Por que Hamlet foi o primeiro moderno
Por Beatriz de Sarlo
Imagem: Tom Stanley |
Leio O duplo, de
Dostoiévski, em alemão, para que a distância da língua produza uma espécie de
“efeito de distância”. Nunca pude imaginar como um romance estaria escrito em
russo. Quando lemos as traduções em espanhol de outras línguas europeias, há
sempre uma espécie de pano de fundo onde se projeta um original imaginado
desfocado. Mas do russo? Como posso imaginar o russo? Bakhtin diz que
Dostoiévski pega um pequeno balconista e o apresenta como autoconsciência.
Exatamente. Só que a autoconsciência de Goliadkin está equivocada e, em vez de
ser conhecida, é radicalmente desconhecida. Ele é um duplo desconhecido de si
mesmo, em um longo monólogo cortado por diálogos onde nada é confiável, pois é
justamente alguém que vê seu duplo. Dostoiévski se apega à alucinação do
personagem de Gógol.
Neste romance não há “assassinos por
amor” e outros assuntos contraditórios que provocaram o olhar condescendente de
Borges. Em vez disso, algo anuncia Beckett e Joyce. A grande literatura muitas
vezes aponta qual será o seu futuro.
Por exemplo, sobre Hamlet
Massimo Cacciari levanta uma questão impossível de responder e que, portanto,
nos permite continuar pensando, imersos no dilema: por que, para quê, o pai de
Hamlet precisa da ação de seu filho? Se o fantasma do pai fala com uma
autoridade que Hamlet não pode contestar (pode obedecer ou desobedecer, mas não
pode duvidar), se essa autoridade se baseia na preeminência do pai sobre o
filho, não está claro por que aquele homem anterior e, portanto, mais poderoso
precisa do outro, aquele filho fraco e dubitativo.
O príncipe Hamlet está preso, uma
vez que conhece a história contada pelo espectro. Seu pai foi assassinado e
Hamlet não consegue esquecê-lo e também não consegue fazer sua a causa que o
morto exige. O assassinato de seu pai é, para Hamlet, um fundamento
insuficiente porque não é suficiente para impulsioná-lo à ação. “Ser ou não
ser” significa, para o filósofo Cacciari, agir ou não agir.
Cacciari aponta a distância
imensurável entre a decisão e o ato. O pai de Hamlet foi verdadeiramente um rei
porque encontrou em si mesmo a base para uma era, a sua. Ele caminhou, ou
construiu, a ponte entre representação e poder, entre passado e presente. Mas
fundar uma era em que “o tempo deu errado” é impossível: não haverá fundamento
ou ponte entre o dever e a ação. Hamlet sabe que seu dever é vingar a morte do
pai, mas oscila entre o dever moral e as reviravoltas de uma consciência
infeliz. Na era Hamlet, o sujeito e a lei perdem fundamento. Hamlet foi
o primeiro a perceber ali uma ausência, uma fraqueza. Hoje conhecemos bem essa
ausência de fundamento e sofremos com isso. Todos os nossos atos são entregues a
uma subjetividade que delibera. Somos sujeitos em dúvida. O príncipe Hamlet é o
primeiro moderno.
Franz Kafka chega quando a lei
prevalece e esconde seu significado. Ordena as ações sem revelar os motivos. É
por isso que o Sistema é para K. impenetrável: não há nada para descobrir, não
há nada dentro do Castelo, nenhum segredo está escondido ali; também não há
possibilidade de fazer sentido. Sem transcendência, como escreve Kafka, você “é
livre e, portanto, está perdido”. Condenado ao mundo que os deuses abandonaram.
Algumas décadas depois, com
Beckett, o Ser torna-se nada, pura repetição do que não compreende. Malone
morre é a inútil busca de algo que este homem, deitado em uma cama de
hospital, acredita ter perdido. Mas não podemos nem saber se aquele pequeno
lápis que está procurando realmente existia antes de pensar que estava perdido.
Malone dá os golpes inúteis de um cego.
Filosofia pessimista e
singularmente lúcida. Rastejamos pelo campo infértil que a exaustão torna
desolado. O animal político e religioso está morto. A paródia prevalece sobre o
cômico e sobre toda a tragédia (basta visitar os meios audiovisuais). A
modernidade desesperada se refugia em partidos alimentados pela tecnologia
digital; partidos que, por covardia, negam o desespero e acusam os desesperados
de modernistas arcaicos que sofrem de ilusões ideológicas fracassadas.
Em Scritture estreme,
Franco Rella cita um aforismo de Kafka: “Há um ponto a partir do qual o retorno
não é mais possível. Este é o ponto a atingir.” Não consigo decidir se isso define
um impulso otimista ou pessimista; exprime um desejo, mas não sei se é um
desejo de destruição ou de um futuro absoluto, de utopia centrada no porvir e
não no que foi. Embora tudo o que sabemos sobre Kafka nos induza a pensar que o
aforismo é pessimista, como uma negação do cumprimento de qualquer promessa. A
chegada a uma terra prometida parece mais um anseio pelo ponto zero, que
dissipa uma história amaldiçoada. Morte e nascimento que se afastam do passado,
que não permitem que ele suje o presente. O passado como uma mancha e,
portanto, afastar-se dele para chegar ao ponto de não retorno.
* Este texto é a
tradução livre para “Por qué Hamlet fue el primer moderno”, publicado aqui, em El
País.
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