nossa atuação no mundo, a solidão, as relações banalizadas, a
felicidade como obrigação, só podemos mergulhar na depressão uma vez ou outra
na vida. Quando isso se associa ao uso descontrolado de drogas, é inevitável
essa calamidade com a qual todos nós convivemos de uma forma ou de outra hoje
em dia.
Um dos principais temas das
duas narrativas do livro é a amizade. Você acredita que o amor está hoje
supervalorizado em relação à amizade?
Na Antiguidade, por exemplo, a
amizade possuía um status muito mais elevado que o amor. Isso percorre
toda a filosofia e a literatura grega, por exemplo. No entanto, há uns cinco ou
seis séculos, na tradição ocidental, o amor tem tido essa preponderância. Mas
não acho que eles concorram um com o outro. Há um aspecto amoroso na amizade, e
o amor se realiza muito melhor quando perpassado pela amizade. Pessoalmente, ao
longo da vida tenho tido poucos, mas bons amigos. São pessoas essenciais, que têm
estado comigo em momentos bons e maus, em quem sei que posso confiar. Ambos os
protagonistas de minhas histórias também encontram apoio e consolo em um ou
dois amigos fundamentais, em momentos muito complicados. Sem eles, seria muito
mais difícil resistir a nossas adversidades.
Seus trabalhos tratam
constantemente dos conflitos entre pessoas próximas. As relações estreitas
demais inevitavelmente deságuam em conflitos? O ser humano necessita do
conflito para viver?
A proximidade é obviamente determinante
para que as pessoas tenham suas dissensões e suas quizílias. Você por certo
nunca entrou em conflito com um congolês, um esquimó ou um itaporanguense. Ou
talvez tenha tido alguma relação muito superficial com alguém de uma ou outra dessas
origens, por estar muito distante delas. Numa peça de teatro, Sartre escreveu
que “o inferno são os outros”, pois, na construção de nossa identidade,
precisamos nos relacionar com eles, processo sempre carregado de atribulações,
desencontros e frustrações. Mas o paraíso também são os outros, pois não se
pode imaginar a hipótese da felicidade sem uma reconciliação com a alteridade
mais próxima de nós. Não precisamos do conflito para viver. Ele é simplesmente
intrínseco a qualquer relação humana, pois os desejos e necessidades de cada um
apontam para direções diversas. Portanto, relacionar-se é administrar
conflitos.
Em suas histórias, costumam
aparecer personagens que levam uma vida cotidiana e previsível até que, por uma
escolha deles ou um acontecimento inesperado, passam a enfrentar uma situação
de crise que os faz enxergar outras dimensões e outras facetas da existência. A
seu ver, somente o sofrimento nos humaniza e nos torna pessoas melhores?
Sim, mas isso não quer dizer que
devamos sair em busca do sofrimento. Ele é inerente ao processo de viver,
precisa simplesmente ser enfrentado. E nos marca para sempre. Gosto muito de
uma frase de Léon Bloy, escritor francês da virada do século XIX para o XX:
“Sofrer passa, ter sofrido não passa jamais”. Depois dos momentos de crise, não
somos mais os mesmos. Algumas vezes nos tornamos muito diferentes do que fomos
antes. Sim, sofrer nos humaniza. Somos talvez a única espécie que tem
consciência do sofrimento e das transformações que ele provoca em nós. Tenho
dúvidas sobre se ele necessariamente nos torna melhores. Em geral, sim. Mas
alguns, depois de sofrerem, tornam-se amargos, secos, cruéis, vingativos,
indiferentes. Depende como se elabora a coisa.
Como elaborar bem o sofrimento
na era das redes sociais e do entretenimento vazio?
De fato, vivemos na era da
felicidade obrigatória, do gozo perpétuo, da pose de alegres, da vida editada
que gostamos de apresentar publicamente, nas redes sociais. E também dos muitos
estímulos que nos assediam por todo lado, das inúmeras diversões que nos chegam
em uma tela de computador ou smartphone, em um aparelho qualquer dotado de
inteligência artificial. Com isso, encobrimos o sofrimento, recorremos a
subterfúgios para escapar dele, não o enfrentar com a coragem necessária. Basta
ver como temas como a morte, o envelhecimento, o fracasso, as doenças são
tratados em nossa cultura. Isso quando não são simplesmente silenciados. Essa
nova realidade só tem produzido uma enorme massa de pessoas imaturas,
superficiais, grosseiras, vazias. Quanto à sua pergunta, não sei como elaborar
bem o sofrimento hoje. O meu próprio tem sido elaborado de maneira bastante canhestra,
geralmente sendo resolvido pela simples ação do tempo e da dinâmica do mundo.
Mas me arrisco a dizer que coragem, movimento e paciência são palavras-chave
nessa elaboração.
Por falar em elaboração, sua
escrita é muito bem elaborada, mas transparente, ainda que você costume lançar
mão de algumas palavras pouco usuais na linguagem cotidiana. Isso faz parte de
sua poética como escritor?
Considero supremamente chato aquele
tipo de escritor hermético, cerimonioso, com pose de gênio incompreendido, que
certa desvirtuação da literatura moderna acabou por criar. Ele adora jogar
erudição e conhecimentos especializados na cara do leitor. Ou gaba-se de
inventar uma linguagem fechada, ininteligível, a não ser para os membros de sua
igrejinha literária. Nada contra a erudição e os conhecimentos especializados.
Nada contra uma linguagem desafiadora que eleva os horizontes do leitor. Tudo
contra a arrogância e o elitismo barato.
Uma vez, Nelson Rodrigues deu um
conselho aos inteligentíssimos diretores de teatro de São Paulo do final dos
anos 1960, que, antes de montarem uma peça, tinham a petulância de reescrever
uma obra de Shakespeare, de Ibsen ou de O’Neill. Além disso, viviam dando
palpites sobre tudo, achando que mudariam o mundo com a potência de seus gênios.
O conselho era o seguinte: “Sejam burros!”. Isto é, respeitem os grandes
textos, façam apenas teatro, e assim cumprirão a sua função. Eu daria o mesmo
conselho aos escritores “inteligentes”, que desprezam o leitor ou querem fazer
outra coisa além de boa literatura. De minha parte, quero ser lido e entendido;
quero que meu texto desafie e incomode o leitor, mas que ainda assim a sua
leitura seja prazerosa.
Por fim, o título de seu livro,
A primeira pessoa, que não intitula nenhuma das duas narrativas que ele
contém, é um tanto enigmático, como o prefaciador da obra chama a atenção.
Afinal, quem é a primeira pessoa a que o título se refere?
Como autor, não tenho a palavra
definitiva sobre a interpretação de meus textos. Às vezes me chegam leituras
originais e muito coerentes deles, de que eu mesmo até então não tinha me dado
conta. De todo modo, o prefaciador do livro responde a essa pergunta em seu
texto. Pode ser qualquer uma das pessoas que ele menciona: o narrador em
primeira pessoa, o protagonista de cada história depois de seu processo de luto
e melancolia, a mulher amada e perdida, o amigo ou o familiar que os socorre
nos momentos difíceis, a coletividade agressiva ou indiferente a seus
sofrimentos. A leitura pode colocar foco em uma ou algumas dessas pessoas. Ou
em todas elas ao mesmo tempo. Portanto, pode haver uma ou várias primeiras
pessoas. O texto é aberto a interpretações diversas.
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A primeira pessoa: duas histórias,
Adriano de Paula Rabelo
Minotauro, 2022, 162p.
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